domingo, 2 de julho de 2017

Um jornalista no próprio centro

Lá pelos anos 90, Paulo Nogueira queria ser escritor. Escrever ficção, romances policiais, aqueles tipo B (era fã confesso de Graham Greene). Não deu certo: a carreira executiva o ocupava demais, foi mais longe do que o costume para quem gostaria apenas de ficar escrevendo. Ele também não recebeu atenção das editoras. E desistiu.
Vivia me dizendo que ficção não dava dinheiro e, a única mágoa que escondia, não quis mais saber do assunto, nem quando dirigiu uma editora de livros inteira (a Globo) para publicar o que quisesse. Preferiu lançar um romance meu, Campo de Estrelas, que, não por coincidência, fala do câncer.
Como pequena compensação, ou por diversão, lá nos anos 90, quando desistiu do romance (e de outras coisas) criou um pseudônimo, Fabio Hernández, que colocou como colunista primeiro na antiga revista VIP, que dirigia, para falar o que ele achava serem as verdades masculinas. Especialmente na boca de um tio, que não sei se era verdadeiro ou um alter ego dele mesmo.
Minha homenagem pelo seu passamento é essa pequena revelação da sua identidade (nem tão secreta assim) e a sugestão de leitura de um texto típico de Paulo Nogueira/Hernandez, onde ele fala mais de si mesmo do que qualquer outro poderia.
(Veja ao final link do site El Hombre, por sinal de um filho dele, que parece seguir bem os passos do pai. Certamente o Paulo ficará lá, na arquibancada).
Eu e o Paulo divergimos em muita coisa, mas aprendi a respeitá-lo. Assim como acho que ocorreu pelo lado dele. (Suas últimas palavras para mim, depois que lhe mandei a capa de meu romance Anita, foram, pelo Messenger: "looks good".
Passei a respeitar Paulo, primeiro, por sua humanidade e solidariedade na doença (quando eu fiquei doente, depois dele, quando adoeceu a primeira vez). Era surpreendente como alguém que podia ser às vezes tão prepotente podia também ser tão afetuoso. Algo que hoje, olhando para o exemplo dele, já não me parece um paradoxo.
Segundo, respeitei Paulo pelo talento para escrever. Era um jornalista que, contrariando um princípio da profissão, não entrevistava ninguém: seguia suas próprias ideias. Dirigia revistas e inventou um site de sucesso sem praticamente sair da sua cadeira.
Inicialmente um blog, o Diário do Centro do Mundo referia-se a Londres, onde ele foi morar, quando todas as caravelas que podia pegar no Brasil estavam para ele queimadas. Mas, para quem o conhecia, o nome era uma irônica referência a ele mesmo. O centro do mundo tinha nome e sobrenome. E assim, do seu centro particular, gostando-se do conteúdo ou não, ele conseguiu fazer um site que no último mês de vida de seu criador teve mais de 3 milhões de visitas, com 15 minutos de média de leitura por view.
Paulo foi ainda, e não menos importante, um esportista apaixonado, que jogava futebol e tênis mesmo puxando um pouco de uma perna, o que eu achava ser essencial e simbólico em sua biografia. Paulo lutou por sua vida e suas ideias com paixão, acima dos seus defeitos, das mazelas humanas e da opinião alheia.
Sim, paixão. Aquela força que é a razão de todos os sucessos, assim como de todos os fracassos, que ele igualmente conheceu.

http://www.elhombre.com.br/a-maior-plateia-de-um-homem-e-seu-pai/







terça-feira, 6 de junho de 2017

Giorgio, os protonerds e a marca de uma geração

Outro dia falei para a Mulher Desaparecida de Giorgio, de sua importância musical, de tudo o que representava para mim - e o mundo. Ela nunca tinha ouvido falar dele. Tirando os óculos escuros, minha mulher não deixa nada esquecido: descobriu que ele daria um show em São Paulo, comprou os ingressos de surpresa e lá fomos nós, algumas outras pessoas e muita coisa envolvida ao encontro do velho mago.

A caixa negra do espaço das Américas se abriu ao som e luzes de um dos artistas mais importantes para toda uma geração e cuja amplitude somente agora se vai descortinando. O inventor da música eletrônica, e agora pai da música digital, virou novamente moda, trazido de volta por adolescentes e jovens para quem, de repente, ele tem tudo a ver com os novos tempos. E como.


A plateia, não muito grande, que deixava espaços abertos na pista para dançar, era seleta e de todas as idades: não somente pais que levavam os filhos para ver o monstro sagrado, como jovens que descobriram Giorgio pelo fato dele ser hoje o que há de mais contemporâneo na música. Para minha surpresa, verifiquei que ele se encontra presente em grandes sucessos, num tempo em que a era digital faz uma releitura da base eletrônica que ele criou.

No Spotify, sua marca aparece desde no trabalho de seus seguidores, como David Guetta e Chainsmokers, até astros que foram atrás de sua mágica para criar grandes parcerias musicais, como Rihanna (That's what you came for"), Kylie Minogue (Right here, right now), Phil Oakey (Together in Electric Dreams) e Sistar (One more day).

Como ele mesmo ironizou em uma música de três anos atrás, "74 is the new 24". Agora, Giorgio tem 77 anos - e seu legado, assim como a marca dessa geração, se confunde com os tempos. Posso dizer isso de um ponto de vista muito particular.

Quando Giorgio começou a fazer sucesso, entre 1977 e 1980, eu fazia o segundo grau, curso de eletrônica, no Liceu Coração de Jesus. Naqueles três anos, formou-se a irmandade que completou o curso no célebre 3o. TRA, uma classe só de homens, amigos entre os 14 e 17 anos, para muitos dos quais ele se tornou um ídolo.

Numa época em que, como acontece com toda juventude, pouca gente nos entendia, Giorgio era como nós: a novidade surgindo pela tecnologia. As escolas então eram obrigadas por lei a dar um curso profissionalizante, e eu, achando que em Exatas se exigia mais dos alunos, juntei-me àquela turma de protonerds que rabiscavam circuitos eletrônicos em cadernos pautados, adoravam se meter nas galerias intrincadas da rua Santa Efigênia, então já a meca dos artigos eletrônicos em São Paulo, que ficava a curta distância do colégio - e descobriam de repente aquele sujeito que fazia música com máquinas ancestrais do computador.

Giorgio foi o primeiro a utilizar o sintetizador, um misturador de sons, por meio do qual os computadores faziam vozes que substituíam ou se mesclavam à voz humana. O resultado dava à música um poder e uma profusão muito maiores que os da velha guitarra, instrumento que Giovanni Giorgio chegou a tocar quando era ainda um músico imberbe.

Foi esse efeito que produziu aquele ídolo impossível, quando estouraram seus primeiros sucessos: não era apenas música, era o surgimento de um mundo novo, onde um sujeito que não sabia cantar, não tinha banda e era feio de doer, com seu bigode obsceno, podia se tornar um popstar. Sucessos como From Here To Eternity, hino eletrônico em que o grande astro não era de carne e osso, e sim a voz metalizada e incorpórea que anunciava o futuro, passou subitamente a dominar as rádios e mexia com a nossa imaginação.

Nós, os garotos estranhos que gostavam de coisas que ninguém ainda entendia, éramos feios de doer, desajeitados de dar dó e como consequência morríamos de medo das garotas em geral, passamos a ver o mundo a nosso favor. Giorgio nos dava energia, nos fazia interessantes, nos dava esperança. O mundo começava ali de um jeito diferente, e o futuro, de grandes mudanças, éramos nós.

Éramos protonerds, mas não alienados - éramos rebeldes. No colégio salesiano, submetido à rígida disciplina dos padres, estávamos sempre girando a roda no sentido contrário. Pela manhã, às vezes ainda escuro, fazíamos fila no pátio para ouvir o sermão, em geral do padre bedel, o implacável Perini, ou do padre Anderson, o reitor. Uniforme, missa, carteirinhas carimbadas. Não podíamos encostar nas garotas da Patologia e da Administração na hora do pátio: a vigilância era constante. Na sala de aula, com o bedel passando pelo corredor, olhando pelas janelas internas, ninguém podia dar um pio. Mas a gente não se conformava. O velho mundo seria sacudido como nunca.

Localizado nos Campos Elíseos, que já naquela época deixara de ser o antigo bairro dos casarões nobres de São Paulo, perto do centro e da antiga rodoviária, cheia de mendigos, bêbados e putas, os TRAs estavam sempre nos lugares errados, nas horas incertas. Às nove da manhã, um grupo podia ser encontrado num bar ali perto, tomando cerveja, ou comprando a revista Playboy de um jornaleiro que tornava as coisas mais fáceis, quando ver mulheres peladas, para adolescentes, ainda era uma coisa quase impensável.

Às vezes, conseguíamos escapar para ir aos cinemas do centro, que já funcionavam desde cedo, para assistir na sessão da nove da manhã pornochanchadas brasileiras ou filmes de putaria nos cinemas da Avenida Ipiranga. Foi assim que assistimos a obras-primas da velha adolescência como A Superfêmea, com Vera Fischer, Garganta Profunda e  120 Dias de Sodoma, que chegavam aos cinemas brasileiros com atraso, depois de vencer os surreais trâmites da censura da ditadura militar. Contávamos então com a vista grossa dos funcionários dos cinemas, que não ligavam para quem estava pagando ingresso, fossem os bêbados e vagabundos ou aqueles menores franzinos com uniforme de colégio.

Era uma turma estranha, divertida e unida. Até choque tomávamos juntos. Nas grandes mesas do laboratório de eletrônica, em grupos de seis, sentados na bancada lado a lado, quando alguém levava uma descarga elétrica de um lado, todos pulavam, em sequência, com uma onda serial de gritos. Os que eram pegos de surpresa ficavam putos, é claro. Mas era engraçado.

No terceiro ano, atingimos o nível infernal de comportamento. Quando os professores saíam da classe, fazíamos guerras de papel e queimávamos caneta com chiclete para jogá-las e grudá-las no teto de pé direito alto. Certo dia, fui pego subindo na torre da igreja pelo corredor do dormitório dos padres com duas garotas, na tentativa de ver a cidade do sino da torre. Não sei como, escapei de um severo castigo - talvez por ser protegido de um padre, primo de meu pai, muito influente por lá.

Enfrentávamos o sistema de todas as formas. Algumas delas era picarescas, como o dia em que eu, como entregador das cadernetas para o carimbo de presença, saí da secretaria com uma cópia mimeografada da prova de Televisão dentro da cueca. Televisão era uma matéria difícil como o diabo, que havia encarnado no professor, também um demônio. Vi o maço de folhas ao lado do mimeógrafo e não tive dúvida: me aproveitei do fato de que não havia ninguém ali no momento para surrupiar o documento.

Saí pé ante pé, para que a prova não fizesse barulho de papel amassado por baixo da calça. Depois de comprovar que aquela era mesmo a prova de Televisão, passei uma semana de medo, com receio de que alguém contasse o número de cópias da prova e desse pelo fato de que faltava uma. O professor de Televisão, um sujeito que nos odiava, porque criticávamos suas faltas constantes e transformávamos suas ausências em verdadeiros comícios para demiti-lo, tinha preparado um teste praticamente insolúvel com a clara intenção de nos prejudicar.

Fiz a única coisa que, depois daquele pequeno delito, me pareceu certa. Comuniquei que roubara a prova a todos da classe. Formamos um comitê com os alunos mais brilhantes de eletrônica para resolver as questões: Sérgio Soares (Cabelinho), Maurício Grego (o Grilo), Edgar Giorgiante (Dumdum) e Sergio Cabete (que não precisava de apelido). Levaram a semana inteira para concluir o que oficialmente teríamos apenas 40 minutos de prova para fazer.

Colamos, coletivamente. Cada um decorou as respostas, não podia dar nada errado. Quando as notas vieram, para nosso espanto, o homem nos dera de zero a 3 (nota máxima entre trinta alunos). Reclamamos. Eu, a essa altura na liderança do levante, com a ousadia de alguém que faz pose cheia de razão mesmo tendo um delito como base, demonstramos que as respostas seguiam o livro recomendado pelo professor e exigimos dos padres a revisão das notas.

Foi uma aula memorável. O professor, sentado à mesa, chamou os alunos um por um e revisou as notas. Tiramos todos entre 9 e 10 (menos o Eduardo Reis, hoje eminente advogado, tão averso à eletrônica que nem colar soube). O professor acusou outro - Miltão, mestre de administração, que havia fiscalizado a prova - de nos deixar colar, gerando a fúria do colega. Por fim, para nosso gaúdio, pressionado de todos os lados, Mr. TV pediu demissão.

O final do 3o TRA teve muitos lances memoráveis. No pátio, fazíamos pirâmides humanas. No esporte, ganhávamos de todos: as disputas eram entre nós. A final do campeonato de futebol daquele ano foi o time A do 3o. TRA contra o time B, supostamente mais fraco, onde eu me encontrava (os times eram cores, e o nosso era o Laranja, que logo apelidaram de Laranja Mecânica, como a Holanda maravilhosa da Copa de 1974, então o time mais famoso).

Depois de uma campanha gloriosa, em que marquei um gol sem tê-lo visto (um chute do meio de campo, num escuro fim de tarde, que dei sem os óculos de 5 graus, e só soube do resultado depois que os outros saíram pulando em comemoração), vencemos o time A da nossa própria classe num sábado pela manhã, pelo placar histórico de 3 a 1. Foi uma vingança interna: os rejeitados do "B" venceram os "craques" do A, que nunca aceitaram a derrota.

Nenhum evento, porém, foi maior que a Maratona Cultural, evento que incluía uma gincana de perguntas e respostas de várias matérias (eu respondia sobre literatura) e a apresentação de um espetáculo artístico. Era muito competitiva e eu queria ganhar, depois de perder da Patologia no campeonato benemérito de recolhimento de artigos para a caridade. Nós conseguíramos comida e cobertores para a campanha dos salesianos, mas a Patologia acabou vencendo com uma trapaça - trouxeram um caminhão cheio de papel higiênico e ficaram com mais pontos, porque o regulamento estabelecia o vencedor pela contagem de unidades.

Depois de muita discussão, num debate que substituiu uma aula de matemática de Mario Omura, com o consentimento do professor que até hoje nos ilumina com a paciência e a sabedoria dos chineses, eu assumi o comando do que iríamos apresentar na competição. Reuni textos de poetas brasileiros e, como não tínhamos mulheres na classe, com uma suada vaquinha compramos uma. Era uma estátua de jardim, réplica de uma escultura grega, uma musa de nariz reto e seios provocadores que se encontravam ligeiramente à mostra.

Tive muitos embates sem sucesso para fazer passar os textos dos poetas brasileiros pela censura dos padres, que não permitiam a declamação das partes mais picantes. Nossa musa, que pesava uma tonelada, saiu a muito custo de uma kombi para dentro do teatro, envergando um casaco militar, emprestado do figurino do teatro, para encobrir a sua nudez. Apareceram colaboradores de última hora. eduardo Bucciarelli, que no começo tinha sido contra a ideia do espetáculo, foi seu principal executivo. Cabelinho, que desaparecera misteriosamente, apareceu como por milagre para operar o gelo seco na hora H. E tudo funcionou.

No dia marcado, com a plateia lotada, a dissipação do gelo seco revelou a imagem, quando para já era tarde demais para qualquer reação dos censores. Assisti ao espetáculo que tínhamos ensaiado da boca de cena. Reinaldo Lino, Márcio Dudu Duailibi e outros desfiaram Vinícius de Moraes e o que de melhor pudemos salvar da poesia brasileira para aquela apresentação depois da censura religiosa. Quando o espetáculo terminou, senti meu corpo erguido no ar: Bahia e outros vinham me colocar em triunfo. Que pouco durou. Com um palhaço cantor, e um banco de praça num musical cheio de mulheres de carne e osso que encerrou a série de espetáculos, as meninas da Patologia levaram novamente o troféu, nos deixando o segundo lugar.

(Aprendi isso aí: as mulheres sempre ganham.)

Foram todos embora, enquanto eu fiquei. Sentei no banco da praça, deixado pelos concorrentes sobre o palco, olhando o teatro vazio. Estava triste, frustrado, exausto. O desgaste da luta contra o sistema se somara à derrota no fim para me liquidar. Nesse instante, porém, senti que não estava sozinho. Sentou ao meu lado Celso de Mello, professor de português, nosso ídolo e incentivador.

Ele, que nos divertia com suas histórias de literatura, subira ali para colocar a mão no meu ombro. Não disse nada. Somente na aula seguinte, sem mencionar o nome de ninguém, fez um discurso pintando a cena de um guerreiro, sentado num banco, depois da batalha, para dizer que nenhum luta era vã.

Foi assim que eu tive certeza de que meu caminho era o das letras, onde as lutas nunca estão perdidas, pois no mundo das ideias há sempre esperança para as boas causas e a necessidade de guerreiros que se lançam ao bom combate. Fui para um lado e meus amigos para outro. Estávamos todos, porém, cumprindo a profecia da nova era. O mundo avançaria, com a tecnologia e as ideias, o binômio indissociável e transformador.

No último dia de aula, depois de um jogo de futebol que encerrou as festividades de fim de ano, eu caminhava com um de meus colegas, o baixinho Ademir, com o calção e os meiões enrolados debaixo do braço. Íamos juntos pela calçada que dava na Avenida Rio Branco, onde ambos tomávamos o ônibus que levava para a Casa Verde, onde eu morava. Ademir estava triste: tinham acabado as aulas e não sabia qual seria o seu futuro. Achava que não entendia de eletrônica, sentia-se incapaz de passar no vestibular e o fim daqueles tempos parecia-lhe realmente um fim.

Um ano depois, quando eu cursava Ciências Sociais na USP e me preparava para prestar o vestibular de Comunicação, encontrei Ademir na Brunella, então famosa sorveteria da Avenida Sumaré. En quanto eu ainda andava pendurado pelo lado de fora dos ônibus lotados, porque não tinha dinheiro para pagar o bilhete, e assim podia descer no ponto sem entrar e passar na catraca, ele apareceu numa motocicleta Honda CB 250, novinha em folha.


Com um grupo de colegas da nossa classe, tinha sido convidado por um de nossos professores de eletrônica, Jefferson, para trabalhar na Itautec. Era a empresa que começava, no Itaú, a instalação pioneira de caixas eletrônicos e a substituição das filas bancárias pelo auto-atendimento. Um trabalho que fez muitos de meus amigos, ainda nem entrados na faculdade, praticamente ricos. Viajavam de cidade em cidade, instalando equipamentos nas agências - um processo que se tornava irrecorrível, obrigaria muitos bancários a mudar de emprego e mudaria o comportamento e a sociedade.

Na música, Giorgio também entrava em novas eras e capitalizava seu momento. Ajudou a impulsionar a onda Disco, um dos maiores fenômenos sociais da história. Foi ele que usou a voz de Donna Summer, futura rainha da era Disco, como mais um elemento sintético no som transcedental de I Feel Love. Seu sintetizador esteve por trás da voz de Summer em muitos outros sucessos, elevando a energia daquela extraordinária mulher a uma potência cósmica. A tecnologia criava também uma força impulsionadora na vida de todos nós.

Giorgio fez muita coisa que atravessou nossa juventude. Da trilha sonora de Top Gun ("Take My Breath Away) à criação de uma nova figura: sem ele, não teriam existido as subsequentes gerações de DJs, que começaram a tocar música em festas e clubes com novos recursos e mais tarde passaram a produzir música original, tornando-se astros como ele. A era eletrônica evoluiu para a digital e a música de Giorgio continuou inovadora e atual.

Outros ídolos se juntaram para mim a Giorgio, na música e na vida. Com Cazuza, Legião Urbana, David Bowie e tantos outros embalamos grandes mudanças, no mundo e no Brasil, da antiga ditadura militar à democracia, ao restabelecimento do Estado de Direito, a estabilização econômica e por fim a luta que perdura rté hoje, de um maior equilíbrio econômico e social. A tecnologia mudou o mundo, assim como as ideias, que são o começo de todas as transformações. Mas nem tudo foi resolvido.

Muita gente não conhece bem Giorgio e o que aconteceu nessa geração. Eu mesmo ouço novamente Giorgio e só agora alcanço a dimensão do que fizemos. Mais: entendo que não envelhecemos. A base do que lançamos, ainda é que faz germinar o futuro. O que nós sonhamos na juventude ainda é o que move o mundo. A tecnologia. E as ideias.

Todos nós do 3o. TRA ficamos mais velhos. Mas nunca nos separamos: entre nós, falamos dos membros da classe como os "irmãos". Estamos sempre em contato e de vez em quando nos reunimos em encontros carinhosos e barulhentos. Giorgio também envelheceu. Seu proverbial bigode hoje está branco como seus cabelos. Mas ele ainda mostra o caminho. Eu tenho 53 anos e saí de seu show pensando que 53 é o novo 23. Nessa geração, o mundo mudou muito, mas o que fazemos, a mudança que iniciamos, ainda está em curso. Este mundo ainda precisa de guias, de criadores, de gente com grandes certezas, que espera completar a missão de transformação. Precisa de nós. E disso, estou certo, só sairemos para a eternidade.


Nossa musa, que hoje ainda repousa no jardim da família do Lino

A pirâmide, símbolo das nossas ambições

A pirâmide registrada de baixo

O 3o TRA alinhado nas velhas arcadas

Festa de despedida que nunca aconteceu

No centro, embaixo, Celso de Mello, o mestre

Eu aí à direita, agarrado ao Luís Bucciarelli, entre amigos tão caros: Celso ao centro e Mané, completando a fileira central, Fossa e Rogério (agachados), atrás, Mauricio Fortes e marco Antonio Rocco



quinta-feira, 1 de junho de 2017

Um menino vai a Paris

Minha mãe estava já na fase terminal do câncer quando lhe mostrei aquela folha, a avaliação escolar de meu filho André, então com apenas dois anos de idade. Dona Marlene, professora primária, educadora a vida inteira, apanhou a folha nas mãos e chorou.

(Acho que a vi chorar apenas duas vezes na vida. A outra foi na morte de um cachorro.)

Este sábado, meu filho, que agora tem dez anos, embarca com a escola para Paris. Fez com seus coleguinhas um filme que será apresentado num festival da Academia Francesa, na Cinemateca de Paris, com a abertura feita pelo cineasta grego Costa-Gavras. André trabalhou no filme como ator, roteirista e editor. E só consigo pensar no que minha mãe sentiria, se estivesse viva.

Dona Marlene era apaixonada por Costa-Gavras. Talvez hoje pouca gente o conheça, mas ele é um dos cineastas mais importantes para toda uma geração. Z, filme da década de 1960, tornou-se um símbolo de liberdade, não apenas na Grécia, como em todo o mundo e especialmente no Brasil, onde sua exibição foi proibida pela ditadura militar. Eu era ainda criança quando minha mãe me levou para, afinal, assistir Z. As cenas de combate entre a polícia e o povo na rua, que pichava o asfalto com a letra que dá nome ao filme, ficaram na minha memória para sempre. Quando penso na luta contra o arbítrio, penso em Z: Z de Zorro, o Z grego de liberdade.

Tentei explicar a André quem é Costa-Gavras. Ele nasceu num país democrático e livre e procurei mostrar a ele como foi difícil chegar até aqui e quanto esforço, coração e mesmo a vida de muita gente foram empenhados nisso. Quando André embarcar para Paris, tenho certeza de que vou ter de segurar uma vontadinha de chorar. Não por ele, que aos dez anos é cidadão do mundo e está acostumado a viajar. É por minha mãe - e pensar que, em algum lugar, ela estará chorando pela terceira vez.


quinta-feira, 4 de maio de 2017

Dez coisas




Dez coisas sobre minha pessoa, só uma não é verdade. (do Facebook)

1- Meu primeiro grande trabalho para me sustentar como estudante de jornalismo e ciencias sociais foi contracenar num comercial de eletrodoméstico fazendo o papel de namorado da Giulia Gam. Mas Giulia Gam desistiu e acabei filmando com a Sandra Annenberg.

2. Apareci na TV só de cueca num comercial da Zorba, mas fiquei mais famoso falando apenas a palavra "menta" num comercial de pasta de dentes, junto com o jogador Sócrates.

3. Meu primeiro trabalho como redator foi escrever uma carta explicando ao mercado publicitário que um agente de modelos não tinha fugido com dinheiro roubado.

4. Levei sete anos para escrever meu primeiro romance, fazendo perguntas por escrito a um velho surdo.

5. Como repórter, escrevi uma matéria sobre um homem que fazia chover que foi para a primeira página de um jornal de negócios.

6. Passei um mês colocando bilhetes por baixo da porta do apartamento de um cantor que queria entrevistar, porque ele não falava com ninguém e tinha uma metralhadora, mas não tinha telefone.

7. Abracei um tigre branco e tomei banho numa lagoa no meio de dezenas de jacarés.

8. Por ser jornalista, fui julgado num tribunal indígena, numa língua que não entendia, e escapei da pena de morte.

9. Entrevistei Eike Batista sob a mira de uma pistola.

10. Roberto Civita dizia que eu "como jornalista sou um grande contador de histórias".

Respostas:

8 - É verdadeira. Fiquei 4 dias na tribo kuikuro, no Xingu, para fazer um documentário, como pode testemunhar o amigo e autor da iniciativa James Lynch. Lá o dono da festa disse que não nos conhecia e fomos a julgamento na maloca do chefe Afukaká. Quando descobriram que eu era jornalista, senti o calor da caldeirinha. A gente não entendia nada do que diziam - os membros do tribunal falavam em caribe, a língua kuikuro. Mas a gritaria, os arcos retesados e os tacapes balançando ameaçadoramente ao nosso redor eram bastante eloquentes. Naquela época havia na reserva uma equipe de cinema francesa sequestrada pelos kalapalo, o que não dava margem para otimismo. O terceiro cacique, Jacalo, nos livrou do enrosco. No final, virei uma espécie de sábio para eles - "tales" em caribe quer dizer "seiva da árvore", ou aquilo que dá a vida. Então eu já vinha com um nome anímico, muito importante para o índio. Pudemos assistir o quarup até o final, mas proibidos de filmar ou fotografar, razão pela qual existem poucos registros da viagem. Foi uma das experiências mais fortes da minha vida. Fomos embora de teco-teco, o que por si parece temerário, mas naquelas condições foi um verdadeiro alívio. Aquela experiência foi muito util para escrever A Conquista do Brasil. Entendo perfeitamente o sufoco que José de Anchieta passou como refém em Iperoig.

9 - Verdadeira. Quando eu era editor da VIP, ainda um suplemento de Exame, escrevi uma capa sobre Eike. Na época ele não falava com a imprensa. Mas, por vaidade, queria contar a história de como se tornara campeão de corrida de superlancha nos Estados Unidos, com um barco milionário, que, depois de se irritar perdendo muito, construíra para jogar spray em todos os adversários. Batizou-o de Spirit of The Amazon, homenagem à forma como ele começara sua fortuna, comprando ouro dos garimpeiros para revendê-lo. Era um negócio muito arriscado e ele passara a andar armado. Eike me recebeu no seu escritório no Flamengo. Quando saí do elevador, vi o próprio Eike, sentado à mesa de trabalho, atrás de duas paredes de vidro blindado. Tinha uma pistola sobre a mesa, virada para a porta - e seu interlocutor. Quando sentei, perguntei para que servia a arma. Ele abriu a gaveta e me mostrou grande quantidade de munição. "É por garantia", ele disse. "Vejo quem entra daqui mesmo, sentado." E manteve a pistola virada para mim sobre a mesa, durante toda a entrevista. Num outro dia, fizemos as fotos em outra de suas lanchas de corrida, na Marina da Glória. Eike ainda navegava no início de seu casamento com Luma de Oliveira, que veio receber a mim e o fotógrafo Sérgio Zallis na porta do iate clube com o filho Thor no colo - ele era ainda um bebê. Zallis e eu navegamos na água suja da baía num iate de um amigo de Eike, no alto da ponte de comando, para fotografá-lo dentro da lancha de corrida de cima para baixo. Foi a primeira entrevista de Eike na imprensa - e a única por mais de uma década.

6 - Verdadeira. O cantor é o Geraldo Vandré. A reportagem que escrevi em VIP foi referência para as duas biografias dele que saíram ano passado. Nenhum dos biógrafos conseguiu entrevistá-lo. Ele não tinha telefone. E sim, tinha uma metralhadora em casa, modelo soviético. Depois de um mês escrevendo a ele em bilhetes por baixo da porta, ele me telefonou. De um orelhão.

5 - A número 5 não é exatamente mentira, apenas contém um erro de informação. Não se tratava de um homem que fazia chover, mas que tirava magicamente água das profundezas da terra. Eu trabalhava na seção de nacional, na Gazeta Mercantil, e cobria uma seca prolongada em São Paulo que começava a afetar os negócios. Todo dia, tinha de escrever uma matéria sobre a seca. Depois de um mês, já não sabia o que fazer: entrevistara metereologistas, fizera uma reportagem sobre um teco-teco vindo do Nordeste que bombardeava nuvens...Então propus uma matéria sobre radiestesistas, que acham água debaixo da terra com uma reles varinha de salgueiro. Fui a São Caetano e entrevistei um deles, Nikolaus Frank. O outro chamava-se Herbert Radler (não tem explicação, mas os mestres da radiestesia eram húngaros). Com Nikolaus segurando uma haste e eu a outra, fiz o teste da varinha na cozinha de sua casa, onde ele dizia haver um "veio d'água". Entortava!. Entrevistei geólogos, que diziam não haver base científica para aquilo, porque a vara de salgueiro não é condutora de eletricidade - e Frank afirmava que era justamente a descarga elétrica que os deixava com as mãos entortadas e de nervos saltados. Acrescentavam que não existiam "veios d'água" debaixo da terra. O jornalista Alexandre Gambirasio, então secretário de redação, deu bola preta para a matéria. Disse que nada tinha a ver com um jornal de economia. Meio enfezado, voltei a campo. Aí descobri que empresas de alta tecnologia, em desespero, estavam contratando o homem da varinha para furar poços em suas fábricas, no meio da seca. Aí Alexandre não apenas deixou a matéria ser publicada como a colocou na primeira página do jornal. O título: "Phillips recorre ao homem da varinha".

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Anita na Record

Era um hoje já distante 1998 quando vi Gore Vidal em Ravello, na Itália. Estava na fila da agência bancária, a única que havia no velho paese amalfitano. Claro que não fui perturbá-lo. Fiquei olhando, de longe, em silêncio: o escritor ao vivo.

Eu, que ainda labutava para publicar meu primeiro romance, e mal imaginava como era viver de escrever sem precisar de um  emprego, sonhava. Ainda mais com trabalhar em casa, num lugar como aqueles: a magnífica cidade dos jardins suspensos sobre o mar, onde Vidal passava metade do ano.

Não eram os livros. Era a vida do escritor, como só podia ser.

Vidal escreveu um de meus romances favoritos; Criação.  No meio da bacia das almas que virou o mundo, talvez hoje pouca gente o conheça. Mas ele pertenceu a uma grande geração de romancistas que eram, também, grandes vendedores de livros - e verdadeiros astros da literatura e das artes. Como Gabriel Garcia Márquez (Cem Anos de Solidão). James Michener (A Fonte de Israel).

Havia entre eles alguns autores "populares", como Irving Wallace, mestre da introdução dos leitores da minha geração em assuntos eróticos, e Sidney Sheldon, que gostava de mostrar a podridão humana por trás do sucesso e da fama. Comparados com os escritores populares de hoje, eram alta literatura.

Todos tinham duas coisas em comum. Primeiro, eram grandes autores, de obras com qualidade literária e que ao mesmo tempo conseguiam ser lidos por milhões de leitores em todo o mundo, prova de que uma coisa não exclui a outra. O segundo ponto em comum: no Brasil, a maioria deles era publicada pela editora Record. Por isso, não posso deixar de rever essa galeria na minha frente, ao receber meu novo romance, Anita, com aquele mesmo selinho mágico dos autores que sempre admirei.

Há alguns anos, assisti na Flip uma entrevista ao vivo com a escritora peruana de ascendência chilena Isabel Allende - outro exemplo de sucesso de crítica e público, igualmente publicada no Brasil pela Record. Mulher admirável, dotada de ironia fina e simpatia rara, mostrava-se em pessoa como nos livros: uma sutil observadora da alma humana. Perguntaram a ela se, depois de anos a fio na mesma casa, ela trocaria de editora. Allende respondeu que a Record acreditou nela quando ainda "não era ninguém" - e seguiu acreditando. "Por quê mudaria agora?", disse.

Uma das coisas essenciais para um autor é a empatia com o editor. O mais importante, para um autor, é ter um editor que gosta do que ele faz, que acredita nele incondicionalmente, e segue com ele em sua trajetória no longo curso. Num trabalho tão solitário, com a exceção do agente, o editor é seu único interlocutor. O prazer de um editor ao fazer algo com entusiasmo é a semente das grandes parcerias e dos grandes sucessos. (Para quem não viu, recomendo vivamente o filme Gênio, com Colin Firth, exatamente sobre essa relação).

Não por acaso a Record é a maior editora do Brasil. Eles simplesmente gostam do que fazem e com quem fazem. Parece simples. E é simples. Dessa simplicidade vem tudo.

Eu há muito tempo vivo do que escrevo, nas cada vez mais longas fases da vida em que tenho passado sem emprego. Porém, ao ver Anita, um punhado de papel que sopeso nas mãos, me sinto novamente o rapazola deslumbrado que encontrou Gore Vidal na fila do banco, naquela tarde inesquecível.

Aquele jovem em viagem pela costa amalfitana ainda mora dentro de mim e me lembra que escrever não é publicar livros: é uma forma de viver. Mesmo que às vezes a um alto custo, agradeço por poder viver sem abandonar meus sonhos.

sexta-feira, 24 de março de 2017

Anita e as mulheres

Uma das histórias mais impressionantes da vida de Anita Garibaldi é a da sua decisão de abandonar os filhos com desconhecidos pescadores na costa de Nice, para seguir até Roma, onde se encontrava o marido. Não apenas porque a viagem seria cheia de perigos e ela estava, na prática, indo ao encontro da guerra. Foi um desafio para mim quando escrevia "Anita", romance que está sendo lançado agora pela Editora Record. Eu não entendia exatamente aquilo: como uma mãe podia abandonar os filhos. Com desconhecidos. E para juntar-se ao marido.


Para as feministas de hoje, as pessoas que discutem o "empoderamento" da mulher, seus direitos e problemas na sociedade contemporânea, Anita é um tema muito atual.

Para ela, naquela situação, não adiantava ficar com os filhos - estar ao lado do marido, e na guerra, era mais importante. Caso perdessem a guerra, seriam todos mortos. Certamente os austríacos não deixariam vivos os filhos de Garibaldi. E ela não podia deixar as crianças com alguém conhecido, rastro que os inimigos saberiam seguir. Precisava deixá-los com alguém sem qualquer relação com a família.

Era uma decisão duríssima. Pode ser paradoxal, mas foi pensando nos filhos, em salvá-los, que ela os abandonou à própria sorte. O maior perigo, no fim das contas, era eles estarem com a mãe. O tempo mostrou que tinha razão.

Obrigado a entrar na pele dessa mulher, fiz um exercício que me levou a ver as mulheres de uma forma diferente. Entendi, a partir do exemplo de Anita, muita coisa que vi das mulheres ao longo da vida.

Quem mais que uma mãe pode estar 100% com os filhos? No entanto, é difícil definir o que é 100%.

Aprendi, olhando pelos olhos de Anita, que a ausência também pode ser uma forma de amor extremo. E que as coisas se misturam. Assim como Anita pensava nos filhos, é verdade também que ela desejava ir para a guerra. Depois de anos em Montevidéu, na maior parte dos quais ela cuidou das crianças ainda pequenas, estava cansada da vida doméstica. No Uruguai, tomara a decisão de levar os filhos ao front de guerra. Ela, tanto quanto Garibaldi, precisava da liberdade. Da luta. Independentemente das crianças.

De Nice, grávida, ela foi para a guerra pelos filhos, é verdade. Foi pelo marido. Mas acho que foi mais, no fim das contas, por si própria.

Garibaldi teve muitas mulheres, mas casou-se com Anita porque ela era como ele, capaz de levar uma vida com a sua, e não se conformava em ser de outra forma. E a entendia, porque também ele tinha o espírito indomável da liberdade. Era isso que fazia de ambos verdadeiros revolucionários. Fazia deles quem eram.

Casou-se com ela porque eram iguais.

Garibaldi é o maior heroi da história italiana, e acredito que sua trajetória é a mais impressionante, inacreditável e quase inverossímil da história universal. Mas acredito que, para ele, Anita era ainda maior.

Anita me fez pensar sobre a coragem, a maternidade e sobre o amor. Melhor, me fez sentir.  Essa é, afinal, a tarefa do romance. Não basta sabermos uma coisa. É preciso senti-la. Ao final, não estamos apenas conscientes, mas transformados por viver uma experiência .

Anita para mim ainda é uma personagem transformadora, para homens e mulheres. Escrevi Anita, escolhi Anita, porque precisava. E isso me ajudou. Saí do livro diferente do que entrei. É a aventura que proponho ao seu leitor.

quarta-feira, 22 de março de 2017

Um encontro em Assis

É uma noite luminosa, não só porque as abóbadas pintadas de azul cobalto têm estrelas douradas, como pelo facho divino que entra pelas janelas do templo gótico. Caminho sobre o mármore da Basílica de São Francisco, em Assis, a Assisi dos italianos, e sinto a presença dela.

Ali ela esteve, viu aquelas estrelas idílicas; viu a tumba do santo que nasceu naquela cidade, sob a sombra da fortaleza destruída pelo povo oprimido, reconstruída pela força do Papa, no tempo em que este era também um senhor feudal, com poderes temporais como os dos reis terrenos, como jamais foi Jesus.

O santo também rebelado: contra o pai, rico tecelão, que decidiu se vestir como um asceta, em trajes de retalho, como o que vemos na "sala das relíquias"; contra a igreja, cujo sacerdócio rejeitou, para fundar sua própria ordem. O santo que criou uma legião de despossuídos para peregrinar pelo mundo propagando a fé católica. Inclusive pelo mundo muçulmano, que a igreja católica então combatia com a espada.

Pela roupa, Francisco se tornou símbolo de despojamento e simplicidade, que transformou "franciscano" em adjetivo. Pelo propósito, associou-se à paz e à fraternidade. Provavelmente por isso, passou a ser representado na companhia das pombas brancas, pássaros e animais silvestres, porque associamos a paz à natureza selvagem, não ao ser humano, concupiscente e belicoso.

Há quinze anos, minha mãe esteve diante do santo, da sua tumba de pedra sobre pedras, e do seu legado; caminhou pelas mesmas ruas, na cidade luminosa de vielas medievais, com seu templo romano, transformado em igreja. Ali ela foi feliz: entendi, ou melhor, senti o que ela sentiu diante da história. E sua identificação com aquele santo. Como ele, minha mãe acreditava nas pessoas, na capacidade de mudança, no poder transformador da bondade e do amor pelo próximo; acreditava, como Francisco, no ser humano.

Ela, professora, certamente venerou aqueles restos, assim como seu significado. Rezou pela mudança da Humanidade, ela que me ensinou no padre-nosso a pedir "pelas criancinhas"; certamente rezou por mim e pela minha mudança. 

Iluminou-se com a vista deslumbrante da cidade, tendo aos pés a colcha de retalhos verdes que se estende até as montanhas nevadas. Ali os romanos instalaram sua fortaleza, depois sua cidade, antes de ser território da fé, e da felicidade de minha mãe, contagiada por tamanha beleza.

Assisi tinha e ainda tem tudo o que ela gostava. As alamedas bem cuidadas, com vasos de flores na escada das casas; os nichos pintados nas paredes, com imagens de santos; os monges franciscanos com seus longos hábitos; os alegres grupos de estudantes circulando nos cafés e nas praças, as vielas imprecisas onde de repente avistamos o vale e o além entre paredes de pedra.

Um lugar da de elevação do homem e do espírito, onde minha mãe encontrou alegria, encontrou amizade, encontrou paz. De todo o tempo em que ela andou pela Itália, quatro meses distante, ela me falava mais de Assisi. 

Lá ficava a casinha do amigo, talvez namorado, que ela tinha puderes de definir como tal. Da casa desse homem, que não sei quem é, ela dizia ver a catedral; falava da cidade, da luz, e que era o único lugar onde ela pensou, realmente, em ficar para nunca voltar.

Hoje ela está ainda mais distante, porém, nunca me pareceu tão perto. Ando pela nave central da Basílica, rumo à saída; sinto a presença de minha mãe, como se ela tivesse me levado até ali. Ela sempre quis que eu visse a vida pelos olhos dela, e ali estava: eu via Assisi por seus olhos, e vi a vida também. Foi como uma mensagem, soprada do além. 

Não havia apenas amargura, o rancor, a dor dos tempos de briga. Era uma mensagem também de paz: dizia estar bem, e assim eu pude ver também o que havia de bom: eu sua alegria, sua boa-fé, seu amor. E isso me conforta o coração.

Minha mãe de rancores e mágoas, de brigas ferozes, tanto quanto de doçura e amor: penso que ela é que havia me levado até ali, pela mão, como mãe e professora, como sempre foi. Levou o filho invisivelmente até Assisi, para que Assisi falasse por ela. 

E eu, que nunca aceitei ver as coisas como ela via, faço em Assisi o que nunca pude, quando isso significava ser eu mesmo, reafirmar o que queria, diante de minha mãe. Em Assisi eu vejo pelos olhos dela, me rendo, baixo as armas, como numa comunhão.

Por ela, ou melhor, para entender as mulheres, as mães, sua luta, mesmo que ás vezes pareça contra os filhos, escrevi Anita, que está saindo agora nas livrarias. Minha mãe tem me falado por muitas vias: pelo olhos de Anita hoje eu vejo as mulheres, eu entendo, eu perdoo, e sou obrigado a também pedir perdão, pelos tempos de incompreensão.

Saio da Basílica chorando; não de tristeza, e sim de alegria por um encontro há muito esperado; choro de amor, de saudade, de felicidade com uma antes impossível conciliação. A cidade sob o sol radioso do inverno, tão perto do céu, me fez agradecer a vida, a vida que ela me deu; choro por estar vivo, e por ela me dar o caminho, me ensinar o caminho, até hoje. Choro por tê-la ajudado a chegar a Assisi, e de gratidão, por poder segui-la até ali.

Minha mulher me dá um abraço; ela, que é mulher, filha, e também mãe, é calorosa, sem nada perguntar. Mais tarde, quando vamos embora, no carro, ela me pergunta se ainda guardo mágoa de minha mãe. Não, respondo eu, não tenho mais por quê. 

Pena que só sabemos essas coisas quando é tarde demais; mas sei que de alguma forma converso com ela. Assisi não foi um lugar, foi um encontro. Ela está bem, eu disse, cessou a tempestade; é a única coisa que faltava para eu baixar também a guarda; agora eu posso descansar.
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