terça-feira, 12 de janeiro de 2016

O dia dos humildes

O Brasil é um país generoso. Votou em massa no Wendell Lira e ele ganhou o prêmio Puskas de gol mais bonito, deixando para trás Messi e outros craques milionários do mundo.


O antes desconhecido jogador do Goianésia teve sua noite de estrela e representou o Brasil com a dignidade dos humildes na festa da Fifa em Paris, para a qual esperou no primeiro terno que vestiu em toda sua vida, do lado de fora, sozinho, sob um guarda-chuva.

No instante em que seu nome saiu, baixou a cabeça, no.meio da plateia. Diante do microfone, mesmo emocionado, manteve-a de pé. Foi simples, breve, comovente. O Brasil é capaz de grandes coisas, sobretudo sustentar a dignidade do brasileiro diante do mundo. 

Esse é o exemplo que deveriam tomar outros brasileiros, que não representam o povo, apesar de eleitos para tal, e só fazem nos envergonhar.



segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

David Bowie: é possível ser sempre jovem


Conheci David Bowie - não a pessoa, mas a música, o artista, o personagem - na faculdade, período da juventude em que gostamos de arte cult. Bowie nunca foi um artista popular. Era inventivo, iconoclasta, experimentalista. Chegou a fazer algumas músicas populares, como Little China Girl, mas ele foi muito mais uma influência criativa sobra uma série de artistas de várias gerações, e de um público mais refinado, do que realmente um artista pop.

Bowie, porém, era mais do que um músico. É verdade que ele chamou a atenção pelas roupas extravagantes, o visual andrógino e a onda interplanetária do final dos anos 1960, embalados pela chegada do homem à Lua. Sua obra inicial parecia feita para filmes de ficção científica, a começar pelo álbum que o fez famoso, Space Odissey. Foi pelo talento, porém, que Bowie se firmou, além da capacidade de renovação pelas fases de sua vida pessoal e artística, que o fizeram ganhar o apelido de "camaleão".

Mesmo sua aparição no cinema, que o deixou ainda mais conhecido, também foi cult. Os filmes de Bowie nunca foram um estrondoso sucesso de público, mas sempre tiveram charme, por serem vistos pela gente certa - os fãs de Bowie, principalmente. Foi assim com Fome de Viver, que eu vi também nos tempos universitarios, uma história de vampiros com a igualmente cult Catherine Deneuve. E Furyo, um filme de guerra, talvez seu melhor papel.

Bowie atravessou gerações como um símbolo da música criativa. Sua voz grave e inconfundível era o seu verdadeiro instrumento. Era perfeito porque era um esteta, que chegou a escrever um livro de estilo, Objects, sobre objetos de formas que ele admirava. Modelo de elegância, na vida e nas artes, nunca deixou de ser britânico, pela maneira perfeita como falava e se comportava. Profissional, nunca perdeu o interesse pelos outros nem a humildade, essência para sempre começar tudo de novo, como se estivesse partindo do zero, a real fonte da criatividade.

É um final de filme que Bowie tenha morrido justamente quando lançou seu último álbum, Blackstar. É preciso ouvir Bowie várias vezes para começar a gostar. Isso acontece sempre que estamos ouvindo algo novo, inédito, que busca outros caminhos. Ele fez parte da nossa educação musical e estética nos últimos 40 anos e deixa não apenas o legado como o exemplo de que é possível ser sempre jovem. "A idade não importa – o que importa é a intenção, a integridade e o poder de tocar as pessoas", disse ele à revista Rolling Stone.

Bowie morreu aos 69 anos. Mas sua obra provavelmente continuará agradando a jovens e velhos num futuro incontável, porque, como ele, não envelhece. Ao menos, para quem tem a mente aberta para entender a linguagem de um artista único.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Os pecados da tribo contemporânea

Em seu romance Os Pecados da Tribo, de 1976, o escritor goiano J.J.Veiga, falecido em 1999, imaginava um mundo em que desaparecera toda a tecnologia, depois de uma inexplicada catástrofe que tirou a energia artificial: um planeta sem carros, geladeiras e outras máquinas, onde a consulesa - uma mulher casada desejada pelo narrador por seus lindos pés -, andava sempre descalça.

Uma interessante fábula para mostrar que, sem os meios criados pela indústria contemporânea, o homem permanecia o mesmo, com seus desejos, mesquinharias e problemas, que remontam aos tempos das cavernas. Prova de que a civilização está no comportamento, e não nos instrumentos de que a sociedade dispõe.

Falo deste livro para fazer um exercício contrário, tomando o mundo real de hoje. Desde a invenção da roda e da máquina a vapor, a sociedade não mudou tanto quanto agora, na era da informação. Impregnado de tecnologia, especialmente a que hoje conecta todo os indívíduos, vemos que esse avanço civilizatório não fez progredir também os elementos essenciais da Humanidade. O mundo continua o mesmo, ou pior, já que a tecnologia tem servido para acirrar suas dissensões.

Onze Cabeças, de Pavel Filonov,
Museu Russo, em São Petersburgo
Em vez de dirigir o mundo para uma fase desenvolvimentista, objetiva e integrada às bases humanistas ou iluministas, como seria de se esperar de uma geração tão próxima dos elementos da razão, o que a tecnologia fez foi impulsionar a intolerância religiosa, acirrar o maniqueísmo político, dar voz aos extremistas de esquerda e direita e fortalecer minorias que tentam encobrir a maioria com seu ativismo.

A  multiplicidade se transforma em uma infinidade de defesas de interesse que buscam tirar a legitimidade umas das outras e tendem a desintegrar um mundo cada vez mais integrado pela comunicação.

Assim como as tribos africanas não deixaram de ser tribais, apenas hoje usam metralhadoras no lugar dos antigos chuços para dizimar seus inimigos em  maior escala, a internet se tornou um instrumento de última geração para a ação de ideologias  que se supunha anacrônicas.

Ressurgiu a velha dicotomia de esquerda e direita, que parecia destinada à submersão no processo de redemocratização do Brasil. Levantaram-se da tumba os arautos de velhas esquerdas, como a stalinista, segundo a qual os fins justificam os meios, defensores da erradicação do capitalismo a qualquer preço, que tem muitos correligionários ao redor do governo da presidente Dilma Rousseff.

Surgiram também do limbo, ao mesmo tempo, os radicais de direita, para quem tudo o que a esquerda prega é um absurdo, e justifica-se portanto o absurdo do lado contrário, incluindo silenciar a esquerda e defender bens imponderáveis como a pátria, a família e a liberdade com a luta armada, outra aberração anti-civilizatória de tempos pregressos.

No mundo, acontece a mesma coisa. Pela internet, agrupam-se e se fortalecem movimentos radicais islâmicos que acabam nas ruas, como o que resultou na morte de mais de uma centena de pessoas, recentemente, em Paris. Ressurge o nazi-fascismo, que se julgava morto e enterrado desde a experiência macabra da Segunda Guerra Mundial.

Da mesma forma que permite a adolescentes suicidas encontrarem apoio uns nos outros para realizar o seu intento, a internet é um espaço onde interesses específicos podem se reunir em redes e fortalecer o ânimo de grupos com propósitos fora da curva.

Ao patrulhamento ideológico, que tenta matar toda e qualquer manifestação contrária nas redes sociais, junta-se a cizânia pura e simples, daqueles que veem defeito em tudo e só sabem criticar o governo, o vizinho, as instituições, a democracia e reclamar da vida - da falta d´água ao preço do dólar.

Excluída a tecnologia, como o rei da fábula, que de repente se viu nu, ainda somos os mesmos. Os cruzados ainda lutam contra os mouros, e a irracionalidade da intolerância religiosa ganha força e amplitude com sua agregação virtual: Jerusalém agora é cada cidade do mundo, como Paris. A Guerra Fria não é mais entre americanos e soviéticos, é entre todos os que defendem o Estado absolutista e do outro lado o capitalismo liberal, se possível selvagem e desenfreado.

O movimento das minorias ganhou ainda mais força, seja das feministas, dos gays, dos negros. E com isso vão também se criando guetos de exclusividade e privilégio em que o cidadão fora dessas nomenclaturas vai sendo alijado do direito de igualdade.

Essa guerra microfísica, que está no dia a dia das pessoas, vai tornando o ambiente virtual estressante e potencialmente explosivo. A facilidade com que a organização de grupos na internet ganha as ruas, de repente e aparentemente do nada, para quem não vigia os meios virtuais, é o maior fenômeno social da era contemporânea.

Dentro desse cenário, está também a tentativa de desmoralizar a imprensa, para a ocupação do espaço da informação com o ponto de vista dos grupos de interesse. Um mundo em que não há verdades, ou fatos, e apenas versões sobre tudo, vai se tornando um campo minado para a sociedade, sujeita mais a campanhas de marketing que à realidade.

A divergência política, que se dava apenas em períodos eleitorais, e antes se restringia às páginas de opinião dos jornais ou ao churrasco de fim de semana, hoje é um campo aberto e cotidiano. Os projetos de interesse coletivo estão sujeitos a uma infinidade de pressões que ameaçam paralisar as atividades de Estado e precisam ser defendidos diariamente, assim como a reputação daqueles que são achincalhados impunemente no meio virtual.

A democracia se obriga a respeitar o direito de opinião livre de todas as minorias, não pode ir contra a multiplicação desse tipo de material que infesta hoje o espaço virtual, tão presente na vida das pessoas, ainda que isso não represente o pensamento da maioria, geralmente silenciosa. É um desafio para o mundo se tornar governável diante de todas essas fontes de pressão.

A tecnologia avança, mas ainda somos os mesmos que levaram este planeta às guerras mundiais, à Inquisição, à perseguição política, à censura e outros males crônicos da Humanidade. A civilização não é a tecnologia, e sim o que está por trás dela, e agora aparece à frente, tão claramente. Espera-se que seja uma fase e venhamos a encontrar fatores de equilíbrio, a começar pela consciência das consequências do mundo virtual no mundo real.

Uma certa volta aos pés no chão da consulesa, símbolo último da realidade.








quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Dilma chama as sereias do impeachment para bailar

Dilma Rousseff trocou o ministro Levy pelo ministro Barbosa; com isso, jogou fora o fiel da balança, que procurava dar ao governo algum crédito, graças ao compromisso de colocar mais ordem nas contas do governo.

Era uma política recessiva, é verdade, mas o fato é que o governo ficou sem dinheiro; literalmente quebrado, acabou a cornucópia com a qual se incentivava a economia por meio do gasto público, incluindo a distribuição de renda em programas como o Bolsa Família.
Dilma com Barbosa: impossibilidade matemática

Nenhuma política demagógica dá certo no final: pode durar algum tempo, mas a realidade se impõe. E a realidade é que não se cria riqueza por decreto. Com um furo orçamentário na casa do bilhão, Dilma conseguia com Levy algum respaldo por contrariar seu partido, que quer mais do mesmo. Ou seja, ainda mais presença do Estado, gastando o que há muito tempo já não tem.

Não é uma questão de conta, nem de bom senso, nem de trato da gestão pública. É meramente política.Com Levy, o homem do Bradesco, Dilma tinha um certo pacto com a iniciativa privada de que faria o ajuste por conta própria. Sob a espada do processo de impeachment, teria menos pressão contra seu mandato. Ninguém quer ficar com o ônus do ajuste, que é sempre amargo. Dilma já está mesmo queimada: estava ficando, porque ia limpar a própria sujeira.

Só que ela cedeu à pressão de seu próprio partido. O raciocínio do PT é de que na atual situação, é tudo ou nada. Que o ônus fique para o próximo, então. Com Barbosa, pretende-se retormar algum tipo de desenvolvimento, dentro da filosofia de que é possível conciliar estímulo do Estado à economia com controle fiscal. Na situação em que estamos, isso é uma impossibilidade matemática que vai contra qualquer análise mais racional.

Cedendo aos apelos de seu partido, Dilma se torna novamente vulnerável. Ao declarar que não vai fazer o ajuste como precisaria ser feito, vai retornar ao curso que a levou à beira do abismo. Só que agora pode estar apressando sua vida no Planalto.

Por mais que se cerque o processo do impeachment de minuetos institucionais, é certo que a situação econômica tem um peso relevante no seu andamento. Collor caiu assim. Não havia prova direta do seu envolvimento nas negociatas de PC Farias. Porém, com o Brasil embicando para o desastre, as forças populares indignadas juntaram-se ao que realmente faz diferença, que é a vontade das elites. E estas, no Congresso, o forçaram à renúncia.

Todos sabem que o Brasil não pode ficar assim por mais três anos, até porque vai piorar. E que, quanto mais rápido o ajuste, melhor. Se Dilma dá sinal de que não vai mais fazê-lo, para jogar o ônus ao seu sucessor, está colocando sua posição sob risco ainda maior. As elites brasileiras não vão esperar mais três anos de aprofundamento da crise. Têm os instrumentos para isso, com seus representantes no Congresso, muito bem remunerados.

 Na prática, a presidente está chamando as sereias do impeachment para bailar.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Hemingway e um bangalô na mata


Quando vi a casa pela primeira vez, pensei: é aqui que eu vou ficar.

Nem pensava em comprar uma casa. Ou melhor, queria algum lugar que tivesse alguma coisa que eu ainda não sabia bem o que era. Uma casa no meio da mata. Isolamento. Mas algo acolhedor. Uma casa para um escritor.

Casas são muito importantes para quem escreve, pois escritores passam muito tempo dentro delas. Precisam contar histórias, porque é isso o que fazemos. Ali nos cercamos das nossas coisas, das nossas histórias. Um ambiente favorável a sermos nós mesmos. À criação.

Hemingway adorava casas. Visitei a de Key West. Por pouco não vi a de Cuba (estava fechada). Para ter uma casa, Hemingway gastava o dinheiro que não tinha e realizava projetos mirabolantes. Jack London comprou uma fazenda perto de São Francisco, que dizia ser uma futura fazenda modelo, mais um de seus projetos brancaleones. A casa pegou fogo pouco antes da inauguração.

A Casa da Mata, como eu a chamo, foi construída há cerca de doze anos pelo ex-secretário da Fazenda de São Paulo, Yoshiaki Nakano, professor de economia da USP. Ele e a mulher começaram ao redor dela o jardim japonês conservado até hoje. Um homem de bom gosto, o jornalista Antônio Telles, diretor de jornalismo da TV Bandeirantes e apresentador do Canal Livre, reformou-a com grandes vidros para a luz e a paisagem e lixou-a inteira para substituir o verniz grosso e brilhante com um fosco, mais elegante.

Minha contribuição foi fazer tudo funcionar, incluindo a piscina, pouco utilizada a quase 1700 metros de altitude. E coloquei ali o que faltava: a literatura. No final, balançando na rede da varanda, entendi porque gostara daquela casa desde o início. A construção, feita pela hoje falida Casema, especializada em casas pré-fabricadas, para as quais utilizava um tipo de madeira que hoje já não existe disponível, é na realidade um bangalô ao estilo inglês. Como muitos que vi na África, onde os ingleses colonizadores procuravam manter viva sua civilização num ambiente agreste. E como a de Tarzan, meu ídolo de criança na literatura, que gostava de viver seminu na jângal, mas tinha uma fazenda onde morava com Jane, num bangalô que na minha imaginação é exatamente como este.

Ali terminei A Conquista do Brasil, livro de história hoje nas livrarias, editado pela Planeta. Ali escrevi meu próximo romance, que deve sair em 2016 pela mesma editora. E ali comecei e terminei um livro muito pessoal.

Como em tudo o que fazemos, até mesmo a casa é uma escolha literária. Não deve ter sido fácil morar em Cuba  ou Key West nos tempos de Hemingway. A Casa da Mata fica longe e não tem internet. É uma ilha na modernidade. Mas tudo bem. Escrever só vale a pena quando vivemos pelo que escrevemos, seguimos os sonhos e não há diferença entre o que somos e como queríamos ser.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Um pano, um romance e as mulheres

Eu tinha dezesseis anos de idade quando viajei com meu pai a Macchu Picchu, no Peru - por terra. Fizemos o célebre caminho que incluía as mais de 30 torturantes horas no Trem da Morte, partindo de Quijarro até Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Fomos e voltamos pelo mesmo caminho, de trem, avião, caminhão, ônibus, a pé - incluindo andar por um bom pedaço do deserto no altiplano. A história renderia um romance, Campo de Estrelas, publicado em 2005 pela editora Globo e que se pode encontrar hoje em e-book aqui.

http://www.amazon.com.br/Campo-Estrelas-Thales-Guaracy-ebook/dp/B00EDXV2S4/ref=sr_1_1?ie=UTF8&qid=1435865130&sr=8-1&keywords=campo+de+estrelas

Na volta, depois de uma noite demoníaca dentro de um ônibus superlotado, em que ficamos presos na última fileira, molhados a uma temperatura bem abaixo de zero, paramos em Puno, no Peru. Lá comemos o ceviche original, com o Peixe-Rei, exclusividade do Titicaca, cozinhado no limão com cebola e pimenta - uma delícia para o paladar e uma prova de fogo para o sistema digestivo. Na frente do boteco onde fizemos o repasto, uma feira das muitas que havia em toda a Bolívia e o Peru, com suas cholas sentadas vendendo artesanato. Ali, me encantei pelas cores de um auayo - o pano com que as nativas carregam as crianças nas costas onde quer que vão. Um costume antigo, como vimos pelos auayos nas paredes do Museu de Arqueologia em La Paz.

Comprei. Para mim, o auayo não somente era uma peça de vestuário ou utilitária, como também o símbolo daquelas mulheres, que antes de qualquer coisa eram mães. Levavam suas crianças como cangurus, admiravelmente sem se queixar, às vezes em longas viagens (os bolivianos parecem nômades, estão sempre em movimento), nas condições mais adversas.

Guardei aquilo como uma lembrança de viagem. Mais tarde, dei o auayo de presente a uma namorada, que para mim era também uma mulher e mãe admirável. Quando nos separamos, ela achou por bem me devolver o presente, dizendo que eu deveria dá-lo a uma mulher definitiva, a quem realmente caberia aquela peça.

Fiquei novamente com o auayo, mas não poderia dar novamente a alguém um presente que já havia sido de outra pessoa. Ficou comigo e andou de casa em casa até finalmente achar o seu lugar, mais de trinta anos depois, no meu quarto na Casa da Mata, onde se encontra até hoje. É uma boa lembrança, ligada tanto ao romance que escrevi como a um romance na vida real e, sobretudo, à imagem que tenho das mulheres.

Funciona como um retrato da bravura, do amor e da força feminina, que permanecem para mim como ideal admirável.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Máquinas do tempo

Ao longo dos anos, fui guardando as máquinas onde escrevi, vitimadas pela rápida obsolescência nesta era de extraordinárias mudanças para quem opera com as letras. Tenho dificuldade de me desfazer das minhas companheiras de trabalho; cada uma delas lembra um, ou mais, livros que escrevi. São as testemunhas mudas do meu esforço, instrumento único desse solilóquio obsessivo da escrita. Foram ficando pelos cantos, enfiadas em armários, e aos poucos, como para mostrar a mim mesmo de como vim de longe, como foi demorada, trabalhosa e talvez inglória a jornada até aqui, foi surgindo a vontade de reuni-las num mesmo lugar, onde eu pudesse olhar para elas, como os personagens dos meus livros, e dizer: vocês merecem uma boa aposentadoria, mas ainda gosto da sua companhia, podem ficar por aqui.

Na casa nova, achei o lugar e a ocasião: em uma estante de quina entre a saleta de leitura e a de jantar, fui colocando minhas velhas companheiras, perfiladas como num batalhão: soldados que deram baixa depois da guerra e se reencontram para relembrar feitos que, não fosse pelo que escrevemos juntos, só teriam significado para eles e seu comandante.

Sem dúvida, a máquina mais importante dessa pequena coleação é a velha Olivetti-Underwood Studio 44 verde, modelo exato da máquina de meu pai, Alipio. Ela é, na verdade, um sonho de criança, desde os tempos em que eu via meu pai escrevendo; passava pela porta fechada do pequeno escritório onde ele, entre volutas de fumaça de cachimbo, escrevia suas reportagens e editoriais para revistas como Médico Moderno e Contrução Hoje. Entrar lá dentro era proibido; eu só podia fazê-lo por motivo de força maior, o que queria dizer uma ordem de minha mãe ("chame seu pai para o jantar").

Antes, eu parava na porta, para ouvir o claqueteclaque tão familiar, que para mim é como uma música de infância. Entrar no escritório de meu pai quando ele escrevia era como penetrar em território sagrado, como um cemitério indígena ou o solo da Terra Santa. Pelo menos, assim eu pensava, já que ele abominava ser perturbado, por razões intrínsecas ao ofício de escrever, que eu mesmo só entenderia muito mais tarde. O mistério daquele trabalho e esse pequeno tabu fizeram com que esse momento para mim sempre tenha sido cercado de respeito; e me deixou a convicção de que quem escreve tem direito ao silêncio e à solidão.

Meu pai passou anos a trabalhar com aquela Studio, uma das melhores máquinas já feitas para escrever; para deslizar de volta à margem esquerda, o carro macio demandava apenas a ponta do dedo. Quando meu pai não estava, eu roubava algumas folhas de papel para experimentar; escrevia com quatro dedos, como faço até hoje, com a desculpa de que o que fazemos é escrever, e o importante são as ideias, não a datilografia.

Durante anos a fio, sonhei em estar ali, naquele lugar: diante da máquina verde onde os sonhos ainda estavam por ser feitos. Aos dezoito anos, quando tive meu primeiro carro, viajava até Suzano, em geral aos sábados, para visitar meu avô José: adorava ouvi-lo cantar suas antigas modas de viola e, especialmente, contar as histórias com que preenchia o tempo entre uma canção e outra. Ele já tinha passado dos 90 anos, estava encurvado, reclamava de varizes, e da surdez; para me comunicar com ele, eu escrevia frases num velho caderno escolar, sobre a mesa da cozinha, onde fazíamos nossas tertúlias: na verdade um interminável monólogo que comecei a gravar com a ideia de transformar aquelas histórias no meu primeiro romance.

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Fiz isso por cerca de seis meses; tirava as fitas K-7 direto na máquina verde de meu paí. Eu ainda não escrevia nada, apenas transcrevia, com o máximo possível de fidelidade, as frases enfeitadas do português italianado e brejeiro de meu avô. As folhas, algumas de seda, outras de sulfite, foram se acumulando até formar um respeitável calhamaço ao qual eu pretendia dar algum sentido. E quem sabe ver publicado como meu primeiro livro.

As folhas foram sendo rabiscadas e passadas a limpo na Olivetti, mas aquilo não formava ainda um romance; era um proto-livro, o rascunho do que viria a ser o que eu primeiro pensaria intitular como Iusfen e, mais tarde, foi Filhos da Terra. Levei tempo para entender que a degravação das histórias de meu avô não dariam um romance e que eu precisaria absorver aquela matéria prima e recriá-la, para surgir um livro de verdade.

Meu avô tinha razão: quando eu lhe dizia que tinha vontade de usar suas histórias para escrever um livro, ele apenas ria e falava: "isso está em você". Filhos da Terra, de fato, não é um livro de meu avô, ou sobre meu avô, mas de como eu o via e, ao final, acabaria sendo um livro sobre mim mesmo.

Filhos da Terra levou sete anos para ser concluído; quando penso no enorme esforço que me custou, parece que uma parte da minha vida foi engolida no tempo. Trabalhei nesse romance como se fosse a única e última coisa que faria na vida; foi meu primeiro romance para adultos e, acredito, ainda o melhor.

Quando saí da casa de meu pai, deixei de escrever na mesma máquina que ele; o romance foi concluído num laptop Toshiba 1000, um precursor dos notebooks modernos; mas as folhas onde o livro nasceram continuaram numa pasta que me servia de referência, onde estava a linguagem que eu queria conservar, o frescor de sua origem. Mais tarde, comprei a máquina que agora está na Casa da mata. Era já uma peça de museu, reformada numa oficina de máquinas de escrever, no centro de São Paulo, próxima do Pátio do Colégio. De alguma forma, necessitava daquela companhia, que me lembra, até hoje, como comecei e por que, mais do que gostar, preciso escrever.