quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A volta da vitrola e o futuro do livro

A vitrola está na moda. Agora as pessoas dizem que o velho disco de vinil, aquela bolacha negra não comestível, produz um som diferente, inimitável e de alta qualidade que justifica um retorno ao mercado consumidor na era digital. Verdade? Talvez ouvidos hiper-treinados percebam alguma diferença. Eu não consigo imaginar como um disco de vinil possa superar a tecnologia contemporânea, exceto se a música for gravada de um disco de vinil, e não de uma matriz, perdendo, portanto, qualidade nessa transferência.

Esse retorno, porém, é muito sugestivo sobre o que vai ficar ou não entre todas as mídias. Sabe-se que a reprodução do meio digital também implica numa perda de qualidade. Uma foto arquivada no éter virtual, copiada ao infinito de um servidor a outro, com o tempo perderá definição, assim como aconteceu no passado com o papel, que amarelece, desmancha e some.

Todas as mídias são perecíveis. Um filme dos anos 1950 hoje é uma velharia em preto e branco; copiado num arquivo digital, continuará perdendo viço e terá no futuro talvez de ser restaurado como os afrescos de Da Vinci. Um filme contemporâneo, com todos os recursos digitais, certamente será também coisa tecnicamente superada daqui a dez ou vinte anos e provavelmente se tornará algo irreconhecível daqui a poucos séculos. Não há nenhuma criação artística que, como produto, não vá desaparecer de alguma forma, ou deixar de ser conhecida na sua forma original.

Eu disse nenhuma? Bem, de tudo, o menos perecível ainda é o livro, por ser, de todas as criações artísticas, a mais impalpável. Feito de signos, como transmissores de ideias, ele não sofre com a passagem de uma mídia para outra, como a do papel para o meio digital. Um texto sempre poderá ser copiado mantendo as características originais. A escrita não morre, assim como as ideias.

Os signos com os quais escrevemos serão sempre os mesmos, ainda que as gerações futuras falem e pensem diferente. Tentei recentemente ler para crianças de 13 anos um livro de Julio Verne. Acharam tudo maçante; longas descrições, linguagem arcaica, tudo serviu para que a minha diversão de criança, que lhes apresentei com tanto entusiasmo, parecesse um aborrecimento colossal. A literatura envelhece, é claro. Porém, a história continua lá, da forma como foi criada. Pulou de uma edição para outra, invulnerável ao tempo.

Hoje podemos saber como foi a vida dos antigos egípcios não apesar dos hieróglifos, mas justamente por causa deles, deixando os os registros de uma forma escrita. Eles podem ser reproduzidos em qualquer meio sem mudar de forma; não amarelecem, não perdem qualidade, e não por terem sido gravados em papiro ou pedra, e sim porque podem ser copiados da mesma forma que sempre foram. Serão para sempre os mesmos símbolos e signos que, uma vez decifrados, nos contam exatamente as histórias e a vida de um povo, da maneira como pensavam e se manifestavam.

Pode ser que daqui a milhões de anos nada reste, não apenas da arte, como da própria Humanidade; é talvez a dura conclusão sobre o nosso inglório esforço de deixar alguma herança no universo. Somos passageiros insignificantes de uma vastidão inimaginável e por isso a existência do homem na vastidão sideral representa menos que a de uma formiga na terra. Porém, gosto de pensar que ainda desafiamos as impossibilidades; há certa beleza no nosso orgulho ou, mesmo, na nossa petulância tão humana.




Playboy: foi bom e passou

O Eduardo Ribeiro, editor do Jornalistas & Cia, me procurou para saber o que eu tenho a dizer sobre minha passagem pela direção da revista Playboy. Segue aqui minha resposta.

Nunca imaginei um dia dirigir a Playboy, mas não fiz pouco caso do cargo que me foi oferecido, por onde passaram grandes jornalistas, que sempre respeitei, como Mario de Andrade, Carlos Maranhão e Ricardo Setti. O mercado mudou muito, as condições eram outras, mas achei que seria um bom desafio tentar recuperá-la nestes tempos complicados para a mídia impressa e especialmente para revistas que, apesar do pé muito firme no jornalismo, devem boa parte de sua venda a um prato principal facilmente copiável pelos piratas.

Fui convidado para dirigir a Playboy em abril passado pelo Roberto Civita, que mandou o Alfredo Ogawa como emissário. Depois de um almoço na Vila Madalena, o Ogawa me disse que o Roberto tinha pedido que eu escrevesse vinte linhas sobre o que eu achava que deveria ser feito com a Playboy. Escrevi e, com base nisso, ele me pediu que dirigisse a revista.

Porém, quando assumi o cargo, ele estava hospitalizado e em seguida veio a falecer, de modo que nunca chegamos a trabalhar juntos no projeto para a Playboy. Roberto era um grande defensor da revista, que para ele era um pilar da editora, assim como Veja e Exame, as três publicações que ele considerava serem sua marca na empresa.

Sem ele, as condições para fazer Playboy mudaram rapidamente e creio que minha saída era uma questão de tempo. Procurei fazer o melhor que pude, pelo prazer do trabalho e um pouco como uma última homenagem ao Roberto. Nesse período, acho que conseguimos coisas boas. Em sete meses, o número de likes da Playboy no Facebook subiu de 250 mil para mais de 1,4 milhão. A edição com Antonia Fontenelle foi a mais vendida em mais de um ano e a edição de Nanda Costa foi a mais vendida desde Adriane Galisteu, em agosto de 2011, um excelente resultado, especialmente num mercado declinante como é o de revistas. O nome de ambas, segundo o Google divulgou esta semana, está entre os termos mais buscados no Brasil em 2013.

Acima de tudo, Playboy voltou a ter repercussão e restabeleceu uma certa qualidade editorial, tanto nos ensaios como no jornalismo. Os pelos pubianos de Nanda Costa foram top trend no twitter seis dias seguidos e o ensaio com a Morena da novela firmou o verdadeiro nome da atriz junto ao público. A coragem de Fontenelle em posar depois da viuvez e contra todas as patrulhas também foi um marco importante na história da revista, assim como a nudez da primeira evangélica na história da publicação: Aline Franzoi. Aline chegou a receber ameaças de morte e enfrentou tudo com sobriedade, firmeza e coragem.

Desnudamos também Meyrielle Abrantes, a ex-mulher do senador Jarbas Vasconcelos, a nossa pequena vingança, porque enfim não é Brasília que escandaliza a gente, e sim nós que escandalizamos Brasília.

Não posso deixar de falar também da Pietra Príncipe, a loirinha abusada do Papo Calcinha, programa do Multishow, que mostrou realmente ser capaz de tudo, incluindo voar do lado de fora de um helicóptero, nua como veio ao mundo. Tive de confrontar a Playboy americana, que reclamou dela aparecer na capa segurando uma arma - em Playboy, são proibidas armas, referências à violência, a religião, sexo explícito e sadomasoquismo. "Tudo o que é divertido", me disse ela, quando lhe contei a história.

Encerrei minha participação com a edição histórica dos 60 anos de criação de Playboy, que juntou a beleza da coelhinha Thaíz Schmitt com a ideia de homenagear as fotos memoráveis da revista.

Saio satisfeito com o que foi feito. Minha última iniciativa foi estimular a criação de uma plataforma nova na internet, na qual Playboy teria parte de seu conteúdo fechado para assinantes, de maneira a poder fazer receita na internet e crescer aonde o mercado está crescendo, além de desestimular a pirataria na rede. É assim que Playboy já funciona há muito tempo no mundo inteiro, menos no Brasil. Um prova de que estamos ainda muito atrasados e equivocados no mundo dos negócios virtuais.

Agora vou voltar a fazer livros. Tenho dois projetos de livros de reportagem sobre o Brasil, para os quais ainda preciso de editor. E criar projetos de comunicação para empresas que envolvam diversas plataformas de midia na minha empresa, a Comunicom. Torço para que a Playboy permaneça como uma revista respeitável, inclusive na sua matéria principal, e que na internet possa recuperar os anos perdidos para a pirataria. É preciso crescer nos mercados que crescem, em lugar de apenas defender os anéis onde eles inexoravelmente vão sendo perdidos.

Link para o texto do Eduardo:



terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Um homem sem medo do seu próprio mito



Em dezembro de 1990, eu dirigia a revista 2000, publicação de domingo do jornal O Estado de S. Paulo, que teria vida breve, mas palpitante. A última edição era uma retrospectiva dos acontecimentos daquele ano, recheado de momentos marcantes: a posse do primeiro presidente eleito do Brasil em 30 anos, Fernando Collor, a queda do Muro de Berlim, o lançamento ao espaço do telescópio Hubble, as mortes de Cazuza e Greta Garbo e o bicampeonato de Ayrton Senna na Fórmula 1. Quando entreguei a revista ao responsável por publicações especiais do Estadão, João Vítor Strauss, no entanto, ele abriu os olhos quando leu o que eu havia escrito sobre outra notícia que a muitos pareceu menos relevante: a libertação do líder sul-africano Nelson Mandela. "Isso é uma das melhores coisas que eu já li na vida", disse ele.

Eram apenas cinco linhas, uma legenda debaixo da foto de Mandela, com uma gravata com as cores da bandeira sul-africana, punho cerrado para o alto e um sorriso no rosto:

"Em 11 de fevereiro, um homem de cabelos brancos saiu da prisão de Victor Verster, na África do Sul. Pela primeira vez em 27 anos, um mitológico líder da luta contra o apartheid, Nelson Mandela, pôde ser visto em público - e ajudar a fazer História em liberdade."

Faço essa referência não apenas pelo prazer de lembrar João Vítor, como pelo que essa recordação explica sobre a extraordinária trajetória de Mandela. Condenado à prisão perpétua por sabotagem e incitamento à greve, Mandela se tornara, na prisão, um símbolo da luta contra o apartheid, a segregação racial dos negros na África do Sul, e mais - um símbolo da luta contra o racismo em todo o planeta. O mito cresceu ao longo dos anos, justamente pelo fato de que, impossibilitado de sair sequer para o funeral da mãe e do filho, e isolado no cárcere, sem que pudesse jamais ser visto, Mandela se tornara um personagem legendário.

Libertado na onda de protestos mundiais que se juntaram à queda do Muro de Berlim, Mandela poderia ter se curvado ao peso da própria lenda. Na cadeia, ele se tornara mais do que pode aspirar um ser humano. Como lenda viva, ele teria de enfrentar, fora da prisão, a realidade de se tornar novamente um homem. Poderia desapontar os milhões de pessoas que olhavam para ele, dentro e fora de seu país. Como pode estar um homem à altura do seu próprio mito?

Muita gente feneceu por muito menos. Chico Buarque, por exemplo, é um dos que declaradamente receiam ser comparados a uma imagem construída no passado. Preferiu renunciar a fazer música para não ser colocado lado a lado com ele mesmo no seu auge. Chico representa uma fase de belas canções da música popular brasileira, com uma leve passagem pela musica de protesto durante a ditadura militar, e acha melhor ser Francisco Buarque de Hollanda do que tentar repetir o mito. Imagine-se então na pele de Mandela, o homem sob a sombra da própria lenda, e mais - o homem diante das expectativas de um país inteiro, e depois do mundo inteiro, à espera de alguém capaz não apenas de simbolizar uma luta, como ser capaz de encarná-la, torná-la real, lutá-la e vencê-la.

Mandela não teve medo. Saiu da prisão como um gigante, e viveu os 24 anos restantes como um gigante de carne e osso ainda maior. Negociou as condições para uma nova Constituição, elegeu-se o primeiro presidente negro da África do Sul e, mesmo contras as dificuldades econômicas e sociais, sem falar na intolerância, que não desapareceu do dia para a noite, transformou a África do Sul num exemplo de igualdade, liberdade e civilidade. Um país ainda cheio de problemas, mas que plantou a base essencial para o futuro.

Transformado em estadista, Mandela foi também uma espécie de pajé, um velho sábio que fez jus ao mito graças a uma qualidade rara e contraditória em mitos: a humildade. Da mesma forma que arrumava sua cama todos os dias no palácio presidencial, despiu-se de ressentimentos, que poderia ter tido, por força da segregação, dos anos da prisão, da injustiça. Compreendeu que somente lançaria a paz em seu país se fosse o primeiro a baixar as armas. Com humildade, base da sabedoria, Mandela tornou-se superior. Algozes e vítimas de ambos os lados, negros e brancos, o seguiram pela força do exemplo. Uma boa história de Mandela está contada no filme Invictus - um exemplo esportivo de como ele conduzia um país beligerante à pacificação.

A intolerância, seja racial, econômica ou religiosa, é ainda a maior ameaça à civilização no Século XXI. Está por trás das guerras contemporâneas e provavelmente das que ainda virão. Mandela, morto semana passada, aos 95 anos, deixa dois grandes exemplos. O primeiro, que também é o de Gandhi, é o de que a paz prevalece sobre qualquer violência e que a tolerância extingue o rancor. O segundo é de que a igualdade, a democracia e a liberdade são e serão sempre princípios inerentes ao homem, e que líderes servem apenas para lembrar que os valores fundamentais da Humanidade são defendidos não nos grandes momentos da História, ou por mitos sobre-humanos, mas no dia a dia, pelo cidadão comum.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A beleza da segunda divisão



O Palmeiras ganhou com folga a série B do campeonato brasileiro e eu, como palmeirense, só posso dizer: foi muito bom. Nós, palmeirenses, nem tivemos que prestar atenção na série A, que deve ter sido o campeonato mais chato da história, com o Cruzeiro ganhando de longe, sem jamais ser ameaçado por ninguém. Enquanto isso, a gente... Nada de jogo nervoso. Nada de sofrer. O Palmeiras desfilou pela série B. E fomos bicampeões.

A série B tem enormes vantagens. Primeiro, a gente ganha 70% das partidas, garantido. Além disso, é uma tranquilidade. Nos jogos, só tem a nossa torcida. Os estádios sempre ficam meio vazios. Dá pra levar as crianças sem medo de confusão. A gente grita e o técnico escuta. Tomamos sorvete, conversamos, aproveitamos o calorzinho da tarde. Tem jogo terça e sexta-feira, não atrapalha o fim de semana. E, como o Palmeiras ficou sem campo, passa mais vezes na televisão sem pay per view.

Ir ao jogo na série B é mais ou menos como antigamente, quando eu era criança e meu pai me levava aos estádios pela mão. Os adversários são humildes e sempre sabem que somos os favoritos. Só entram para se defender. Como o Palmeiras da década de 1970, o jogo acontece sempre no campo do adversário. (Quando eu era criança, e torcia pelo Palmeiras de Leão, Leivinha, Luís Pereira, Dudu e Ademir, no intervalo do jogo eu e meu pai mudávamos de lado na arquibancada, porque o jogo também mudava de lado).

Jogar a série B dá nostalgia da velha academia. A partida, fosse com quem fosse, até o Santos de Pelé, era o Palmeiras o tempo todo com a bola no pé, no campo adversário. Precisávamos do goleiro apenas para resolver uns dois ou três contra-ataques. O Leão, com sua camisa azul e o calção bicolor, branco na frente e verde atrás, passava a maior parte do tempo na meia lua, com a mão nas cadeiras, assistindo à partida. Tinha gente que achava que ele devia pagar ingresso. Que importa se agora enfrentamos o ASA de Arapiraca? A sensação é a mesma. E a série B não deixa de ter emoção. Por exemplo, virar o jogo sobre o Payssandu somente aos 46 do segundo tempo certamente é um momento que fica gravado para sempre na memória.

Cheguei a uma conclusão. Acho que o Palmeiras devia cair sempre da série A. Assim, teríamos certeza de sermos campeões ano sim, ano não. Além disso, para o Palmeiras, ser bicampeão é pouco. Temos muito para igualar na série B a glória do passado que a camisa verde acumulou na série principal. A diretoria, espertamente, já entendeu isso. Daí a decisão estratégica de renovar o contrato com o Gilson Kleina.

Cair de novo não deixa de ser um objetivo à altura do nosso time, para o ano do nosso centenário. Começamos a caminhada para o Tri! Queremos a hegemonia da segundona!

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A morte e a morte do seu Alvarino



Três meses atrás, era a informação, que teria vindo de uma tia da minha mulher:

- Seu Alvarino morreu.

Que tristeza sem tamanho. Perguntei de quê. De câncer, disseram.

Ninguém menos indicado para morrer de câncer. Quando penso no câncer, penso na vida contaminada das cidades, nas pessoas amarguradas ou estressadas, nos alimentos perniciosos e no ar mefítico das metrópoles. Todas essas coisas que, para mim, sem nenhuma confirmação médica, ocasionam essas disfunções celulares no ser humano. O seu Alvarino, não. Era um puro, de vida, de alma. Até na cara. Albino, tinha o cabelo e a cara brancos. Um anjo, e sábio, porque já estava meio velho.

Plantava. Tinha um viveiro de mudas, em São Bento do Sapucaí. Foi uma das primeiras pessoas que conheci na cidade, quando lá comprei um sítio, faz já 15 anos, ou mais. Uma alma boa. Uma vida boa. E câncer. Câncer! Aquilo me tirava qualquer confiança na vida.

Alvarino estava sempre entre suas plantas, chapelão na cabeça. Fala mansa. Andava com sua velha Caravan caindo aos pedaços sempre cheia de verde saindo pelas janelas, como se fosse o motorista de um grande vaso enferrujado. Vendeu para mim as plantas que coloquei no sítio com tanto carinho.

Certa vez, me deu uma porção de mudas de árvores.

- Os passarinhos estão vindo para a cidade porque já não tem muita árvore de fruta silvestre no campo - disse ele. Fiquei maravilhado em ver aquele homem com uma preocupação que já escapa ao ser humano corporativizado: os passarinhos. - Te dou de graça, se você plantar.

Paguei, fiz questão de pagar. E plantei. Amora. Pitanga. Pêssego. Um monte de coisa. Tudo para os passarinhos.

Certa vez, a meu pedido, Alvarino foi no meu sítio. Tirou pedras que as crianças tinham enterrado nos vértices de velhas jabuticabeiras. Limpou galhos e troncos do musgo parasita que as cobria. Devagar, com amor e atenção, como quem dá banho em uma criança.

- É preciso tirar sempre essas oportunistas - disse ele. E me alertou: - Deixa sempre também molhado em volta, um pingo, sempre. Jabuticabeira gosta de água.

E as árvores nunca foram tão bem. Naquele ano, deu jabuticaba como nunca. (Os passarinhos comeram mais do que eu).

Aceitei a morte do seu Alvarino como um desses fatos tristes da vida, que nos tira as melhores pessoas. A cidade já não seria a mesma, pensei. A vida já não seria a mesma.

E cerca de um mês depois, já dando aquilo como favas contadas, ao passar pela cidade, cruzei rapidamente com o velho viveiro. Com um rabo de olho, avistei mas não acreditei. Estava lá ele, seu Alvarino. Caminhando ali entre as plantas. No meio de uns empregados.

Primeiro, pisquei os olhos: achei que tinha me enganado. Depois, brequei o carro. Deixei-o encostado de qualquer jeito na calçada e voltei vinte metros, a pé. Entrei no viveiro. Feliz como nunca, diante daquela ressurreição.

- Seu Alvarino! Me disseram que o senhor tinha morrido!

Ele estava magro, de cara chupada, movimentos ainda mais lentos que os de sempre. Confirmou que tivera câncer. Passara maus bocados, num hospital de São José. Mas não tinha morrido, não. Estava vivo. E melhorando.

Foi um milagre: eu exultava. Conversei com ele um pouco, contei que tinha mudado para outro sítio, um pouco mais distante. Precisaria de mais plantas. Queria reflorestar a cabeceira da água. E disse que estava muito satisfeito pelo fato de ele estar ali. Fui embora revigorado.

Muito bem. Digo agora a que vem isto tudo. Hoje, abro o Facebook, três meses depois. E dou com a notícia: "Seu Alvarino morreu".

Pensei: Ah, não. De novo?

- Tem testemunha? - perguntei a minha mulher.

- Três pessoas diferentes já confirmaram.

É duro ter uma tristeza duas vezes. Duas mortes, da mesma pessoa, em tão pouco tempo.

Acho que sempre que passar ali, na estrada, na altura do viveiro, vou dar uma olhadinha. Só pra ter certeza. Ou na esperança de ver o amigo, vivo, de novo. Outro milagre. A morte e a morte do seu Alvarino ainda não me convenceram. O mundo precisa das pessoas boas. E isso devia ser mais forte que esses golpes do destino.

Só me conforta pensar que o Alvarino deixou muita vida por aí. Não só por seus filhos, mas pelo que fez pelos outros e pela natureza. Com aquele seu jeito sem pressa de viver, até mesmo de cobrar a conta, de quem não liga para o tempo. Existe muita coisa que ele literalmente plantou, ou ajudou a plantar. Com seus cabelos brancos, as mãos brancas, as botas sete-léguas, o chapelão de palha.

Essas sementes estão por aí. E, com o tempo, podemos colher.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Beleza interior

“Vem, disse ele, juntando minhas mãos como se me forçasse a uma prece. Desejei de repente sua boca nervosa que me mordiscava, e suas mãos que redesenhavam meu peito e me estrangulavam com meu próprio cabelo. Implorou algo em meu ouvido,algo em um idioma distante, tapando minha boca com seus dedos que borravam meu rosto de suor.”

O trecho acima, extraído da página 99 do romance Onça Preta (Benvirá), da jornalista, escritora e marchand Lucrecia Zappi, não vem de um romance erótico como Cinquenta Tons de Cinza e, apesar de ser uma obra de ficção escrita por uma mulher, não é exatamente um livro feminino. Relato sobre uma estudante de botânica que vai às terras silenciosas e de gente agreste da Chapada Diamantina, Onça Preta é uma viagem para o lugar que mais interessa aos homens: o interior das mulheres, feito de longos silêncios, de relações não resolvidas, de pensamentos dúbios, que constroem uma lógica aparentemente sem direção.

Com um mestrado em escrita criativa pela Universidade de Nova York, sob orientação de E. L. Doctorow, autor de Ragtime, Lucrecia trabalhou no caderno Ilustrada, do jornal Folha de S.Paulo, e hoje mora em Nova York, onde trabalha em uma galeria de arte. Fala várias línguas, casou várias vezes, nasceu em Buenos Aires, mas foi criada em São Paulo, e estabeleceu estranhas raízes no sertão brasileiro. Onça Preta é uma mistura disso tudo, resultado das divagações de uma mulher de nacionalidades múltiplas, em dúvida sobre o passado, envolta pelo presente e suscetível a um futuro em aberto.

É um romance de artista, não apenas no texto cheio de meandros, capazes de lançar luzes sobre o que os homens custam a entender, como nas ilustrações, feitas pela própria autora, que vai pespontando seu texto com imagens supostamente feitas pela personagem em seus cadernos – assim como um Post, um Eckhout ou um Darwin fora de época, a Beatriz, que é o alterego de Lucrecia, registra cenários, insetos, plantas e outros detalhes sutis da história. Incesto, mistério, diálogos secos, rumos nebulosos e um desfecho insólito traduzem o desafio humano: conviver com nós mesmos e entender os outros, sem julgamento e, talvez, sem esperança. (publicado originalmente na PLAYBOY de outubro)

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Em Frankfurt, o Brasil é o velho Brasil de sempre


A homenagem da feira de Frankfurt não significa muito. A esmagadora maioria das pessoas que vão à feira para fazer negócios nem sequer passa pela ala do pavilhão onde está a exposição do país homenageado. A maior parte do público fica sabendo que há um país homenageado somente quando come hotdogs no pátio central entre os oito enormes pavilhões, na hora do almoço. É lá que acontecem os shows, em geral meio naives, dos países convidados. 

Recentemente, tivemos a Argentina, que teve como destaque uma enorme foto de Maradona, e a Islândia, um país de cuja existência pouca gente se dá conta. No ano passado, foi a Nova Zelândia. No palco diante da plateia que fazia a digestão ao sol que combatia o ar gelado, havia um grupo de indígenas maoris que, com seus atabaques, ilustravam o slogan do país - o lugar "onde se trabalha enquanto vocês (todos nós do resto do planeta que não vive no meio do Oceano Pacífico) dormem".

Frankfurt é uma feira de vocação comercial, e não uma festa literária como a de Paraty, mas de todo modo poderia ser aproveitada para fazermos algo que seria muito importante para a cultura brasileira: vender mais os nossos autores no exterior. A rigor, existem somente dois autores brasileiros que se tornaram autores internacionais. Um deles é Jorge Amado, publicado em diversos países, graças a uma rede de amigos comunistas, construída por ele quando ainda estava vivo, e que ajudou a difundir sua obra no passado. O outro grande autor brasileiro aos olhos do mundo é Paulo Coelho, um escritor que, mesmo sem prestígio intelectual no Brasil, conseguiu vender sua obra em 156 países, graças à temática espiritualista e ao trabalho de uma agente lutadora e perspicaz: Mônica Antunes.

É muito pouco.

Em Frankfurt, poderíamos tentar fazer mais, mas a participação brasileira mostra o velho Brasil de sempre: voltado para o próprio umbigo e com as mesmas mazelas. No seu discurso inaugural, o escritor Luiz Ruffato falou um monte de verdades, mas que só interessam a nós, brasileiros. Pelo discurso de Ruffato, passou-se a ideia de que o Brasil é um país com uma história cheia de crueldades, como se isso fosse uma boa razão para nos colocar no Primeiro Mundo, onde também se construiu a riqueza à custa de massacres e da exploração aviltante dos mais pobres.

O vice-presidente Michel Temer, que fez seu discurso em seguida, representando a presidente Dilma e o governo brasileiro, aproveitou a ocasião para bajular a si mesmo, lembrando que, além de deputado constituinte, é poeta bissexto.

Enquanto isso, como um bando de estudantes, um grupo de escritores tentava angariar assinaturas em favor de um manifesto de apoio à greve dos professores. O Brasil foi a Frankfurt para falar mal de si mesmo e mostrar seu provincianismo terceiromundista, num momento em que deveria estar se colocando como o país emergente que tem mais a oferecer.

O Brasil tem graves problemas, é verdade. Enquanto escritores convidados pelo governo fazem seu circuito auto-referente, o país mergulha no momento pior de sua ciclotimia. Há dois anos, o Brasil era um país genial, que crescia a olhos vistos, sem perceber que as reformas estruturais necessárias para garantir um crescimento sustentado estavam sendo deixadas de lado. 

A crise mundial pouco afetou o Brasil, mas começa a aparecer agora, como um efeito retardado. O país ainda investe muito pouco em educação, que é o fator realmente fundamental para um povo sair da miséria.

O governo federal cria uma série de programas fantasiosos para distribuir dinheiro a ONGs e outra entidades, de modo a alimentar uma enorme caixa preta onde a corrupção pode grassar à vontade. Enquanto isso, a classe média urbana, que paga a conta da bandalheira e vive cada vez mais cercada por impostos e taxas, que só acrescentam à carestia, vai às ruas protestar por melhores salários, acompanhada pelos baderneiros de plantão, que gostam de incendiar ônibus e virar carros de polícia, num acintoso desafio ao poder público.

Mudar para o Primeiro Mundo passa, em primeiro lugar, por uma mudança de mentalidade. O Brasil precisa se desprender de seus antigos comportamentos, que vão do provincianismo de seus políticos ao panfletarismo inócuo da sua intelectualidade. O Brasil tem de deixar de ser o país do futebol e do carnaval e se mostrar como um país sério, com uma cultura mais complexa e rica, onde a literatura ocupa um lugar especial, porque é do mundo das ideias que saem as ações que levam a um país melhor.

O autor brasileiro precisa entrar no mercado internacional, o que não depende de Frankfurt, mas de uma mentalidade globalizada. A importância de Frankfurt tem sido a de mostrar o quanto ainda estamos longe disso, e logo no país onde o livro é ainda uma indústria poderosa e até mesmo invejada pelo seu mercado interno. Temos uma enorme riqueza intelectual e pouca capacidade de vender nossa produção ao mundo inteiro, para ter autores importantes, e não apenas no exterior, como aqui dentro.

Ser vendido no mundo hoje é um passo essencial até mesmo para que o autor brasileiro ser vendido no próprio Brasil, um país que consome o produto globalizado, e por essa razão praticamente eliminou os autores nacionais das listas de obras mais vendidas.

Temos hoje um risco, que é a própria morte da cultura brasileira, diante da avalanche cultural estrangeira à qual se tem tão fácil acesso. Precisamos vender o Brasil para o mundo, para poder vendê-lo para o próprio Brasil, sem o quê deixaremos, perigoso castigo, de existir como Nação.


Os maoris em ação em Frankfurt 2012 e a efígie de Maradona: nada de literatura