quarta-feira, 3 de abril de 2013

Quanto uma casa pode valer


Ernest Hemingway tinha uma casa em Key West, ilha na costa da Flórida, cercada por belos jardins, que se pode visitar hoje em dia, como a um museu. Ali, ao lado da piscina, há uma moedinha encravada no cimento, da qual se conta uma história. Ao construir a piscina, a primeira e única em sua época na ilha, encerrando a obra que lhe custara uma pequena fortuna, Hemingway tirou a moeda do bolso, quando o cimento ainda estava fresco. E a jogou ali, enquanto contemplava a obra. “Tome”, disse ele. “Leve também o meu último penny.”

Escritores têm uma relação forte com a casa, o ambiente onde juntam suas coisas e se recolhem num mundo próprio e caloroso, favorável à criação. Existe nisso uma certa paixão obsessiva, ou uma compulsão, porque, por mais que se gaste todo o dinheiro na “casa dos sonhos”, essa compulsão nunca termina – o escritor parace um eterno insatisfeito, como se, para receber novamente a energia que o levará a um livro novo, precisasse também de uma casa nova, de novos ares.

Assim como Picasso, Hemingway trocava de casas e mulheres a cada fase literária. Não deve ser coincidência. Sem ser nenhum Hemingway, muito menos Picasso, sei muito bem como é isso. Já me mudei várias vezes, e nem quando morava sozinho em uma casa grande, com piscina e palmeiras imperiais, me dava também por contente. Para escritores, casas são um pouco como livros: quando você completa um, está ávido, ou quase aflito, por escrever o seguinte. E o mundo ao redor tem de girar em função disso. A gente faz girar.

Pouca gente entende esse processo. Assim como poucos entendem o sacrifício que fazemos para escrever um livro, não entendem como podemos abandonar tudo aquilo que outros já acham muito bom e parecia definitivo para buscar algo diferente. Isso cria muitos problemas com as pessoas que convivem mais de perto. Tenho a sorte de ter encontrado uma mulher que aceita meus ímpetos e está disposta a embarcar comigo nessas reviravoltas impulsionadas pelo coração, sem pesar tanto os recursos e os aspectos práticos. Não que ela não seja pragmática, ao contrário. Mas tem as duas moedas no bolso: a do cérebro e a do coração.

Assim como não se olha o preço que pagamos para escrever um livro, que nos custa literalmente um pedaço da vida – meses de trabalho, muitas vezes sem saber se teremos retorno -, não olhamos também o preço que o sonho imobiliário pode custar. Fala mais o coração. A maioria das pessoas faz muitas contas e evitar gastos desnecessários, pechincha ou procura saber se o preço pedido por um imóvel é justo. Escritores, não. Pagam o preço que for, certos de que somente ali serão felizes. E quanto maior o preço, melhor. Significa que o vendedor dá alto valor àquilo que ele está vendendo. E esse julgamento é o que vale.

O preço de um imóvel, como muita gente diz, é o de mercado. Eu vejo no imóvel um outro valor: aquilo que ele representa para o proprietário. Muitas vezes, o dono de um imóvel joga o preço lá para cima por conta da dificuldade de se desligar do lugar onde passou momentos felizes ou onde abrigou seus sonhos por um período da vida. Esses lugares não têm preço.

Há dois meses, encontrei um homem que está se separando de sua casa. Pediu por ela um preço exorbitante, para o lugar, para o tamanho, para o mercado. Ali ele vivia com seus cães, com uma mulher que o abandonou, com o nascer do sol e o café da manhã no meio da mata. Está ficando cego, devido a uma isquemia.

Este homem vende sua casa como quem abandona a vida. Talvez ele imaginasse que nunca encontraria comprador para a casa, nas condições que impõe. Eu nunca penso muito no dinheiro, mas na vida: daqui a alguns anos, será na experiência vivida que estará o patrimônio, e não no dinheiro investido.

Caminhando pela propriedade, deparei-me com um canil, onde um cachorro cinzento saiu sem fazer barulho. “Ele está cego”, disse o funcionário que me acompanhava. O cão cego de um dono que está ficando cego. Pensei no futuro, quando eu também, velho ou doente, cego ou entrevado, terei de sair dali. Casas pedem muito da gente, dão trabalho, são uma alegria para a juventude. Ainda estou em tempo, penso, e minha vontade de viver a vida passa por cima de qualquer obstáculo bancário.

Sim, o homem cego achou o cliente que não queria. E só nós dois, o que vende e o que compra, sabemos o que está realmente acontecendo. Que ele fique com meu último centavo.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Os dez melhores filmes de todos os tempos

O cinema está tão perto da literatura que ambos para mim são uma coisa só: a arte de contar histórias escrevendo produz imagens, e as imagens para mim se tornam como referências literárias. Segue aqui a minha lista de filmes preferidos, que para mim vale como a lista dos dez melhores filmes de todos os tempos. Assim como a lista dos dez melhores livros, cada um deve ter a sua. Fica esta como inspiração.

1. Cidadão Kane. Pode parecer óbvio citar este que tantos consideram o melhor filme de todos os tempos, pela novidade narrativa (um filme de ficção feito como se fosse um documentário), a força elementar da ideia central (o significado de "Rosebud", somente revelado ao final), e sua ligação com a questão essencial da felicidade. Os clichês sempre têm um fundo de razão. O delírio de poder e dinheiro do milionário Kane, barão da imprensa, é confrontado com sua solidão final. A ironia é que o repórter em busca da resposta para o enigma de Kane jamais a encontra - ela fica como uma espécie de segredo reservado ao espectador.



2. Zabriskie Point. A obra prima de Antonioni, sobre um estudante que foge da polícia, encontra uma mulher no deserto e tem com ela um parênteses de amor, é uma elegia da liberdade. O final antológico ainda me faz palpitar o coração. O mundo sempre quer enquadrar o indivíduo, submetê-lo; nenhum outro filme representa tão bem a liberdade, nem mostra como ela está perto da paixão. Pelo tema, e também a estética, ele é também o expoente de uma geração marcada pelos movimentos de libertação, fosse contra as ditaduras que havia pelo mundo como dos costumes, desde a roupa ao Woman's Lib. Se querem saber como a geração de 1960 mudou o mundo, este filme mostra qual era a sua força interior.



3. O Esporte Favorito do Homem. Estrelado por Rock Hudson e Paula Prentiss, é uma deliciosa comédia sobre um expert de equipamento de pesca convidado por uma charmosa e desastrada marqueteira a participar de um torneio num lago turístico. Até mesmo eu não entendo bem o fascínio que esse filme exerce sobre mim, ainda mais sendo uma comédia aparentemente sem maiores pretensões. Acredito porém, que o motivo seja esse: ele é uma parábola irresistível sobre a inevitabilidade do amor, a conexão entre duas pessoas que aparentemente se detestam, e a natureza paradoxal da ligação entre homem e mulher, cujo encontro sempre parece ir além das coincidências, como uma prova da existência do destino. Isso contado sem nenhum intelectualismo, mas com a graça que deveria haver em todos os relacionamentos amorosos.



4. Blade Runner. Este é o filme que marcou minha geração; perdi a conta do número de vezes que o assisti, e sempre encontro nele alguma coisa de novo. Tenho certeza de que nem Ridley Scott se deu conta, quando o fez, da importância que esse filme teria; não é por acaso que tenha gerado tanta discussão ao longo dos anos. Persistem ainda duas montagens, uma feita pelo estúdio, no seu lançamento, outra que é chamada de "a versão do diretor". Eu gosto de ambas as versões, embora nos últimos anos tenha preferido a do diretor, que é mais sutil, e ao mesmo tempo mais abrupta e cruel. A ideia dos androides que adquirem sentimento e querem mais tempo para viver pode parecer um antigo clichê, mas a criação de um futuro onde o passado faz parte do cenário, do bairro chinês às bicicletas, o clima chuvoso de um planeta que se tornou inóspito, e sobretudo o personagem central, um detetive noir, fazem dele uma espécie de quebra cabeça cultural onde entretenimento puro e filosofia se fundem de um jeito que até parece natural. E é cheio de momentos antológicos, como o encontro do ciborgue assassino com seu criador, parábola de um encontro do Homem com Deus, sua declaração no momento da morte ("lágrimas na chuva") e a frase final que fecha o filme, de um impacto macabro que não fala somente ao personagem, mas a todos nós.



5. Os Embalos de Sábado À Noite. Clássico de um tipo de cinema considerado trash, foi um estrondoso sucesso de bilheteria e um fenômeno de massa em seu lançamento, que mudou o comportamento de toda uma geração. O que mais chamava a atenção eram os malabarismos de John Travolta ao som de Saturday Night Fever, mas o que o filme representava era a possibilidade de um sujeito comum e sem esperança de melhorar de vida e se tornar alguma coisa diferente - um nome com significado, por meio de um talento especial. Isso teve um impacto expressivo em todos aqueles garotos que viviam na periferia, como não mais que um número de RG. E que achavam que, como Tony Manero, poderiam sonhar com alguma coisa, numa época em que a sociedade de consumo de massa e a busca pelo hit alcançavam o seu auge. O figurino datado, a estética brega, os diálogos que hoje soam bisonhos retratam uma época que não existe mais; talvez esses sonhos de fama e riqueza também sejam hoje coisa do passado, ilusão passageira daqueles que, como eu, gostariam de recuperar esse tempo em que tudo era possível, até mesmo ser inocente.



6. O Cão Andaluz. Lembro quando vi o filme de Buñuel, quado ainda estava na faculdade, em uma sessão na Biblioteca Mario de Andrade, em São Paulo. O filme ainda causava escândalo, embora por razões diferentes das que provocara no seu lançamento. O gerente teve de vir à plateia irada, explicar que a projeção não havia sido interrompida de repente; para exasperação do público que reclamava seu dinheiro de volta, revelou que a obra prima do surrealismo tinha, de fato, apenas 20 minutos. Esse delírio que tanta gente buscou inutilmente explicar, onde Salvador Dali aparece puxando um burro morto dentro de um apartamento e um olho é cortado a navalha, numa sequência de cenas absurdas, foi feito para não ter sentido, ou para chocar; é uma provocação à imaginação, a ver diferente, a abandonar a necessidade humana de explicação para tudo; é uma elegia do caos universal, uma desconstrução do que sabemos. Por isso, mostra que a tarefa humana é desaprender, para entender melhor: nenhuma outra obra de criação tem esse peso intelectual, estético e histórico.



7. O Gabinete do Doutor Caligari. O impressionismo alemão nos deu essa pérola, que nos faz ver como podemos nos acostumar com a loucura; ao nos fazer entrar na realidade do louco, ao ponto de parecer a normalidade, passamos a duvidar de tudo, sobretudo de nós mesmos. Uma das grandes tarefas do cinema, a meu ver, é nos fazer mudar de perspectiva; seja para entrar no mundo do sonho, da fantasia, ou mesmo da loucura, seja para quebrar conceitos e pensamentos pré-estabelecidos como para entender o outro e anós mesmos; aí ele se transforma em arte. Com isso, abrem-se novas portas; ver diferente, quebrar paradigmas, é o que faz a sociedade dar novos saltos, assim como permite aos indivíduos compreender melhor uns aos outros, fugir da mesmice e encontrar melhores caminhos.


8. Amarcord. Federico Fellini fez grandes filmes, mas entre eles este é meu preferido, pela sua leveza; o retrato de um pequeno paese italiano, onde os humores, os sentimentos e o próprio modo de vida mudam conforme a estação é uma amostra perfeita do que é a Humanidade; faz com que entendamos como somos parte do mundo e, embora o homem tenha fundado sua subsistência no artifício das cidades e das máquinas, se integra à natureza em espírito. É um filme, por isso, instigante e cheio de humanidade; o gênio de Fellini em encontrar a beleza e a extravagância no cotidiano faz a gente olhar com mais atenção e enxergar de verdade a vida ao nosso redor.



9. Doutor Jivago. Um épico em todas as suas dimensões, mostra ao mesmo tempo a grandeza e a iniquidade da vida; a história do médico que encontra a ruína e a felicidade, ainda que breve, as trapaças do destino, a crueza da realidade, a beleza do momento; há pouca coisa que faz o fascínio, o drama e a complexidade da vida que não esteja dentro desse filme. Julie Christie, como está aqui, é a mulher mais bela que já vi no cinema; nem mesmo a interpretação lacrimosa de Omar Sharif tira a força da história de Pasternak. E são inesquecíveis os cenários grandiosos, como a cabana mergulhada na neve onde se realiza o amor de Jivago e Lara, da qual eu não consigo me lembrar sem ouvir o lírico som da balalaica.



10. 2001, uma Odisseia no Espaço. Stanley Kubrick só fez grandes filmes; todos eles poderiam estar numa lista dos melhores de todos os tempos, assim como todos os romances de Gabriel Garcia Marquez estariam numa lista dos melhores livros. A visão de passado e futuro como uma coisa só, numa espécie de cosmogonia, porém, faz com que este seja seu trabalho mais ambicioso. Recentemente, tenho pensando também em como Kubrick foi profético. As panes de computador, que hoje fazem aviões caírem, e carros acelerarem em vez de brecar, tornam bem realista o HAL - o computador de bordo que toma conta da nave e passa a matar seus tripulantes. Um filme ainda misterioso, intrigante, com um ritmo que nos obriga a entrar em outra dimensão, e que esteticamente não envelheceu, mesmo com a visão bem mais precisa que temos hoje do espaço; esta é aquela obra de arte que qualquer criador gostaria de ter feito, ainda que forneça mais perguntas que respostas. Porém... Não será assim a vida?







domingo, 3 de março de 2013

O que é ser especial



André, 6 anos, leva um beijo de uma menina de 12, que vem dormir em casa.

Vem para minha cama, onde espero para lhe contar a história antes de dormir. Deita e, em tom confidente, me diz, na penumbra:

- Ela disse que tenho bochechas lindas. Eu sou um menino especial.

Sorrio. Digo:

- Você é mesmo um menino especial.

Ele esconde o rosto um pouco, se aproxima.

- Sou especial para você.

- Não filho, você é muito especial para mim, porque é meu filho, mas é especial para todo mundo.

O que é ser especial, afinal? Desde criança, sonhamos com muita coisa. Ser piloto de avião faria meu filho ser diferente? Será que a coragem distingue realmente os corajosos? Será que um cientista é especial ou mais especial que os outros porque a inteligência é distintiva. Ser belo é ser especial? Conheço gente corajosa e mesquinha; pessoas muito inteligentes racionalmente que são ignorantes sentimentais; existe beleza em gente feia, e isso pode fazer de pessoas sem grandes atributos físicos pessoais também especiais.

Todos cultivam a ideia de que é preciso ser especial, no sentido de diferente, único, com um talento ou capacidade admiráveis. É preciso ser especial para ser rico. Para conquistar as mulheres ou os homens. Para ganhar um prêmio. Para fica para a posteridade.

Ainda assim, todos são especiais, mesmo quem não tem talento, não se considera vencedor. Todo ser humano tem algo de único e inconfundível. Todo ser o humano tem o maior poder de todos: o poder de ser ele mesmo.

Meu filho me fez pensar sobre o que nos faz sentir especiais. E nessa noite, eu vi claramente o que é ser realmente especial. Ser especial é se sentir especial, por alguém que é especial para nós. Isso é o que faz a verdadeira diferença.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Pai, filho, amigo

As frustrações amorosas e um valor maior que ser, apenas, pai



Meu pai me disse, certa vez, que eu era o melhor amigo dele.

Confesso que eu, quando ouvi isso, no instante, não entendi. Eu o via como pai, não como amigo. Eu tinha muitos e grandes amigos. E um pai, somente. Isso devia ser muito mais importante que qualquer amizade. Não entendia como ele podia achar aquilo uma promoção.

Pego meu filho na escola quase todos os dias, uma maneira de estar presente no dia a dele, desde que me separei de sua mãe. E aproveito esse tempo, no trajeto da escola para casa, dentro do carro, ou na hora do almoço, para conversar.

Há alguns meses, quando ele tinha ainda tinha 5 anos, sentado na cadeirinha extensora do carro, ele disse que estava chateado com um colega de escola, G. aquele que considerava, até então, seu melhor amigo na classe. Melhor amigo, para ele, é um posto muito importante, e seu ocupante, embora varie de tempos em tempos, é levado muito a sério. Acontece que G., depois de tentar conquistar P., a garota que meu filho adorava, passou a dizer que não era mais ele. E meu filho, sinceramente triste, amargava a frustração de ver contra si aquele de quem esperava na amizade o benefício da reciprocidade.

- Ele diz que o melhor amigo dele agora é o D - disse meu filho, cabisbaixo, referindo-se a outro colega, inteligente e simpático.

Lembrei da minha conversa com meu pai, anos atrás. E pela primeira vez entendi porque ser amigo, para ele, era tão importante. País são dados pela natureza. Mas nem todos os pais são amigos de seus filhos. Amigos, a gente escolhe.

- Posso te contar um segredo? - eu disse a ele.

André adora segredos.

- O que?

- Você é meu melhor amigo.

Ele ficou surpreso. Talvez tanto quanto eu, no dia em que meu pai disse que éramos amigos. Assim como eu, não disse nada.

*
Em dezembro de 2012, fomos para a Disney, junto com a família de minha namorada. André estava animado em viajar para os parques de diversão na companhia de outras crianças ? só queria saber delas. A partida, porém, foi uma frustração. Depois de um voo para o Rio de janeiro, fomos barrados, eu e ele, por falta de um documento a ser anexado ao passaporte italiano, necessário na entrada em Orlando. Por volta das nove da manhã de um dia ensolarado, vimos o avião fechar as portas e tivemos de ir embora, enquanto os outros, embarcados, iriam decolar.

O voo seguinte para Orlando seria á meia noite daquele mesmo dia. Em vez de voltar para São Paulo e ficar em casa, á espera do novo voo, decidimos, eu e ele, ficar no Rio de Janeiro. Tomamos um táxi, almoçamos em um restaurante no calçadão de Copacabana e depois subimos o Pão de Açúcar. André regalou-se com lulas fritas na refeição, brincou no calçadão, refrescou-se nos vaporizadores de água. Depois, rosto colado no vidro do bondinho, aproveitou a viagem um pouco mais do que fizera da primeira vez que subira ali, com a mãe, num dia de tempo nublado. Mostrou para mim a passarela pelo bosque dos macacos, tomamos refresco e ele brincou bastante tempo nas telas interativas do museu que conta a história do lugar.

Pegamos o avião para São Paulo, no fim da tarde. Ele cochilou no meu colo, enquanto esperávamos o voo para Orlando, e dormiu também todo o trajeto até os estados Unidos. Esperou o dia inteiro com uma paciência diferente para um garoto de energia radioativa, estava bem humorado, sem me criticar ? eu, o adulto qeu havia esquecido o documento e causara aquilo tudo. Orlando seria muito divertido, com as outras crianças, os parques, toda a experiência. Porém, para mim, o dia forçado que passei com meu filho no Rio de Janeiro, como resultado do acaso, com certeza foi o melhor de todas as férias. Por causa dele.

*
André tem sido meu melhor amigo desde que nasceu. Quando era bebê, e eu escrevia em casa, era a companhia que eu procurava para as horas de intervalo. Eu o embalava para dormir, na hora do almoço. Catava para ele e, sem saber nenhuma canção de cor, inventava a letra ? depois anotava os poeminhas feito para ele dormir. Quando ficou um pouco maior, eu o levava para andar pela rua no canguru. Era meu companheiro, inclusive de trabalho.

Quando tinha de dois a três anos, quando almoçávamos em casa, ás vezes ele, que se sentava no canto oposto da mesa, levantava e vinha na minha direção. Setava no meu colo e gostava de me dar comida na boca, da mesma forma que eu fazia, quando ele era ainda um bebê. De alguma forma, sabia do que eu precisava. O papai cuidava da casa, da mamãe, do irmão, de todo mundo. Mas quem cuidava do papai? Havia no gesto de carinho, além da proeza de cuidar do adulto, algo que tinha a ver com compaixão.
Por esses e outros motivos, tive a impressão de que meu filho, mesmo pequeno, era capaz de me entender e levar em conta meus sentimentos. Preocupar-se comigo. Ser meu amigo. Tornou-se um companheiro bem disposto, mesmo para coisas que ele mesmo não entendia ou não gostava muito (certa vez, na saída de um jogo do Palmeiras, ele, com 6 anos, me disse, intrigado: ''pai, você gosta mesmo de futebol, né?'').

Quando me separei, e ele vinha passar as noites comigo, ficava mortificado por saber que eu vivia naquele apartamento espartano, sozinho.

- É triste - dizia.

Ele me estimulou a ter uma namorada. Aproximou-se dos filhos dela. Não queria estar sozinho, e sobretudo que eu ficasse sozinho.

Uma vez, sentado na sala, enquanto assistíamos TV, no intervalo do Bem 10, surgiu uma propaganda com a história de um garoto atrapalhado diante da namorada.

- Meninos sempre ficam um pouco bobos quando apaixonados - disse ele, que já havia caído de amores.

- Ah e como você sabe? - provoquei.

- Eu vi na TV - ele disse, para não dizer que sabia como era.

- É verdade -, eu disse. - Eu também, com as mulheres, sou meio bobo.

Com os olhos fixos na TV, André então disse:

- Não, você não é bobo com mulher, não.

- Sou, sim!

E ele, mortalmente sério:

- Não. Você, não.

Tenho a impressão de que os amigos sabem quem você. talvez melhor que você mesmo. Meu filho às vezes me assusta. E, como meu melhor amigo, me faz pensar.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

As coisas perdidas

A família, os elos cortados e a luz poente na super metrópole



Penso nas coisas perdidas, árvores caídas com o vento, que viram sinal do tempo, deixando um vazio na paisagem. Penso na mãe que já não vejo, mãe de um tempo benfazejo, tempo que também não retorna, enviado como ela não sei para que céu. Penso em meu pai, que ainda está por perto, mas ao mesmo tempo distante, como se tivesse sido bastante o tempo da minha criação. O tempo da família, que ficou atrás como a mobília, e deu lugar a uns poucos versos.

Penso nos amigos dispersos, pelo tempo e pelas obrigações, e penso que ainda somos todos os mesmos, próximos e fieis e queridos, um pouco mais vividos, talvez um pouco mais sofridos, e sinto falta do aconchego da amizade.

É como se a roda viva fizesse perdida a juventude, esta que não precisaria acabar nunca, porque ela mora no peito, a despeito do que acontece com os cabelos mais brancos. Penso na liberdade perdida, a liberdade de andar e brincar na rua da infância, a rua sem medo, menos quando diziam que vinha o homem do saco. Penso na confiança arrancada do peito, a melancolia dodo tempo que meu filho jamais terá; da vida em casa de meus avós, desperdiçada continuidade.

Sinto falta dos elos cortados, sinto falta dos outros que não vejo. os outros que prezo ainda mais que antes, pois não importa estar longe, de estarmos indolentes, ruminando a vida; sofro por mim e por eles, angústia que no final é só minha, pois todos entendem melhor, assim penso, que a vida segue dessa forma, é seu natural.

A angústia é só minha, como são também minhas são as flores, o torvelinho da água, a chuva de verão; as paisagens que não serão perdidas na espiral da memória, ou apagadas na indiferença do tempo; talvez as pessoas devessem ser como as árvores, que quando caem descobrem mais um pedaço de céu.

Deslizo estes pensamentos no caderno quadriculado com a ponta da minha Jotter, querendo ficar um pouco mais; não perdi a sensação do vento no rosto, não eprdi os meus desertos, que enchi com o coração; não perdi o prazer simples do homem andando na rua, esquecido na multidão, nem de ver a vida próxima, os rios de lanternas vermelhas no fim de tarde, a metrópole ensanguentada pelo sol poente, que se enfia sob as pontes da Marginal; os bueiros que exalam seu hálito de sepulcro, os mendigos de olhos negros, os seguranças de ternos mal ajambrados; as janelas enegrecidas pela fuligem da cidade.

Perdemos aquela calma do passado, trocado pelo frenesi, mesclado à indiferença, acabou-se o tempo de olharmos para nós mesmos, o que dizer então de olhar para os outros; perdemos o hábito de parar o relógio, de jogar baralho após o almoço de domingo, de tirar a soneca, de não fazer nada, esquecer o tempo. Perdemos muito do sentido, dos laços, das antigas salvaguardas, da importância essencial da vida sem objetividade, sem informação imediata, do direito ao esquecimento; perdemos assim as esperanças, e mergulho dentro de mim mesmo, como quem vai ao poço beber.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O fim da sociedade do ócio

O desafio da era contemporânea é preservar o sentido da coletividade sem perder a liberdade individual extrema que a era digital permite



O filósofo e economista André Gorz, em seu livro Adeus ao Proletariado, previa ainda na Década de 1980 que viveríamos numa "sociedade do ócio". A criação de facilidades com a computação doméstica e a industrial, onde a produção passou a ser feita por robôs, criaria riqueza e geraria mais tempo para o homem dedicar-se ao lazer e a si mesmo.

Não aconteceu nada disso. Claro, os robôs estão na fábrica, assim como os computadores pessoais estão não apenas em casa como agora no bolso dos cidadãos, mas não existe a sociedade do ócio. As corporações exigem agora que se responda a tudo imediatamente, fazendo tudo mais rápido, ao mesmo tempo, e por menos dinheiro. Uma solicitação por escrito pode e tem de ser respondida em tempo real.

Perdemos o direito de não sermos encontrados e de ter um tempo para nós mesmos. Antigamente, o trabalho não era tão selvagem. As pessoas ganhavam a vida sem tantas tarefas. Tinham menos pressa. Não sabiam pelo Facebook o que acontecia na vida dos outros. Vivíamos na sociedade do ócio e não sabíamos.

*
Claro que a frase anterior é de efeito e não retrata a realidade. A bem da verdade, a sociedade do ócio não aconteceu e não acontecerá jamais. O homem foi feito para querer sempre mais. É o único animal com capacidade e vontade de acumulação. É o único ser da natureza que junta mais do que o necessário para viver. É que tem noção de futuro, o conceito que impulsiona a necessidade da provisão.

O homem guarda para si, para a família, para o amanhã. Ou simplesmente para ter mais. Inventou o capital e a concorrência. A sociedade se amoldou ao processo cumulativo.

O ganho de capital aumentou ainda mais a desigualdade social. Na idade Média, o rico morava num castelo de pedra, mas andava a cavalo e comia pernil em cima do mesmo feno onde defecavam os cachorros. O pobre vivia numa cabana, mas andava a cavalo e comia pernil em cima do feno onde defecavam os cachorros. A geração de riqueza aumentou também a distância entre os que se aproveitam dela e os que são apenas explorados ou marginalizados.

A multiplicidade de seitas religiosas hoje parece querer compensar esse mundo agreste, criados por nós mesmos. Olhar o próximo com compaixão, pensar no outro generosamente e sermos solidários são formas de restabelecer não apenas nossa humanidade, como de pedirmos um pouco de clemência para nós mesmos. Nenhum homem é produtivo, cumulativo e auto-suficiente a vida inteira. Existem os seres dependentes, física e financeiramente. E todos ficam velhos.

É preciso pensar nos sistemas de saúde, que atendam não apenas os que têm dinheiro ou são capazes, mas os que simplesmente não podem ficar desassistidos. É preciso pensar nos problemas coletivos e oferecer nossa cota parte de trabalho individual em benefício do bem comum. Sabemos que uma sociedade com mais equilíbrio reverte seus benefícios também para os que mais contribuem com ela. O rico não pode passar a vida dentro de um muro cercado pela favela. Isso não é viver bem.

A compaixão é algo que devia ser incentivado nas novas gerações. O smartphone é o símbolo de uma era de extremo individualismo, em que cada um pode levar no bolso seu pequeno universo pessoal. Com um iphone, podemos não apenas satisfazer necessidades pessoais como nos relacionar com os outros.

Cada geração possui seus desafios, e a desagregação será com certeza um deles. A educação sempre tem como objetivo estabelecer comportamentos éticos coletivamente aceitos e isso se torna cada vez mais difícil numa cultura que permite e estimula a múltipla escolha.

Sem sombra de dúvida, a educação será o maior negócio do futuro. Dela dependerá o sucesso das Nações para se manter unidas e preservar sua organização e a força coletiva.

O individualismo é essencial para a existência humana, vocacionada para a liberdade, um direito inquestionável. O problema é como aprofundar a liberdade sem perdermos o sentido coletivo da Humanidade, que hoje parece tão ligada virtualmente, mas nos oferece universos absolutamente individuais e sem fronteiras.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

De autor a editor - e vice-versa



Como jornalista, me tornei editor muito cedo, aos 23 anos, quando trabalhava na revista Veja. Desde então, sempre ocupei cargos de chefia na imprensa, e me tornei publisher de revistas, como a Forbes, que formatei editorialmente para ser lançada no Brasil, em 2001, e dirigi durante seu primeiro ano.

Em 2003, deixei meu emprego na imprensa para me dedicar apenas a escrever. Foi uma forma de respirar, depois de exercer cargos executivos desde tão cedo. Durante oito anos, vivi apenas de livros, a começar pelo lançamento da biografia best seller de Rolim Adolfo Amaro, fundador da TAM (O Sonho Brasileiro, 2003), seguida por bem sucedidos livros de ficção (A Quinta Estação, 2005, Campo de Estrelas, 2007, e Amor e Tempestade, 2009). Durante esse tempo, não deixei completamente a imprensa. Escrevi para revistas como Estilo, Playboy e Veja São Paulo, onde fui convidado a fazer um trabalho especial, o perfil dos vencedores do Prêmio Paulistanos do Ano, em suas duas primeiras edições. Boa parte desses perfis foi também republicada em um livro, Eles Me Disseram (Saraiva/Versar, 2008).

Em novembro de 2009, aceitei um convite da Editora Saraiva para reunir minha experiência como autor e editor num desafio único no mercado: desenvolver a área de ficção e não ficção da empresa que tem como co-irmã a maior rede de livrarias e o maior site de comércio eletrônico de livros da América Latina. Deixei de ser um violinista no telhado para reger novamente uma pequena orquestra. Aprendi muito e fiquei bastante satisfeito com os resultados da missão.

Em três anos e quatro meses, um período relativamente curto para o mercado, a Saraiva passou a frequentar com seus livros o palco central do mundo editorial no Brasil. Fizemos alguns best sellers, como o livro de memórias de Ozzy Osbourne, e trouxemos para a Saraiva as principais obras de um best seller brasileiro, Paulo Coelho, que pela primeira vez fez também um livro para crianças (Fábulas, 2011).

Com a criação do selo Benvirá, um nome que extraí de um velho disco de Geraldo Vandré (inventor das imaginárias “Terras do Benvirá” e da “Capitania de Vanmar”), a Saraiva começou a vender com mais liberdade suas obras não somente para a rede própria, como para todas as outras redes e livreiros independentes do Brasil. Para consolidar a marca, instituímos o Prêmio Benvirá de Literatura, que começou com um recorde de inscrições (1.932) em concursos literários no Brasil. O ganhador, o estreante Oscar Nakasato, um professor de português de Apucarana, no Paraná, arrebatou ano passado, com o mesmo livro, Nihonjin, o Jabuti de Melhor Romance - o prêmio mais importante do mercado brasileiro.

Com o Benvirá, demos oportunidade a vários autores estreantes, revelações como Lívia Brazil, Alessandro Thomé, Benedito Costa Neto, Raphael Montes. E essa história continua. Com a segunda edição do Prêmio, que paga 30 mil reais de dotação, o tradutor e professor da USP Luis Sérgio Krausz, recém anunciado vencedor, além de ser reconhecido no meio acadêmico e intelectual, poderá receber também o impulso comercial e de marketing para lançá-lo entre os grandes autores brasileiros. Mais uma dezena de originais oriunda do Prêmio está sendo negociada para a publicação. Entre os finalistas, estão cinco autores inéditos, que vão ganhar o mercado graças ao concurso.

Tivemos espaço também para a não-ficção nacional, do best seller A Dieta Gracie à reedição de livros importantes de História, como 1961 – O Brasil entre a Ditadura e a Guerra Civil, de Paulo Markun e Duda Hamilton. Não esqueci também o jornalismo em livro, com a publicação de reportagens contemporâneas, como Dias de Inferno na Síria, a saga do repórter brasileiro Klester Cavalcanti, preso no país da guerra mais cruel do nosso tempo, e As Melhores Frases em Veja.

Construímos para a Saraiva um catálogo que garante boas vendas também no médio e longo prazo, com autores clássicos como Patricia Highsmith, William Faulkner, John dos Passos, Hermann Broch, José Donoso. A eles se juntam autores contemporâneos de qualidade, cuja obra certamente vai perdurar, como o romancista britânico Rana Dasgupta, o ensaísta mexicano Enrique Krauze, o historiador israelense Schlomo Sand e o professor de ciência política Joseph Nye - alguns dos intelectuais mais importantes da atualidade.
A Benvirá participou das últimas três Flips com cinco autores. Demos um brilho novo à festa com as “Musas da Flip”: primeiro, a cubana Wendy Guerra, depois a argentina Pola Oloixarac, que conquistaram um grande público não apenas pela beleza propalada pela imprensa em Paraty, como pela qualidade de sua ficção. E fizemos barulho, com eventos como a “festa Cubana” em homenagem a Wendy Guerra, ou o desfile do dragão chinês e do cantor de kabuki em Paraty, ano passado, para promover o livro de Zoé Valdés, A Eternidade do Instante, sobre um chinês em Cuba.

Ao mesmo tempo em que trouxemos autores internacionais, abrimos caminho para vender os autores nacionais fora do Brasil. Numa iniciativa inédita para uma editora brasileira, elaboramos um catálogo internacional, em inglês, e constituímos Luciana Villas Boas agente da Benvirá para vender as obras de nossos autores no exterior. O que, esperamos, renderá os primeiros frutos agora nas feiras de Londres e Frankfurt. Vendemos os direitos de livros de nossos autores para o cinema e abrimos largo espaço na mídia para nossas obras. Pela primeira vez a Saraiva viu livros da editora ocuparem espaço nobre na imprensa, como a capa dos cadernos de cultura da Folha de S. Paulo, Estadão e o Globo, além de reportagens extensas nas principais revistas semanais.

Claro que por trás de todas essas iniciativas esteve sempre a minha vontade de fazer pelos autores tudo aquilo que eu, como autor, gostaria que as editoras fizessem por mim. O autor brasileiro carece de um trabalho mais individualizado, que o ajude a construir de fato uma carreira. O autor brasileiro comercialmente mais bem sucedido, Paulo Coelho, teve que se virar sozinho quando lançou seus primeiros romances, chegando a dizer que voava e fazia chover (a mística do “mago”, a imagem que o ajudou no começo, e hoje, no Brasil, lhe custa um pouco caro).

Hoje Coelho pode dizer que vendeu mais de 150 milhões de livros porque não dependeu jamais de um editor brasileiro. Na verdade, ele sempre teve a seu lado uma bruxa de verdade, a agente Mônica Antunes, uma mulher extraordinária de quem tive a felicidade de ficar amigo. Mônica se dispôs a representar Coelho quando ele não havia vendido ainda, no Brasil, mais que 500 exemplares. Certa vez, perguntei a Mônica como ela tinha conseguido vender os direitos dos livros de Coelho em mais de 150 países. E ela me respondeu, com sua funcional simplicidade: “Batendo de porta em porta”.

Nos três anos em que estive na Saraiva, bati também de porta em porta: na porta dos agentes, dos livreiros, dos jornalistas, dos eventos literários. A área de ficção e não ficção, incluindo a dos livros infantis com o selo Caramelo, teve seu faturamento multiplicado por quatro. Se tudo está tão bem, por que sair, agora? Porque ainda sou autor e o apelo de voltar à vida de violonista no telhado é muito forte. Quero voltar a escrever, especialmente meus livros, na imprensa e também aqui.

Para minha tranquilidade, e da Saraiva também, deixo uma equipe muito competente, liderada agora por Rogério Alves, que foi diretor editorial da Planeta, um conhecedor do livro e do mercado. Sujeito que acorda cedo, Rogério é um trabalhador diário e astuto que move a equipe com seu singelo e simpático mote, repetido em tudo o que faz: “Vamo que vamo!” Com a editora Débora Guterman e uma equipe que deixará saudades para mim, estou certo de que ele fará um trabalho ainda melhor do que eu seria capaz.
Desejo toda a sorte a Rogério e à equipe da Benvirá, bem como a todo os nossos autores. A eles agradeço a confiança em mim depositada e os resultados até aqui. Espero que eles possam enfrentar os desafios internos que existem em todas as corporações e os externos, não apenas os de mercado como os trazidos pelas mudanças da era digital. Estou certo de que a Saraiva, como as demais editoras brasileiras, saberá encarar mais esta fase não como um problema, mas como a abertura de novas oportunidades. Dessa forma é que se poderá preservar não apenas a essencial função do editor como a própria cultura brasileira.