quarta-feira, 5 de abril de 2017

Anita na Record

Era um hoje já distante 1998 quando vi Gore Vidal em Ravello, na Itália. Estava na fila da agência bancária, a única que havia no velho paese amalfitano. Claro que não fui perturbá-lo. Fiquei olhando, de longe, em silêncio: o escritor ao vivo.

Eu, que ainda labutava para publicar meu primeiro romance, e mal imaginava como era viver de escrever sem precisar de um  emprego, sonhava. Ainda mais com trabalhar em casa, num lugar como aqueles: a magnífica cidade dos jardins suspensos sobre o mar, onde Vidal passava metade do ano.

Não eram os livros. Era a vida do escritor, como só podia ser.

Vidal escreveu um de meus romances favoritos; Criação.  No meio da bacia das almas que virou o mundo, talvez hoje pouca gente o conheça. Mas ele pertenceu a uma grande geração de romancistas que eram, também, grandes vendedores de livros - e verdadeiros astros da literatura e das artes. Como Gabriel Garcia Márquez (Cem Anos de Solidão). James Michener (A Fonte de Israel).

Havia entre eles alguns autores "populares", como Irving Wallace, mestre da introdução dos leitores da minha geração em assuntos eróticos, e Sidney Sheldon, que gostava de mostrar a podridão humana por trás do sucesso e da fama. Comparados com os escritores populares de hoje, eram alta literatura.

Todos tinham duas coisas em comum. Primeiro, eram grandes autores, de obras com qualidade literária e que ao mesmo tempo conseguiam ser lidos por milhões de leitores em todo o mundo, prova de que uma coisa não exclui a outra. O segundo ponto em comum: no Brasil, a maioria deles era publicada pela editora Record. Por isso, não posso deixar de rever essa galeria na minha frente, ao receber meu novo romance, Anita, com aquele mesmo selinho mágico dos autores que sempre admirei.

Há alguns anos, assisti na Flip uma entrevista ao vivo com a escritora peruana de ascendência chilena Isabel Allende - outro exemplo de sucesso de crítica e público, igualmente publicada no Brasil pela Record. Mulher admirável, dotada de ironia fina e simpatia rara, mostrava-se em pessoa como nos livros: uma sutil observadora da alma humana. Perguntaram a ela se, depois de anos a fio na mesma casa, ela trocaria de editora. Allende respondeu que a Record acreditou nela quando ainda "não era ninguém" - e seguiu acreditando. "Por quê mudaria agora?", disse.

Uma das coisas essenciais para um autor é a empatia com o editor. O mais importante, para um autor, é ter um editor que gosta do que ele faz, que acredita nele incondicionalmente, e segue com ele em sua trajetória no longo curso. Num trabalho tão solitário, com a exceção do agente, o editor é seu único interlocutor. O prazer de um editor ao fazer algo com entusiasmo é a semente das grandes parcerias e dos grandes sucessos. (Para quem não viu, recomendo vivamente o filme Gênio, com Colin Firth, exatamente sobre essa relação).

Não por acaso a Record é a maior editora do Brasil. Eles simplesmente gostam do que fazem e com quem fazem. Parece simples. E é simples. Dessa simplicidade vem tudo.

Eu há muito tempo vivo do que escrevo, nas cada vez mais longas fases da vida em que tenho passado sem emprego. Porém, ao ver Anita, um punhado de papel que sopeso nas mãos, me sinto novamente o rapazola deslumbrado que encontrou Gore Vidal na fila do banco, naquela tarde inesquecível.

Aquele jovem em viagem pela costa amalfitana ainda mora dentro de mim e me lembra que escrever não é publicar livros: é uma forma de viver. Mesmo que às vezes a um alto custo, agradeço por poder viver sem abandonar meus sonhos.

sexta-feira, 24 de março de 2017

Anita e as mulheres

Uma das histórias mais impressionantes da vida de Anita Garibaldi é a da sua decisão de abandonar os filhos com desconhecidos pescadores na costa de Nice, para seguir até Roma, onde se encontrava o marido. Não apenas porque a viagem seria cheia de perigos e ela estava, na prática, indo ao encontro da guerra. Foi um desafio para mim quando escrevia "Anita", romance que está sendo lançado agora pela Editora Record. Eu não entendia exatamente aquilo: como uma mãe podia abandonar os filhos. Com desconhecidos. E para juntar-se ao marido.


Para as feministas de hoje, as pessoas que discutem o "empoderamento" da mulher, seus direitos e problemas na sociedade contemporânea, Anita é um tema muito atual.

Para ela, naquela situação, não adiantava ficar com os filhos - estar ao lado do marido, e na guerra, era mais importante. Caso perdessem a guerra, seriam todos mortos. Certamente os austríacos não deixariam vivos os filhos de Garibaldi. E ela não podia deixar as crianças com alguém conhecido, rastro que os inimigos saberiam seguir. Precisava deixá-los com alguém sem qualquer relação com a família.

Era uma decisão duríssima. Pode ser paradoxal, mas foi pensando nos filhos, em salvá-los, que ela os abandonou à própria sorte. O maior perigo, no fim das contas, era eles estarem com a mãe. O tempo mostrou que tinha razão.

Obrigado a entrar na pele dessa mulher, fiz um exercício que me levou a ver as mulheres de uma forma diferente. Entendi, a partir do exemplo de Anita, muita coisa que vi das mulheres ao longo da vida.

Quem mais que uma mãe pode estar 100% com os filhos? No entanto, é difícil definir o que é 100%.

Aprendi, olhando pelos olhos de Anita, que a ausência também pode ser uma forma de amor extremo. E que as coisas se misturam. Assim como Anita pensava nos filhos, é verdade também que ela desejava ir para a guerra. Depois de anos em Montevidéu, na maior parte dos quais ela cuidou das crianças ainda pequenas, estava cansada da vida doméstica. No Uruguai, tomara a decisão de levar os filhos ao front de guerra. Ela, tanto quanto Garibaldi, precisava da liberdade. Da luta. Independentemente das crianças.

De Nice, grávida, ela foi para a guerra pelos filhos, é verdade. Foi pelo marido. Mas acho que foi mais, no fim das contas, por si própria.

Garibaldi teve muitas mulheres, mas casou-se com Anita porque ela era como ele, capaz de levar uma vida com a sua, e não se conformava em ser de outra forma. E a entendia, porque também ele tinha o espírito indomável da liberdade. Era isso que fazia de ambos verdadeiros revolucionários. Fazia deles quem eram.

Casou-se com ela porque eram iguais.

Garibaldi é o maior heroi da história italiana, e acredito que sua trajetória é a mais impressionante, inacreditável e quase inverossímil da história universal. Mas acredito que, para ele, Anita era ainda maior.

Anita me fez pensar sobre a coragem, a maternidade e sobre o amor. Melhor, me fez sentir.  Essa é, afinal, a tarefa do romance. Não basta sabermos uma coisa. É preciso senti-la. Ao final, não estamos apenas conscientes, mas transformados por viver uma experiência .

Anita para mim ainda é uma personagem transformadora, para homens e mulheres. Escrevi Anita, escolhi Anita, porque precisava. E isso me ajudou. Saí do livro diferente do que entrei. É a aventura que proponho ao seu leitor.

quarta-feira, 22 de março de 2017

Um encontro em Assis

É uma noite luminosa, não só porque as abóbadas pintadas de azul cobalto têm estrelas douradas, como pelo facho divino que entra pelas janelas do templo gótico. Caminho sobre o mármore da Basílica de São Francisco, em Assis, a Assisi dos italianos, e sinto a presença dela.

Ali ela esteve, viu aquelas estrelas idílicas; viu a tumba do santo que nasceu naquela cidade, sob a sombra da fortaleza destruída pelo povo oprimido, reconstruída pela força do Papa, no tempo em que este era também um senhor feudal, com poderes temporais como os dos reis terrenos, como jamais foi Jesus.

O santo também rebelado: contra o pai, rico tecelão, que decidiu se vestir como um asceta, em trajes de retalho, como o que vemos na "sala das relíquias"; contra a igreja, cujo sacerdócio rejeitou, para fundar sua própria ordem. O santo que criou uma legião de despossuídos para peregrinar pelo mundo propagando a fé católica. Inclusive pelo mundo muçulmano, que a igreja católica então combatia com a espada.

Pela roupa, Francisco se tornou símbolo de despojamento e simplicidade, que transformou "franciscano" em adjetivo. Pelo propósito, associou-se à paz e à fraternidade. Provavelmente por isso, passou a ser representado na companhia das pombas brancas, pássaros e animais silvestres, porque associamos a paz à natureza selvagem, não ao ser humano, concupiscente e belicoso.

Há quinze anos, minha mãe esteve diante do santo, da sua tumba de pedra sobre pedras, e do seu legado; caminhou pelas mesmas ruas, na cidade luminosa de vielas medievais, com seu templo romano, transformado em igreja. Ali ela foi feliz: entendi, ou melhor, senti o que ela sentiu diante da história. E sua identificação com aquele santo. Como ele, minha mãe acreditava nas pessoas, na capacidade de mudança, no poder transformador da bondade e do amor pelo próximo; acreditava, como Francisco, no ser humano.

Ela, professora, certamente venerou aqueles restos, assim como seu significado. Rezou pela mudança da Humanidade, ela que me ensinou no padre-nosso a pedir "pelas criancinhas"; certamente rezou por mim e pela minha mudança. 

Iluminou-se com a vista deslumbrante da cidade, tendo aos pés a colcha de retalhos verdes que se estende até as montanhas nevadas. Ali os romanos instalaram sua fortaleza, depois sua cidade, antes de ser território da fé, e da felicidade de minha mãe, contagiada por tamanha beleza.

Assisi tinha e ainda tem tudo o que ela gostava. As alamedas bem cuidadas, com vasos de flores na escada das casas; os nichos pintados nas paredes, com imagens de santos; os monges franciscanos com seus longos hábitos; os alegres grupos de estudantes circulando nos cafés e nas praças, as vielas imprecisas onde de repente avistamos o vale e o além entre paredes de pedra.

Um lugar da de elevação do homem e do espírito, onde minha mãe encontrou alegria, encontrou amizade, encontrou paz. De todo o tempo em que ela andou pela Itália, quatro meses distante, ela me falava mais de Assisi. 

Lá ficava a casinha do amigo, talvez namorado, que ela tinha puderes de definir como tal. Da casa desse homem, que não sei quem é, ela dizia ver a catedral; falava da cidade, da luz, e que era o único lugar onde ela pensou, realmente, em ficar para nunca voltar.

Hoje ela está ainda mais distante, porém, nunca me pareceu tão perto. Ando pela nave central da Basílica, rumo à saída; sinto a presença de minha mãe, como se ela tivesse me levado até ali. Ela sempre quis que eu visse a vida pelos olhos dela, e ali estava: eu via Assisi por seus olhos, e vi a vida também. Foi como uma mensagem, soprada do além. 

Não havia apenas amargura, o rancor, a dor dos tempos de briga. Era uma mensagem também de paz: dizia estar bem, e assim eu pude ver também o que havia de bom: eu sua alegria, sua boa-fé, seu amor. E isso me conforta o coração.

Minha mãe de rancores e mágoas, de brigas ferozes, tanto quanto de doçura e amor: penso que ela é que havia me levado até ali, pela mão, como mãe e professora, como sempre foi. Levou o filho invisivelmente até Assisi, para que Assisi falasse por ela. 

E eu, que nunca aceitei ver as coisas como ela via, faço em Assisi o que nunca pude, quando isso significava ser eu mesmo, reafirmar o que queria, diante de minha mãe. Em Assisi eu vejo pelos olhos dela, me rendo, baixo as armas, como numa comunhão.

Por ela, ou melhor, para entender as mulheres, as mães, sua luta, mesmo que ás vezes pareça contra os filhos, escrevi Anita, que está saindo agora nas livrarias. Minha mãe tem me falado por muitas vias: pelo olhos de Anita hoje eu vejo as mulheres, eu entendo, eu perdoo, e sou obrigado a também pedir perdão, pelos tempos de incompreensão.

Saio da Basílica chorando; não de tristeza, e sim de alegria por um encontro há muito esperado; choro de amor, de saudade, de felicidade com uma antes impossível conciliação. A cidade sob o sol radioso do inverno, tão perto do céu, me fez agradecer a vida, a vida que ela me deu; choro por estar vivo, e por ela me dar o caminho, me ensinar o caminho, até hoje. Choro por tê-la ajudado a chegar a Assisi, e de gratidão, por poder segui-la até ali.

Minha mulher me dá um abraço; ela, que é mulher, filha, e também mãe, é calorosa, sem nada perguntar. Mais tarde, quando vamos embora, no carro, ela me pergunta se ainda guardo mágoa de minha mãe. Não, respondo eu, não tenho mais por quê. 

Pena que só sabemos essas coisas quando é tarde demais; mas sei que de alguma forma converso com ela. Assisi não foi um lugar, foi um encontro. Ela está bem, eu disse, cessou a tempestade; é a única coisa que faltava para eu baixar também a guarda; agora eu posso descansar.
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terça-feira, 21 de março de 2017

Um bilionário de meia furada

Era 1986 e o bilionário americano David Rockefeller, então presidente do banco Chase Manhattan, resolveu visitar o MAM, o Museu de Arte Moderna de São Paulo, no Parque do Ibirapuera, durante uma passagem por São Paulo. Eu, então aos 22 anos, entusiasmado e inexperiente repórter da seção de Nacional do jornal Gazeta Mercantil, fui destacado para tentar arrancar dele uma entrevista, se tivesse a oportunidade. E tinha que ter, porque, caso contrário, estava frito. Repórteres sem sorte não duram muito no emprego.

Esperei Rockefeller na marquise do parque, perto da entrada do museu, ao lado de um verdadeiro batalhão de outros jornalistas - avisados, assim como meu jornal, pela assessoria de imprensa do museu. Lá veio Rockefeller, num terno escuro, com sua cara de americano mais que americano, os cabelos grudados à cabeça com gel, nariz afilado, passo de lorde, sem se assustar nem um pouco com os jornalistas brasileiros, ao contrário. Para minha surpresa, fui eu o único a lhe fazer perguntas, por uma razão muito simples: era também o único a arranhar alguma coisa de inglês.

Surpreso com tanta gente na sua frente, mas um único interlocutor, ele me perguntou se eu tinha aprendido a falar a língua nos Estados Unidos. Respondi que não conhecia o país: o que sabia de inglês tinha vindo de um mero curso intensivo no Cel-lep. Ele pareceu um pouco desapontado. Explicou que estava ali para ver o Museu porque sua família tinha contribuído com grande parte do acervo e queria ver como estavam as coisas. Eu, porém, não estava muito interessado em arte. Num jornal de negócios, só queria fazer perguntas sobre economia.

Enquanto conversávamos, caminhando, reparei que um fotógrafo da Folha de São Paulo ia rolando no chão, ao nosso lado, feito um cachorro amestrado. Fiz de conta que não vi. Rockefeller também. Quando o banqueiro entrou no museu, fui perguntar o que tinha dado no fotógrafo.

- Você não viu? - ele disse. - O homem está com uma meia furada! Eu tinha que fazer a foto!

Eu não pude publicar a foto - mas não deixei de publicar, no texto, aquele episódio anedótico.

Como herdeiro de um dos maiores impérios de negócios dos Estados Unidos, Rockefeller representava bem a aristocracia americana. Seu bisavô, o lendário John Rockefeller, fizera fortuna com petróleo e ganhara tanto dinheiro que no final a maior empresa do grupo, com os passar dos anos, se tornara o banco. Isso não impedia Rockefeller de conversar normalmente com um repórter brasileiro quase monoglota nem andar de meia furada.

Ontem, deu nos jornais a notícia de que David Rockefeller morreu, aos 101 anos de idade. Era o último neto vivo do fundador da companhia. Os Estados Unidos hoje são outros, os negócios também, e com ele vai embora o último remanescente de toda uma geração empresarial que eu vi passar e ajudar a construir o mundo como o vemos hoje, para o bem e para o mal. Rockefeller era amigo do secretário de Estado Henry Kissinger e a influência do seu banco, ou melhor, do capital americano, era tamanha que sua importância equivalia à de um chefe de Estado.

Assim como os homens de calibre, o jornalismo hoje em dia também tem um peso muito menor no mundo que no passado. E funciona muito diferente. É raro um repórter fazer plantão em qualquer lugar à espera de uma entrevista. Em geral o entrevistado já emite suas opiniões num blog pessoal e a imprensa digital copia aquilo e cola. Por fim, eu mudei. Já fui vezes sem conta aos Estados Unidos. Morei um ano em Nova York e conheço o país de cabo a rabo. Fui o primeiro editor da Forbes no Brasil, consultor do Discovery Channel e dirigi o Grupo Playboy na Editora Abril, o que sempre me manteve em contato direto com americanos. Jamais, porém, procurei Rockefeller, como ele me convidou a fazer. Talvez devesse ter ido vê-lo. Agora, é tarde demais.

Não sou do tipo saudosista, que vai dizer que antigamente era melhor. Mas essa pequena notícia sobre a morte de Rockefeller num canto qualquer do espaço virtual me lembra que era, pelo menos, mais divertido.


terça-feira, 7 de março de 2017

Fotografias de um mundo sem futuro

“Você é o único aqui que não precisa de máquina para fazer fotografias”, diz a Mulher sem Nome, que, desde que nos separamos e tentou me proibir na Justiça de escrever seu nome, ficou sem nome - e me acostumei.

Estamos sentados no #Harry’s Bar, de Harry #Cipriani, celebrizador do carpaccio e do Bellini, onde já bebeu #Hemingway, em belas eras. É carnaval em Veneza e, desta vez, o bar está lotado de gente que entra da rua para o salão sóbrio e quente, acotovelando-se diante do balcão, entre os garçons de meticuloso paletó branco e gravata borboleta negra.

Entre os recém chegados, que amotinam o bar ao estilo naval, estão dois cavalheiros setecentistas de chapéu tricórnio, meias brancas até o joelho e paletó de asa. No meio deles, um sujeito com vestido balão (“lutador de sumô”, identifica a Mulher sem Nome), que ocupa, sozinho, o espaço de quatro pessoas e se movimenta boiando, enquanto rebate erraticamente entre os circunstantes.

Tomamos dois #Bellinis, acompanhados de azeitonas. É bom estar aqui, respirar novamente o ar de Hemingway, e estar com a mulher que entende exatamente o que estou falando. Viemos do palácio do Doge, decorados com cenas #de guerra e Netuno entregando a #Veneza a sua cornucópia, na representação de #Tiepolo. Andamos pela ponte Dei Sospiri, saindo da pompa dos salões venezianos, até a curta e claustrofóbica passagem sobre o canal que leva às frias e escuras masmorras do velho império.   

“É o que está acontecendo hoje”, diz ​a Mulher sem Nome, quando observa que o túnel entre os salões ricamente decorados e o claustro sombrio são aqueles vinte metros suspensos sobre o rio. 

Sim, no Brasil, hoje, os políticos que expoli​​aram o país, e empresários a eles associados, todos frequentadores dos melhores salões da república, navegantes de iates e passageiros de jatinhos particulares,​ estão indo para as imundas e superlotadas cadeias brasileiras. Entre eles, até mesmo #Eike Batista, que já foi o homem mais rico do Bras​i​l, destituído de sua fortuna, da liberdade – e de sua peruca italiana.

Tempo sem futuro, sem esperança, em que avanços recentes, não só no Brasil, como no mundo, se perderam. Nos Estados Unidos, Obama, com seu programa de saúde, seu olhar de ecumenismo político sobre as nações e o mundo, deu lugar a Trump: a volta à velha truculência do selvagem capitalismo americano.

Tempos do recrudescimento da ira, catapultada pelo poder digital, pela violência religiosa, ambos filhos da intolerância. Este é um mundo em que a tecnologia avança, mas ela apenas serve para melhor armar os homens e seus antigos barbarismos.

“Senhor, fotografar aqui dentro não pode”, adverte o maître do bar, firme e gentilmente.

Tarde demais. O retrato, como diz a Mulher Sem Nome, está feito. Veneza espera lá fora – a noite azul marinho, a cor de que mais gosto, nesta cidade que combina tanto com o caleidoscópio humano dos blocos nas ruas centenárias. O cheiro do mar, o estalo das gôndolas no cais, o trajeto pelas vielas estreitas, até a Chiesa San Vidal, onde, às 20h30, iremos a um concerto de violinos para ouvir As Quatro Estações de Vivaldi.

Talvez os tempos de Hemingway fossem mais sombrios ainda, tempos de guerra, embora mesmo a guerra naquela época fosse mais romântica. Estou aqui no Harry’s Bar, há vida e livros pela frente. Estou usando barba, por causa de Garibaldi, tema do romance que está saindo do forno, e muita gente diz que estou muito Hemingway. Sei apenas que, como eles, procuro viver até o limite, com ajuda do amor – amor que eu carregava pela mão na noite de festa e regozijo.

(Redação revisada para um texto escrito em Veneza, 26 de fevereiro de 2017, sábado de carnaval.)

A Pietá, o Vaticano e um amor comovente

Quatro anos atrás, quando estivemos em #Roma juntos pela primeira vez, Dona Aranha foi barrada na porta do Vaticano.

Era verão, e estava com os braços de fora. Saímos em busca de agasalho, para atender aos padrões de compostura da catedral. Com isso, perdemos a hora – aborrecida, ela aceitou visitar o museu Vaticano, sem a catedral, por conta da imensa fila que se formava àquela hora. Dentro do museu, ficou ainda mais brava ao ver as estátuas gregas nuas, na coleção dos papas. Na sacra galeria, somente ela parecia estar toda vestida.

Desta vez, além de estarmos prevenidos, era inverno. Ela suportou tudo: sua agorafobia, no meio da multidão, aglomerada no bolsão anterior à revista, minha vertigem ao subir a espiralada escadaria do domo, o que, para um labirinto tão sensível como o meu, é sempre uma aventura.

Porém, nesse dia, enfim, entramos na igreja do Vaticano. A catedral das catedrais.

Logo na entrada, indico à direita a #Pietá. “Mas ela sempre esteve aqui? Eu não a vi em outro lugar?”, pergunta ela, candidamente.

É tão conhecida a Pietá que, assim como a #Monalisa, nos é sempre familiar. Mas a Pietá, ao vivo, só ali. É um deslumbramento e um choque. “Estou com vontade de chorar”, diz ela, se afastando.

A visão da mãe com o filho nos braços amoleceu seu coração – de filha, de mãe, de mulher. “A mãe entregou o filho ao mundo para cumprir sua missão, mas, quando ele morre, é ela que o recolhe novamente”, explicaria mais tarde no jantar, enquanto ouvíamos um violoncelista no #CampoDiFiori, em uma das mesas do restaurante #Magnolia.

Ainda no #Vaticano, assistimos à missa – cantada em latim, com um coro literalmente divino – e saímos mais leves. Sem dúvida, apesar do turismo de massa, ali ainda se pode ter um encontro solitário com #Deus. “Pela primeira vez, entrei numa igreja sem ter nada a pedir”, disse ela.

Dona Aranha é comovente. Ela me trouxe à Itália para lembrar quem sou, ou de que sou feito. Porém, o que me lembra quem sou não são os lugares onde já estive ou de que gosto. É ela.