sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Luz sobre as sombras


Maior sucesso comercial americano de hoje, a trilogia Fifty Shades of Grey (Cinquenta Tons de Cinza, por conta de um trocadilho intraduzível no título, recém lançada no Brasil), já recebeu enorme atenção da imprensa como fenômeno literário. E é campeã de especulações sobre as causas de seu sucesso - mais de 10 milhões de exemplares vendidos em seis meses, sobretudo nos Estados Unidos. Sucessos sempre são mistificados. Nesse caso, devido ao seu conteúdo sexual, ainda mais.

Uma das teorias para o sucesso da trilogia, conforme a expressão cunhada pela imprensa inglesa (“pornô para mamães”), é de que ela oferece uma história libertadora para a mulher moderna, para quem a submissão sexual seria uma espécie de novo sonho de consumo, depois que ela ganhou poder, independência financeira e novas responsabilidades no mundo pós-feminista. Outra explicação para o alcance de Fifth Shades é a de que a pimenta fetichista daria um gostinho novo, mais liberado e de fantasia aos ingredientes que sempre agradaram o público feminino – a garota romântica apaixonada pelo rapaz lindo, rico e um tanto misterioso.

Um pouco de luz sobre as múltiplas sombras elimina rapidamente as mistificações. O primeiro mito sobre Fifty Shades é de que se trata de uma trilogia. Na verdade, os três livros são um só – ler qualquer deles de forma independente é insuficiente e não faz sentido. A divisão da obra numa suposta trilogia é uma solução esperta, criada no lançamento do e-book. Como o preço do livro virtual nos Estados Unidos é baixo, os editores o cortaram em três pedaços, para forçar o leitor a pagar por ele em três vezes. Cada livro sai no kindle a 9 dólares. Assim, o leitor gasta 27 dólares com Fifty Shades, preço de um livro impresso convencional.

Críticos já apontaram no livro “inverossimilhanças”, como a ideia de que a personagem principal ser virgem, aos 21 anos, não seria algo do Século XXI. Na verdade, a Anastassia de Fifty Shades segue uma antiga tradição do romance erótico, consagrada pelo Marquês de Sade, que teve seu próprio nome associado a certo tipo de perversão, em função de sua obra literária e de seu comportamento. Nas obras de Sade, que levavam o nome de suas heroínas, a personagem principal é sempre uma jovem inocente (e virgem) levada para uma iniciação no mundo de preferências sexuais de seu amor/algoz – e do autor, o que no caso de Sade eram a sodomia e a flagelação.

Ao final dos livros de Sade, personagens como Justine e Pauline deixam para trás a antiga inocência para conhecer um tipo de prazer que lhe faz descortinar dolorosamente aonde pode chegar o ser humano. São livros pulsantes de um misto de crueldade e lubricidade que chocam pelo que revelam dos subterrâneos mais inexplicáveis do ser humano. Perseguido e preso pelo teor de sua obra e seu comportamento, Sade foi um escritor polêmico em seu tempo e se tornou um clássico maldito. E.L. James não deixará nada para a história da literatura, exceto um exemplo de sucesso comercial que a tem feito ganhar um bom dinheiro enquanto cai no vazio o discurso moralista.

Não é o fetiche sadomasoquista a verdadeira fantasia de Fifty Shades. Para quem ler com cuidado a dedicatória do livro, fica claro que o sadomasoquismo é parte da vida da autora, que sugere possuir um relacionamento dessa ordem com o marido. Para ela, o ambiente desse tipo de fantasia é bastante real. A fantasia verdadeira do livro, e que lhe dá o gosto especial, é justamente o que ele tem de antigo, isto é, a fantasia feminina de sempre: o príncipe encantado rico, bonito e inalcançável, que Anastassia quer atrair para si, e nos seus próprios termos. O que faz da história um jogo fluido e envolvente.

Fifty Shades não é nenhuma obra prima, mas é uma leitura fácil e intrigante e nos leva a pensar um pouco sobre os relacionamentos. No livro, Anastassia luta para trazer o complicado milionário Grey para um relacionamento normal, e redimi-lo de um passado tortuoso ao qual ela associa sua dependência do fetiche sexual. No entanto, ao mesmo tempo em que ela o traz para o amor que o senso comum chamaria de normal, começa também a se sentir atraída pelos prazeres que no começo lhe causavam medo e repulsa. A autora não tem pressa em fazer essa passagem, na qual a Justine da era digital passou a ter a possibilidade de descortinar a beleza de um relacionamento em que prazeres e maltratos se confundem – de acordo com os novos tempos, de forma consensual.

A literatura erótica sempre existiu e encontrou no e-book a forma ideal de propagação para um velho conteúdo. Você pode ler Fifty Shades no ônibus ou no metrô sem que se desconfie qual é o objeto do seu interesse. Muita gente, inclusive no Brasil, um país onde o puritanismo é um inibidor da venda em massa desse tipo de obra, teria dificuldade de levar para casa um livro que tem na capa um par de algemas ou uma gravata com uma função igualmente sugestiva. Existem algumas coisas que nem mesmo o mundo contemporâneo mudou e que jamais vão mudar – incluindo as opções que as pessoas só fazem à vontade num ambiente privado.

domingo, 4 de setembro de 2011

Ao Ruy não se diz adeus


Ruy Mendes Gonçalves, um dos homens mais importantes do mundo do livro, não gostava de ler. Era formado em administração de empresas, e deu uma contribuição importante para fazer da Saraiva uma das maiores editoras do país, e a maior rede de livrarias do Brasil, com uma centena de lojas, a maior parte delas megastores, conceito que introduziu no país. Acionista da empresa, membro do conselho de administração, ex-principal executivo, sua vida era fazer esse negócio dar certo - o que muita gente que gosta de livro, mesmo gostando, e muito, não conseguiu.

Dizia fazer uma parceria como poucas com o sr. Jorge Saraiva. Admirava o sócio e amigo por sua sabedoria, inteligência, equilíbrio e honradez. E acreditava que ambos se completavam, pois via em si mesmo mais ênfase em outras qualidades: humildade, persistência, capacidade de trabalho e decisão. Com isto, mais do que qualquer outra coisa, ambos ergueram ainda mais um negócio sólido, que mesmo quase centenário se revela hoje ainda o mais capaz de enfrentar as rápidas mudanças requeridas por um mercado em franca mutação.

Porém, o que Ruy deixou ao morrer sábado, em decorrência de câncer, não foi só uma parceria e uma companhia bem sucedidas - ao menos para aqueles que tiveram a sorte de conviver mais perto dele.

Ruy foi um garoto enjeitado. Conheceu seu pai quando tinha 9 anos - e teve com ele uma convivência curta, porque o pai partiu cinco anos depois, vítima de leucemia, a doença que foi uma sombra para Ruy a vida inteira, e que no final também enfrentaria. Para crescer, em todos os sentidos, Ruy dependeu sempre de ajuda. Por isso, o Ruy essencial era um homem grato - a todos os que o ajudaram, e à vida, que não o abandonou.

Como decorrência, ao longo de sua vida inteira, sua principal característica foi a fidelidade, o reconhecimento, o senso de justiça, e a generosidade com que procurava ajudar os outros, ou devolver, na pessoa de quem encontrava pela frente, tudo o que havia recebido.

Ruy adorava o time do São Paulo. Não era apenas uma paixão futebolística. Lembrava de quando o pai, na sua tão curta convivência, o levava ainda garoto aos campos do Paulistano, que viria a ser o São Paulo de hoje. Para ele, o São Paulo era mais que futebol: era a lembrança do pai, era a ligação afetiva com as pessoas, era a família que ele nunca teve.

Teve que construir uma família para si. E construiu uma enorme. Ao morrer, contava não só com seis filhos, genros, netos e agregados, mas os milhares de colaboradores da Saraiva e os amigos que encontrou pela vida, em quem sempre deixava uma lembrança, um sinal, uma história.

Conquistou tudo o que queria - e mais do que imaginava - pela tenacidade. Como os estudos quem lhe pagava era o tio, um presente da sorte, ele sempre foi aquele que tinha de se esforçar mais do que os outros, porque nada lhe vinha de graça; tinha de corresponder, como uma forma de agradecer. Passou a vida se esforçando, correspondendo, agradecendo e construindo coisas melhores do que as que lhe entregavam.

Criava metas importantes, e não desistia. Encontrava gente desanimada, e a levantava com seu ânimo admirável. Diante das dúvidas, ele decidia. Chamava para si a responsabilidade. Gostava de encontrar pessoas que fizessem bem o seu trabalho. E procurava nelas as qualidades que cultivava em si mesmo: perseverança, trabalho, humildade, honestidade e qualificação.

Aos 70 anos, diante da doença, e da vontade de escrever um livro de memórias (O Serelepe, Editora Saraiva), conquistou a última coisa que lhe faltava: tendo passado a vida envolvido com números e pessoas, passou a encontrar prazer no hábito da leitura.

Um homem como Ruy sempre fará falta. Mas ele deixa como herança seu exemplo de sabedoria, a sua capacidade de decisão, a sua fortaleza moral, a sua habilidade em incentivar e liderar pessoas, o seu interesse pela vida, que o fazia sempre enxergar à frente, e tomar as decisões mais corretas - ou corrigir os erros antes dos outros.

Há muita gente que viveu com Ruy e partilhou da sua escola. É essa gente, que o admirou e lamenta sua falta, que herdou dele mais que uma saudade: guarda a capacidade presente de ajudar a levar adiante o seu trabalho.

domingo, 15 de maio de 2011

Perguntas na China

Uma tarde com o pequeno André e João na Liberdade. A rua dos Estudantes, onde eu nasci, as lanternas na rua, a feira, comer no tatami com o hashi de elástico para crianças, André adorou tudo. Rolou pelo tatami, comeu yakisoba como se fosse macarronada italiana. No final, apertado de tanta laranjada, perguntou à mãe.
- Tem banheiro aqui na China?
Andamos pela rua, entramos para comprar coisinhas gostosas e exóticas no supermercado japonês. Curioso, André sai fuçando pela loja e acha uma portinha que dá para uma despensa meio escura. Vai abrindo primeiro, pergunta depois:
- Mãe, aqui é que ficam os bandidos?
Fomos de metrô, para André andar de trem (segunda vez na vida) e matar saudade de Nova York, quando o menino hoje com quatro anos ainda estava na barriga da mãe e caminhávamos pela cidade aos domingos. Para ir embora, pegamos um táxi.
- Moço - disse ele ao motorista. - Vamos voltar agora para o Brasil?

@
Saudades de escrever. Vou voltando, aos poucos.

domingo, 3 de abril de 2011

Quixote

O escritor é muitas vezes um Quixote, pois não é fácil ser contra tudo e contra todos o tempo todo. Porém, assim é seu espírito, pois se há algo de comum entre todos os que escrevem é a sensação de que mais vale passar a vida de lança em riste contra moinhos imaginários que levar a vida ruminante dos conformados.

sábado, 12 de março de 2011

A presença do passado

O México é um sítio arqueológico: por toda parte, se sente a presença do passado. As pirâmides, próximas da cidade do México, uma cidade grande como São Paulo, com menos prédios, por temor dos tremores - estruturas reforçadas, com colunas cruzadas, para suportar abalos símicos como os que já resultaram em tragédias coletivas. O vasto parque, cercado por montanhas vulcânicas, cortado por canais, onde no passado havia um grande lago, e no lago uma grande ilha, na qual vivia o grande povo azteca - os mexicas, de onde os mexicanos tomaram seu nome. Os espanhóis varreram a cidade azteca do mapa, demoliram seus templos de pedra, passaram a fio de espada seu orgulhoso imperador, que vestia um cocar de penachos azuis e liderava um povo guerreiro que subordinara seus vizinhos ferozmente: mas de alguma forma pode-se sentir seus fantasmas ali.



Do alto do hotel Nikko, pela parede envidraçada de onde eu avistava esse cenário em minha passagem relâmpago pela cidade, não sabia que encontraria ali meus próprios fantasmas. Numa manhã livre, apenas algumas horas, decidi visitar o museu antropológico, a quinze minutos de caminhada; queria ver as esculturas toltecas, maias e de todos aqueles povos bárbaros que habitaram a América Central; e a grande sala mexica, com suas paredes de pedra negra, onde atrás de um vidro está o cocar de Moctezuma, que teria sido dado de presente a Cortez, seu algoz, antes da traição dos visitantes conquistadores e cobiçosos; e, no fundo do salão, sob o jato de luz que jorrava de um spot no teto de pé direito altíssimo, a Pedra do Sol, peça mais importante da coleção, pela concentração de significado, materialização da teoria circular da vida para os aztecas, com os ideogramas das estações, que giram ao redor do deus guerreiro, segurando na mão dois corações sangrando - seu almoço ou seu jantar.

Fui embora, impressionado; passei pela ala central do museu, a céu aberto, com um lago povoado da vegetação nativa que ao tempo mexica abundava no lago de Tenochtitlán; passei pela grande coluna azteca com um chapéu metálico, ao redor da qual jorra uma cascata permanente, como um véu d'água circular, descendo sobre o chão; saí em direção às barracas dos camelôs, que ficam diante do museu à espera dos turistas, vendendo máscaras coloridas de luta livre, flautas andinas, canecas pintadas. De repente, parei: ali estava, miniatura esculpida em pedra verde, imitação da obsidiana, produto mais precioso do lendário passado mexica, uma réplica da Pedra do Sol. E me lembrei de que minha mãe me dera uma peça como aquela - ou melhor, aquela peça, provavelmente comprada naquele mesmo lugar, tantos anos antes, quando voltara de uma viagem ao México; sempre vinha com alguma lembrança, ela que colecionava colheres turísticas e outras quinquilharias, uma maneira não somente de mostrar apreço aos outros, mas de contar de si mesma; logo ela, que falava muito, mas pouco dizia realmente de si.

Caí em mim: eu andava pelos lugares de minha mãe, os mesmos lugares, o mesmo museu, a mesma calçada, a mesma barraca. Olhava para aquilo como ela tinha feito; saí dali a sentir aquela presença, como a sentiria novamente mais tarde ao ver, no aeroporto, às três da manhã, na vitrine da madrugada, o sombrero negro, como o que ela também me trouxera, com certeza comprado ali mesmo - quem compraria um sombrero, aquele trambolho para o transporte, exceto no próprio aeroporto, já perto de embarcar?

Tomei o avião pesado de sono e de alma; ali minha mãe tinha feito descobertas, as mesmas que eu; encarara os despojos místicos mexicas, talvez com o mesmo assombro; as salas onde abundavam os sinais da religiosidade mexicana, pobre, colorida, e ao mesmo tempo sombria, com seus esqueletos e espantalhos e xamãs; um povo que mistura vida e morte, e que nisso talvez tenha sabedoria, eu que hoje percebo, com a memória de minha mãe, como a morte está mesclada à vida, nos acompanha, não sai de nós; a morte dos outros, com quem temos de aprender a viver, e a nossa morte, antes que nossos filhos passem sobre as mesmas calçadas, talvez fazendo as mesmas perguntas.

Minha mãe faleceu há dois anos, mas de certa forma nada passou; ela continua dentro de mim, eu a vejo nas sombras, nos lugares que passo, no prato que como, em palavras que ouço; na reza do meu filho, que ensinei a rezar como ela me ensinou ("proteja papai, mamãe, eu e tooodas as criancinhas do mundo", e tinha que ter aquele "tooodas as criancinhas do mundo").

Tenho vontades de chorar, tenho ganas de revolta, tenho crises de impotência, por não poder voltar atrás; tenho ódio da crueldade divina, que nos coloca no mundo para conhecer a felicidade máxima e nos tirá-la; artífice de um mundo efêmero, onde toda a esperança é sempre provisória. Me pergunto todos os dias, olhando o riso do meu filho, como é possível ser feliz depois de se descobrir o sofrimento da perda sem retorno; a alegria das crianças nos ilumina, nos conforta, é o que nos salva, é um pouco de saúde no meio da loucura, mas lá dentro fica uma sombra, como se fossemos agora somente um resto do que fomos.

Minha vida com minha mãe não foi perfeita, brigávamos como inimigos, ela tinha um amor destrutivo, egoísta, insensível e feroz; era no entanto o maior amor que eu conheci, violento e voraz; era, de todo modo, o único amor de mãe que eu tinha. Eu fui tudo o que ela não queria para mim, por isso conspirava contra minha felicidade, a ponto de me confundir entre o amor e o ódio que eu lhe devotava, talvez em igual medida; descobri, porém, que nem com a morte de minha mãe me separei dela; continuo a conviver com os mesmos conflitos, a dialogar com ela, porque ela não está apenas na minha carne, no verde dos olhos, nos cabelos claros, nuns jeitos e manhas que se apanha às vezes em fotografia; ela está dentro de mim, companhia permanente, que salta diante dos meus olhos a qualquer instante, como no México, no México de seus fantasmas vivos - mais vivos, talvez, do que nós mesmos, porque os fantasmas, esses sim, são para sempre.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Um livro curtido no tempo


A história de um romance que levou dois séculos para poder existir e sete anos para ser escrito

Não sei bem ao certo quando comecei a escrever meu primeiro romance, Filhos da Terra. Talvez tivesse começado ainda criança, quando ouvia as histórias de meu avô José.O mais certo, no entanto, é que tenha começado naquelas férias de verão, em 1983.

Eu tinha 19 anos de idade. Ainda estava fazendo duas faculdades, jornalismo e ciências sociais, e pude aproveitar uma semana inteira de férias para visitar vovô, a bordo de um Fiat 147 preto, com rodas de liga leve e volante de couro costurado, com a lataria meio carcomida pela ferrugem. Era o meu primeiro carro, comprado com o dinheiro apurado de maneira esparsa, trabalhando como modelo em comerciais de televisão.

Vovô se mudara para uma pequena chácara em Suzano, junto com minha tia Malfisa, com quem passara a viver sozinho desde a morte de minha avó, seis anos antes. Ficava a pouco mais de meia hora de carro de São Paulo, pela rodovia dos Bandeirantes. Mais dez minutos por uma estradinha vicinal, que se infiltrava sinuosamente pelo que se tornara com o tempo um vasto campo verdejante. Ali, desenhava-se o mosaico de propriedades dos pequenos agricultores, que formava o cinturão verde da metrópole, abastecedor do mercado central de frutas e verduras.

Aquela chácara era historicamente um refúgio. No final da década de 1960, minha tia a cedera a amigos que eram militantes de esquerda, para esconder-se da polícia política, durante o regime militar. Meio aposentada, foi dar aulas na escola de Suzano e mudou-se para lá, numa espécie de exílio involuntário para vovô. Como titia não se casara, ou melhor, se casara tardiamente e se separara do marido de forma meteórica, encarregara-se ela, entre os cinco filhos de vovô, de cuidar dele - já passado dos noventa anos de idade. Tia Malfisa desbastou o matagal ao redor da asa, a estrada de terra que ligava a chácara à estradinha de asfalto foi alargada e clareada, e o lugar se tornou mais aberto, embora ainda bastante retirado.

O terreno já limpo era um aclive onde tia Malfisa e vovô lutavam com suas parcas forças para que brotasse um pouco de grama e um rarefeito pomar. A casa, com o chão de cimento queimado vermelho, típico das casas de interior, uma cozinha pequena, uma sala ampla e um puxado de alvenaria recém-construído, onde ficava o novo banheiro e os dois quartos, era mobiliada com os móveis de madeira negra que outrora ocupavam a casa de vovô quando minha avó Dileta ainda vivia: a cristaleira da sala, a pesada mesa de pernas em X, as cadeiras de espaldar trabalhado e uma estante de livros, alguns dos quais eu mesmo havia dado a minha tia de presente.

O lugar preferido de encontro, contudo, era a cozinha. Fresca, refrigerada pelo vento que entrava calmamente pela janela, com o filtro de barro de onde vinha uma água cristalina, aquele era o lugar para fugir ao calor tropical, sentar, ouvir meu avô cantar, o que ele mais gostava fazer. E ouvir as histórias com que ele entremeava suas cantorias, atividade em que podia passar horas intermináveis, indiferente ao possível aborrecimento da audiência e ao desgaste do corpo e da garganta, que ele combatia a partir de certa altura com pequenas doses de pinga com limão. Escarradas desobstruidoras se seguiam, para permitir que prosseguisse no seu impávido monólogo.

Digo monólogo porque a essa altura vovô José já era quase completamente surdo, o que dificultava de saída qualquer comunicação de mão dupla. Tentara utilizar diversos aparelhos para surdez, mas nunca se ajustara a nenhum. Tia Malfisa dizia que, diferente de surdo, ele na realidade não queria escutar mais ninguém. Apenas sabia que gostávamos de ouvir suas histórias, eu, minha irmã Lara e meus primos, e começava a falar de enfiada.

Possuía memória extraordinária. Podia cantar dezenas de canções sertanejas, ou “modas”, como dizem os caipiras, sem repetir uma sequer. Além disso, dispunha de um vasto repertório de canções italianas, algumas das quais raridades que ouvira cantar ainda em criança e das quais se lembrava quase à perfeição. Era um verso engatado no outro, em porfias que podiam durar até uma hora sem parar dentro de um mesmo poema. Assim foi que aprendi histórias como as dos briganti Passanante e Il Passatore, galantes e sanguinários bandidos da antiguidade, e canções dramáticas como a de Salvador Misdea, que possui talvez o melhor começo de poema que conheço, depois do célebre “As armas e os barões assinalados” dos Lusíadas: “Canto um drama terribile e funesto, da caserna de Pisa Falcone”...)

Continuei a gravar tudo o que meu avô dissesse. Passei a visitá-lo regularmente, não só com o intuito de encontrá-lo, mas de deixar um registro vivo de tudo o que dizia, agora certo de que naquele sertão onde vivera podiam ocorrer coisas realmente extraordinárias. Tomava do meu Fiat 147 e lá ia para Suzano, com meu gravadorzinho, cuja chegada ele recebia com festejos, pois a presença da máquina era sinal de audiência garantida por algumas horas. De vez em quando, eu pedia alguma coisa, ou o dirigia para outro assunto, canção ou história, munido de um caderninho onde anotava minhas observações; esse era nosso meio de comunicação, embora não surtisse muito efeito. Na verdade, ele cantava o que lhe dava na telha, e ignorava meus esforços de pedir alguma coisa em especial. Antes de começar, apenas olhava animado para a maquineta de gravação e proferia a pergunta preparatória:

- Tá ligado?

Meu dia preferido para essas visitas era o sábado. Vovô começava a dissertar por volta das duas horas da tarde, quando terminava o almoço, e podíamos ir naquelas tertúlias sem interrupção até dez ou onze horas da noite, quando, vencidos pelo cansaço e os apelos de minha torturada tia, íamos enfim para a cama.

Daquela maneira, fui juntando um farto material. Mais do que a música, o que aumentara meu entusiasmo era a visão do mundo que se revelava pelo meu avô; suas opiniões simples mas particularíssimas sobre as pessoas e o mundo; e, sobretudo, as histórias e os personagens que ganhavam vida nas suas memórias. Aí começara a nascer o romance do velho José, embora ele mesmo nunca tivesse se interessado pelo assunto. Numa daquelas tardes, por meio do uso do caderninho rabiscado a lápis preto, comuniquei a ele que estava pensando em escrever um romance, inspirado nas histórias que me contava. E pedia seu auxílio. Ao ler o meu bilhete, contudo, vovô apenas riu.

- Está pensando em escrever um romance? – disse. – Isto está em você.

Logo terminaram as férias de verão e voltei à minha rotina de estudante. As fitas com as histórias de vovô ficaram guardadas, mudando de gaveta para gaveta, sem destino certo. Muitas vezes pensei em iniciar o tal romance que havia imaginado. Seria o relato de um homem desconhecido, mas que tinha grandes coisas a contar; um homem simples, elevado à condição de herói pelas suas atitudes e pelo ambiente épico que conseguia enxergar à sua volta durante toda a vida. Eu queria tornar aquele reles José num personagem à altura do homem que meu avô via nele mesmo, e que de certa forma todo ser humano vê em si próprio. Aos poucos, comecei a transcrever as fitas, pensando simplesmente em arrumar as histórias como ele as havia contado. Seria um relato em primeira pessoa, com as expressões e maneirismos da fala de meu avô. No entanto, aquilo não tomava corpo, e eu não sabia por quê. Era jovem demais, destreinado, e teimava que aquela tinha de ser a história de José Fiorini, contada por ele mesmo.

Nos anos que se seguiram, fiz algumas tentativas de arranjar aquele texto, pouco burilado em relação ao original. Mostrei-o a algumas pessoas, que jamais demonstraram grande entusiasmo. Por cerca de dez anos, aquilo permaneceu nas minhas gavetas, como um sonho de juventude, praticamente abandonado. Ainda mais quando meu avô veio a falecer, alguns anos depois, deitado em sua cama, numa noite em que se encontrava sozinho em casa, sem que alguém estivesse por perto para socorrê-lo. Muitas vezes pensei em como teria sido essa noite, o homem sozinho, diante da morte. E mais, diante da perspectiva do esquecimento eterno. Aquilo me deixou profundamente abalado e certo de que precisaria fazer alguma coisa para trazer aquele homem de volta à vida.

Só mais tarde comecei a refletir que o romance só começaria realmente a se transformar em livro quando as histórias reais, contadas por meu avô, começassem a entrar no terreno da imaginação. Seria um passo difícil, porque não seria mais ele a narrar a história, mas eu a conduzi-la por meio dos seus olhos. Poderia aproveitar alguns trechos, idéias, personagens herdados do relato de meu avô, mas teria que inventar a maior parte de tudo, a partir de uma teia complicada, tecida por muitos personagens. A essa altura, eu já trabalhava há dez anos como jornalista; decidi abandonar um bom emprego como editor da revista Veja para que pudesse ter mais tempo de dedicação a escrever. Antes de voltar aos meus alfarrábios e às fitas de meu avô, procurei escrever algumas histórias curtas, como um treino para o trabalho que viria a seguir. Dois anos mais se passaram, até que eu me senti enfim à altura da história que considerava realmente grande.

Então aconteceu um pequeno milagre. Tantas vezes eu já ouvira as histórias de meu avô, que sequer voltei a consultar minhas anotações. Elas haviam se incorporado a mim de tal forma que por vezes eu já nem distinguia mais o que ele havia me contado de minha própria imaginação. A narrativa corria fácil, surgiam personagens, novas tramas começava a tomar forma. Eu sabia aonde queria chegar, mas não imaginava quantos caminhos surgiriam até que todos os personagens pudessem encontrar o desfecho pretendido. O livro foi ganhando corpo. Saído do zero, em seis meses tinha mais de 100 páginas. Depois de um ano, estava quase pronto, com mais de trezentas páginas. Cansado, contudo, encerrei-o abruptamente e deixei-o dormir novamente. Tinha preguiça de encontrar aquela tarefa hercúlea outra vez pela frente; adiava-a, relutava. Retomei o trabalho somente um ano mais tarde, sem rever o início, puxando o fio onde a meada acabara, de maneira a enfrentar com fôlego o trecho final.

Quando terminei, as histórias de meu avô já eram parte diminuta do conjunto do texto. Elas ganharam cores, outras histórias e novos sentimentos nasceram. Foi só então que percebi o que meu avô queria dizer, quando afirmava que aquele livro estava dentro de mim. Filhos da Terra, que então eu chamava apenas de Iusfen, o apelido doméstico de meu avô, não era um livro do desconhecido José Fiorini. Era o meu livro, sobre um homem chamado José Fiorini - um outro contador de histórias. E era um livro sobre todas as personagens que ambos vimos de forma material ou imaginária passando pela vida, como nós próprios. Com o desejo, muito íntimo, de que nossas histórias pudessem se cristalizar, registradas no papel, e ficar na memória de todos para sempre.