sábado, 18 de setembro de 2010

As virtudes superiores

Existem as grandes virtudes e as virtudes superiores. Um estágio mais avançado de sabedoria.

As virtudes superiores não combinam com a juventude, demoram a ser alcançadas. Demandam tempo e experiência para se formar, por isso só vicejam na maturidade. E representam um novo tipo de poder.

Depois de descobrir o poder da palavra, aprende-se o poder do silêncio.

Depois de querer ser alguma coisa, queremos ser nós mesmos.

Depois de aprender a lutar, aprendemos a resignação.

Depois da volúpia, vem a moderação.

Depois de desenvolver nossos potenciais ao limite, temos de aprender a parcimônia e a modéstia.

Depois de desafiar, aprendemos a aceitar e conviver.

No lugar da persistência, vem a temperança.

No lugar das paixões e do amor, aprende-se amizade.

Isso não é envelhecer, é aprender. Quando jovens, somos menos humanos. Pensamos menos nos outros e mais em nós mesmos. Somos egoístas e acreditamos poder muita coisa. Descobrimos que antes de nós muitos já tentaram as mesmas coisas e mesmo as coisas mais impossíveis; que o sucesso em algo é apenas um recomeço para uma nova busca; que viver apenas para nós mesmos não faz sentido e todas as conquistas que servem apenas a nós se tornam vazias.

Envelhecer é se conformar, é desistir? Não. Podemos conseguir mais e melhores objetivos de outra maneira. Inclusive o de viver melhor e sermos mais felizes.

Dessa nova forma, podemos também ajudar mais os outros. A idade mostra que tudo o que fazemos não é para nós, ou pelo menos não deveria ser. Porque vamos embora um dia, e os outros ficam. Então, só há sentido real naquilo que fazemos para os outros. Não para sermos lembrados, mas como um benefício, um bem real, que mostra que a nossa presença fez alguma diferença.

Quando o homem se aproxima do limite da existência humana, vai mudando de valores, pois já não faz sentido disputar, guerrear, acumular riqueza; descobre que antes se debatia contra tudo, e agora quer seguir o leito do rio e entrar em harmonia com a existência para melhor aproveitá-la. Busca bens mais efêmeros, tanto quanto os duradouros, no seu dia a dia; como no sorriso, no abraço, na beleza do gesto. Quando já não temos muito tempo, aprendemos a paciência. Quando já não temos tanto vigor, admiramos e buscamos mais a força da vida.

A virtude superior evita que se perca tempo ou nos distraiamos com embates e buscas inúteis. E nos preocupamos menos em educar do que em estar ao lado dos jovens. Dar o exemplo ou pregar é inútil. Os tempos mudam e cada geração tem sua própria sabedoria. Os utopistas do passado, aqueles que tentam algum tipo de conservação de valores, que buscam raízes num mundo existente somente nos livros de história, a pretexto de ensinar, são os verdadeiros velhos.

A sabedoria está em não deixar de ser quem você é e mesmo assim ser alguém capaz de mudar com o tempo, adaptar-se, sem queixas nem melancolia. Continuar como uma força transformadora, porque se os tempos mudam, é por conta daqueles que um dia já foram jovens e vão envelhecendo. Os homens reclamam muito que os tempos mudaram, sem dar-se conta de que foram eles mesmos que os mudaram.

E são os melhores anos, sempre, aqueles que virão.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

O que significam os desenhos?

O que passa na cabeça ao desenhar e explica os desenhos.

Virgulino: na época eu escrevia o romance Amor e Tempestade, no qual o célebre capitão surge como personagem, senti vontade de criar uma imagem dele por alguma razão.

O porquinho: escrever sobre o sertão me lembrou vias secas, como Graciliano já tem a cachorra Baleia me ocorreu o porquinho sofredor sob o sol inclemente.

A cama com lençol de rosas: na verdade é um auto-retrato escrevendo no frio de 13 graus negativos de Manhattan sob um edredon que minha mulher comprou no Soho; estava na vitrine sob um retrato da Mirilyn Monroe e lembro muito bem não somente por causa da Marilyn como pelo fato de ter custado 500 dólares.
caravela: adoro caravelas, velas enfunadas me dão ideia de liberdade, exploração, conquista do mundo. Vivo desenhando isso.

Passeio ao lado do Hudson: onde caminhávamos quase todos os dias, ficava ao lado de casa, no Battery Park City.

A loirinha brava: ninguém em especial, apenas a fúria feminina em estado puro.

O feto com o coração: minha mulher estava grávida, acho que eu até sonhava com isso, é o primeiro retrato do Guinho (baseado num ultrassom).

A rua que termina no rio: vista da janela do nosso quarto.

O garoto gordinho: começou com apenas um círculo.

A mente livre

Quando eu estava no segundo primário, no extinto Colégio Aclimação, uma agradável casarão na Rua Loureiro da Cruz em cujo vasto terreno há hoje um imenso condomínio vertical, adorava a aula de desenho e especialmente um momento da aula de desenho: explorar o livro Criatividade. Tinha páginas coloridas, cada uma com uma função. Havia as amarelas, laranjas e assim por diante; foi ali que li pela primeira vez os microcontos de Cortázar com seus cronópios, bichinhos imaginários, e outras histórias que povoavam a imaginação. Na página azul, era descansar. As páginas brancas, se não me engano, eram para fazer o que queríamos: um estímulo a correr os lápis livremente sobre o papel.

Ainda hoje gosto desse exercício. Deixar a mente correndo livre sobre o papel. Saem garatujas, desenhos, linhas, palavras: é quase uma necessidade de descarregar o que há dentro da cabeça, e isso me faz um bem enorme. Tenho muitos caderninhos que levo comigo cheio de anotações, ideias para livros, projetos impossíveis, plantas de casas que jamais construirei, frases lembradas ou inventadas, rabiscos sem sentido e muitos desenhos.

Em Nova York, em 2006, ganhei de presente de uma amiga uns pincéis coloridos adoráveis e comecei a fazer cenários da cidade com cor. Ficaram como pequenos retratos daquele período da vida e da família, que reproduzo abaixo.

Espaço livre para criação não é só escrever: assim é que a gente funciona, movidos pela necessidade obsessiva de expressão, sem a qual entupimos ao ponto de explodir, a forma mais certa de loucura.














segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Meu romance preferido



Existem os livros preferidos dos leitores. E os preferidos de um autor, entre seus próprios livros.

A quem pergunta qual de meus livros é meu preferido, uma só resposta: Campo de Estrelas. Talvez não seja meu melhor livro, em técnica, resolução ou mesmo ambição. Certamente é o que foi pior lançado. Todos os romances de um autor falam ao seu coração. Ele é meu preferido por uma só razão: as pessoas que envolve.

A primeira delas: meu pai. Claro que o pai do livro, inspirado nele, é quase ele. Claro que a viagem do livro, entre pai e filho que juntos rumam por terra a Macchu Picchu, foi também uma viagem de verdade. Coisas da literatura, a fantasia que acrescentei ao romance às vezes me parece muito real, tanto quanto a realidade pode parecer às vezes fantástica ou fantasiosa. O mendigo misterioso, travestido de rei em farrapos, foi um personagem que vimos de fato em La Paz. Que eu e ele não esquecemos.

Meu pai diz que não se lembra de detalhes que eu conto no livro. Fatos que eu tenho como reais podem ser mesmo fruto da imaginação. E ele lembra de coisas que já me escapam. Nunca saberemos ao certo. Já lá vão mnuitos anos, há a traição da memória e a diferença de pontos de vista. Mas foi estranho esse encontro de memórias por meio do livro. Foi estranho o simples fato de meu pai ter lido o livro. Ele, que me fazia ler todas as noites, antes de dormir, quando eu era um projeto de gente (ainda sou).

Sim, meu pai lendo um livro que escrevi. E, depois de ler, me deixou uma mensagem. Esta:

"Querido filho, prezado autor Achei lindo e comovente este final. É claro que sou suspeitíssimo não apenas por ser personagem, companheiro de personagem e pai do autor. Mas sobretudo admirador do estilo e sobretudo da coragem de se revelar publicamente. Fica sendo um livro de aventuras, diário de viagem, literatura juvenil, novela romântica, tudo dependendo da página em que o leitor estiver."

*

Outro personagem caro do livro é o do médico, identificado como Roger. Houve um Roger de verdade - Eric Roger Wroclavski, que tratou do pólipo na bexiga de que fui vítima, me salvando a vida.

Eric morreu há cerca de um ano, vítima de câncer na próstata, que descobriu quando já era tarde demais - ironia cruel, caiu pela doença que tratava. Eric era um herói, que lutava diariamente acima de forças humanas para salvar a quantos pacientes podia. Não sabiamos que ele mesmo sofria do mal que combatia diariamente, pois a ninguém contou da doença. Nem à família. Nem aos médicos que com ele trabalhavam.

Fui ao hospital visitá-lo. Li para ele os trechos do livro em que aparece. Achou que eu devia ter posto o nome dele de verdade. Se eu soubesse o que ele sabia, pensei, teria escrito um romance muito melhor. Nem o mais imaginativo ficcionista poderia imaginar que o médico estava mais doente que o pacioente, e as perguntas que me fazia sobre a vida, literatura e como encarar a vida tinham para ele interesse capital. Comungávamos do mesmo medo.

Depois de saber que ele era um homem marcado para morrer desde o início (ficamos doentes na mesma época), todas as nossas conversas ganharam para mim um novo sentido. "Você devia ter me contado", disse eu. Eric riu. Mal se movia na cama, e riu. Eric salvava vidas, mas só temporariamente. Só os livros podem eternizar realmente as pessoas. Essa é a pretensão da literatura - perenizar estrelas tão fugazes com um brilho capaz de ficar no tempo. O sentido desse meu Campo de Estrelas, onde está reservado lugar para todos nós.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A Flip do povo


Durante cinco dias Paraty foi capital, tomada de assalto pela Flip, que invade suas calçadas centenárias, suas casas ancestrais e sua geografia congelada no tempo para um espantoso evento cultural. Saem de seus tugúrios em todo o mundo os autores convidados, desembarcam na cidade com sua bagagem desajeitada, en vans que se aproximam do alvo pulando nas pedras feitas para incomodar estrangeiros e invasores, mais do que favorecer a visitação; e o povo acorre em massa para ver aquela gente estranha, com ideias velhas e novas, importantes e inúteis, agudas ou enfadonhas; uns para aprender, neste país cuja sede de saber é proporcional à nossa imensa ignorância, outros apenas para aparecer, ou estar perto de algum centro de acontecimentos; uma cidade é transformada em vitrine, com todos os cantos vigiados pela imprensa, grande circo armado ao redor das tendas armadas com precisão de primeiro mundo. Filas para comprar livros, gente de mão no queixo, embasbacada diante de tanta inteligencia: é o Brasil andando, o Brasil ao qual só falta educação para decolar rumo ao verdadeiro progresso, o Brasil lindo e trigueiro da música proverbial.

Como a Fórmula 1 do saber, o circo se instala; flanam pela cidade aqueles estrangeiros de todos os matizes, autores desembarcados de outro planeta, jornalistas, editores, assessores para tudo; vagueiam com suas dúvidas, suas ânsias, sua pressa, suas questões metafísicas, sua insônia permanente, suas psicoses, sua vontade de mudar, sua esperança cetica de que num encontro de cabeças brilhantes alguma faísca de progresso se possa produzir como que por milagre; são uns crentes, os intelectuais. Desfilam suas certezas inócuas, sua vaidade anacrônica num anfiteatro onde esquecidos da cultura ganham de novo súbita importância, devolvidos à notoriedade; e quando chega o domingo, tomam suas malas e embarcam de volta para a sombra das vans, para suas noites de insônia solitária, enquanto as centenas de pessoas invisíveis, aquelas que até então estavam no segundo plano, aquelas que chamamos de povo, que nesses dias paracem ocupar anonimamente a praça, invisíveis para a mídia, para aqueles alienigenas céleres e efêmeros, as pessoas que fazem número, a massa informe à qual ninguém até então havia prestado atenção, retoma o controle de seus território, e a cidade é tomada pelo batuque de escola de samba; a alegria se espalha, como se sentisse novamente livre para ficar à vontade.

O povo volta a ser ele mesmo, distante das ideias, distante do que leva aquela gente ensimesmada a tantas perguntas, e portanto a tantas angústias; a alegria pura e simples retoma seu espaço, enquanto os varredores de rua jogam em sacos de plástico preto os restos de festas desesperadas, esforços inúteis, das utopias elitistas, das mais ilustradas ilusões.

sábado, 3 de julho de 2010

O país da alegria


Perdemos outra Copa em 2010; o Brasil tinha um técnico arrogante, um time confiante, que se dizia "um grupo fechado", e que de fato não deixou entrar mais ninguém; que não falava com a imprensa, movido por uma solidariedade interna que, em caso de vitória, teria sido força, mas na derrota fiocu só isolamento, só teimosia, só presunção.

Penso que o Brasil precisa continuar Brasil, humilde, mesmo no futebol. As crianças aqui já não aprendem a jogar em campo de terra, com bola de meia, ou de capotão; jogador de futebol é profissão séria, embora se comece nisso tão cedo; profissional não pode ser jovem, não pode fazer bagunça, nem tem muita liberdade; é uma máquina de ganhar dinheiro, produto de exportação, e sofre muita cobrança, há muita pressão.

Porém, não perdemos nossa alma: temos ainda aquela mistura, aquela reunião de talento, de garra, de força, de criatividade, de flexibilidade, de capacidade de mudança, de espírito de luta. Sabemos que não ganhamos sempre, mas que sempre seremos os que podem ganhar mais vezes. Sabemos que, mesmo após a derrota, a vida vai continuar. E que voltaremos a ganhar.
Não há ninguém no mundo melhor que o brasileiro para fazer a tristeza ir embora, não só em letra de samba, mas na vida real; já perdemos outras vezes e sabemos nos levantar; esse é um povo onde a alegria é inerente, fazemos piada e seguimos adiante.

Há quatro anos, meu filho estava dentro da barriga da minha mulher. Minha mãe estava com câncer e eu voltava para o Brasil por ela e por mim, em busca dos amigos, dos parentes, de amor e de raiz. Quatro anos depois, meu filho nasceu, cresceu, já grita "basil!", chuta forte com o pé direito, corre com a bola nos pés, faz ela parar, ajeita-a para bater, agita a bandeira nacional. Minha mãe faleceu há dois anos, mas teve a oportunidade de ver o primeiro neto nascer, e depois o segundo, meu sobrinho Theo. Pudemos eu e minha irmã lhe dar essa alegria, em meio ao tormento da luta contra a doença. Hoje, ao ver meu filho com uma camisa amarela da seleção que serviria num urso de pelúcia, choro ao pensar em como ela ficaria emocionada ao vê-lo assim; ela que também chorou quando leu o primeiro boletim escolar do neto; ela que tanto amava o Brasil; ela que, mãe e professora primária, me ensinou a escrever. Ela que acreditava que a educação mudaria este país, um desafio que ainda está diante de nós. Ela que torcia apaixonadamente pela seleção, porque para minha mãe, mais que qualquer coisa, fosse torcendo pelas meninas e meninos do volêi, do basquete, de qualquer esporte, a seleção era o Brasil, o Brasil a seleção.

Minha mãe não pode ver esta Copa; essa foi a primeira que vi sem sua força, sua alegria, sua ama brasileira; minha mãe cantava, dançava, era Brasil e carnaval; tinha luz na alma e olhos verde-amarelos como os meus e como a bandeira nacional. Seus netos correram e pularam por ela, mesmo sem ainda entender perfeitamente a fuzarca que vira esse país nos momentos de Copa. Sim, minha mãe teria chorado com a derrota da seleção, como agora eu choro, por ela e por mim; mas a Copa também nos faz olhar para a frente, para as crianças que estão no nosso regaço, que pelo menos por algum tempo ainda jogam bola como antigamente, sem pensar em mais nada, apenas na alegria lúdica do esporte, com seu sorriso de que não conhece tristeza - aquela inocência fundamental que não devíamos perder jamais.

*
Penso que tudo o que fiz foi bem feito; fico feliz por ter dado a minha mãe algumas de suas últimas alegrias; de fazer este país ter futuro, não só por ações, mas com esta criança que não conhece as regras do jogo, mas já intui os mistérios da bola; e penso que todo egoísmo é inútil, vivemos não para nós, mas somente para os outros; a vida se acaba e só viver para os outros hoje para mim faz sentido, porque são sempre os outros que ficam, sucessivamente.


Vivo hoje para os outros e acho que o Brasil devia ser assim também; porque nós ficaremos, mas o Brasil seguirá adiante; que a nossa próxima seleção esteja mais ao lado do povo, porque é para o povo, para o país, que essa alegria devia servir.

Campeões no coração


A Copa de 1982 será para sempre a lembrança de como éramos jovens, de como éramos fortes, e de como lutar contra o destino, as impossibilidades, os golpes da vida fazem da era romântica também a mais sublime.
Em 1982 eu estava na faculdade, fazia Ciências Sociais à tarde, Comunicação pela manhã, ambas na USP. Passava meu dia na universidade, com suas alamedas, sua calma de fazenda, apenas aparente; naquele tempo a escola fervilhava, eram assembléias de estudantes mobilizados contra o final da ditadura, ainda havia greves, manifestações, a vida tinha um sentido político de mobilização em nome de algo melhor: a democracia purificadora de 30 anos de ditadura militar, de porões sangrentos, de censura à imprensa, sem voto nem liberdade.
Diferente da geração de nossos pais, que tinham visto o golpe militar nascer e o enfrentaram como podiam, éramos uma geração que não queria as armas, o confronto, mais sofrimento; queríamos apenas a paz e a liberdade com a certeza das coisas irrecorríveis e inevitáveis, a certeza de que nenhum mal, nenhuma arbitrariedade, nenhuma violência faz sentido, por isso não pode triunfar.
Lembro de deixar as aulas convocado de repente para ocupar o restaurante, uma forma de criar caso muito em uso na época; lembro de ocupar a reitoria, centenas de estudantes sentados no amplo salão de entrada; lembro de estar sentado no chão no extremo daquela massa de gente, separado de um batalhão da Polícia Militar, armado como um exército, apenas por uma porta de vidro; podia olhar nos olhos dos policiais a centímetros de distância, quase sentir seu hálito do outro lado daquela tênue separação dos dois lados.
Infernizámos a reitoria e os dirigentes de toda espécie porque suas medidas atrabiliárias se confundiam com o clima de repressão geral; o Brasil começara desde 1974 a era da distensão dita gradual, mas vivia ainda sob um governo militar, eleito fajutamente num Congresso manipulado. Éramos jovens, queríamos a paz em paz, repito, mas queríamos mudar. E não aceitávamos nada imposto, tínhamos de participar, aquela era a verdadeira abertura, não só política, mas abertura de nós mesmos; descobríamos nossas ideias, nossas vontades, nossos desejos, nossas paixões, nossos ideais, descobríamos o sexo, o corpo e as sensações que davam um sentido literal, ao mesmo tempo amplo e profundo, do que se chama de universidade.
Era o começo do movimento que daria nas multidões que correriam as ruas clamando por eleições diretas, o histórico movimento das Diretas-Já, marco da democracia no Brasil e da história futura do país, fincada na liberdade e numa espírito pacífico, porém determinado, que recolocou o Brasil no seu caminho como Nação e lhe deu um lugar de tolerância, respeito à diversidade, defesa da liberdade e exercício pleno da vida perante todo o planeta.
Hoje pode parecer exagerado dizer isso, mas a grandiloquência fazia parte daqueles dias; éramos jovens, repito, e sonhávamos com dias melhores; víamos os nossos pais sofridos, o país massacrado por uma guerra silenciosa e cotidiana, e queríamos mudanças ao lado deles, com eles e por eles; não esperaríamos outra geração para ver realizados nossos projetos de liberdade, progresso e paz; não queríamos um Brasil melhor para nossos filhos, mas para nós.
Tudo isso estava em jogo naquele congresso de estudantes de comunicação em Florianópolis, uma semana de retiro, numa espécie de república estudatil instalada na universidade federal, cujo campus virou uma cidade-Estado, com leis e vida próprias. Dormíamos no chão, amontodos em salas de aula; namorava-se no meio dos outros, livremente, entre os corpos deitados na penumbra, nos corredores, no gramado; nos debates havia os que se empenhavam em parecer sérios e aqueles que, desdenhando da política, não deixavam de fazê-la; era um tempo de rebeldia, não apenas contra as instituições fraudadas, mas contra tudo, rebeldes contra a própria rebelião.
Ali discutíamos como se tivéssemos o poder de mudar tudo (e hoje vemos que mudamos: no Brasil democrático, que desfruta e crescimento continuado, de uma paz duradoura, de constituição sólida. Mesmo que ainda com graves problemas sociais que somente com muitos anos e educação poderemos ir sanando eu vejo que mudamos.)
Não havia ainda em vista a eleição direta para presidente, nem a Constituição-Cidadão de 1988, que restabeleceu a democracia no Brasil; mas a semente estava lá, no clima acalorado dos debates, mas na maneira da juventude mudar as coisas, com sorrisos no rosto, bandeiras de liberdade, abraços inesquecíveis de amizade e amor, momentos que não se perderam no tempo, porque estão hoje em dia em cada brasileiro que pode ser livre e ter uma vida melhor, ainda que não saiba direito a quem deve tudo isso.
Como um símnbolo de tudo isso, havia a seleção; era uma seleção nova, forte, vibrante, jovem. Era uma reunião de talentos, uma expressão de vitalidade e de arte como não se via desde 1970; era uma seleção de craques, que jogavam um futebol vistoso e que, como nós, tinham por dentro a certeza da invencibilidade. Talvez fosse melhor até que a de 1970; não tinha Pelé, porém tinha mais craques; no meio de campo, reunia-se uma constelação de jogadores que parecia uma seleção de todos os tempos, com Toninho Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico.
Era um time de sonhos que fazia a bola rolar preciosamente, uma equipe de zéfiros, que não conhecia outro resultado senão a goleada, que fazia a torcida vibrar de orgulho e paixão. Era um Brasil novo que surgia, resgatava o que este país tinha de melhor, devolvia o orgulho de ser brasileiro, depois de anos de derrota, que nos havia mantidos distante do sonho então mnuito possível de sermos campeões, de sermos plenos, da mesma forma que o Brasil demorava a se tornar o gigante que surgiria assim que pudesse ser livre outra vez.
E lá fomos nós, a república da juventude, para o salão da universidade, não lembro em que lugar, só do grande salão com um aparelho de TV improvisado em cima de uma mesa, diante dele a multidão de faces cheias de certeza; gente de pé, sentada, de joelhos, abraçada; começou o jogo como todos os outros, aquele time só dava exibições de gala, aquele time goleava, aquele time jogava bonito, aquele time era vencedor.
E a festa prosseguiu, até que, como um raio que cai num dia de azul esplendoroso, a Itália fez dois gols; o jogo terminou e a platéia, assim como o Brasil inteiro, ficou muda; aquilo não podia estar acontecendo, era mentira; como era ilusão o próprio estádio Sarriá, era ilusão toda a Espanha. O destino não podia ceifar a alegria daquela forma, aquela certeza; éramos os melhores, merecíamos a vitória; jogamos melhor, fomos belos, fomos bravos, fomos fortes, e mesmo assim perdemos, em dois lances casuais, numa prova cabal da arbiotrariedade da vida, uma arbitrariedade cruel e acachapante que nos deixou massacrados, como se repente tivesse caído uma laje de concreto sobre nossas cabeças.
Saímos dali atordoados; centenas de estudantes,subitamente abalados em todas as nossas certezas; se naquele momento o entusiasmo da seleção e de todo um país estavam tão juntos, um baque daqueles punha abaixo nosso amor próprio, nosso futuro, a esperança nacional; era um golpe terrível, e não sei o que me fez caminhar para aquele lugar, como caminhamos; aos poucos foram chegando todos, nos reencontramos no lugar menos provável daquele dia: uma campo de futebol.
O campo da universidade de Florianópolis nunca viu um jogo como o daquele dia: vinte e dois jogadores, que corriam chorando, a descarregar a raiva, a tristeza, a angústia; como se pudessem mostrar como se fazia, tornar certo o que dera errado; repor algo, não no campo da batalha perdida de Sarriá para os algozes italianos, mas na nossa própria alma.
Lembro que atirei longe o tênis, queria sentir a terra, queria os pés feridos de bater na bola de couro com todas as forças, queria correr à exaustão, exorcizar aquela tristeza, desabafo convertido em esforço; gastar-me até não ter forças para nada, nem para sentir; vencer a dor da alma pela exaustão.
E me lembro de nunca jogar futebol tão bem na vida, tão bem que poderia ter estado perfeitamente no Sarriá; pegava a bola na defesa para dar início às jogadas, distribuía o jogo no meio de campo, lançava, surgia na área, fiz vários gols. Corria como um guerreiro etíope, flutuando sobre o chão, sem esforço, sem suor, sem cansaço; com cinco graus de miopia, e sem os óculos, via tudo, mesmo sem enxergar nada; despachava lançamentos de longa distância, fazia passes em profundidade, como se dotado de um radar de morcego; fomos assim sem ver o tempo, até que caiu a noite, até que, extenuados, olhamos uns para os outros, não totalmente vingados, não totalmente satisfeitos, não totalmente consolados, herdeiros daquela fúria que ainda posso sentir hoje, moídos, doídos como se tivéssemos também participado daquela batalha, dividindo aquele momentos irmanados.
Não, o Brasil tinha perdido um jogo, mas não saíra derrotado; a beleza daquele dia seria lembrada para sempre, a derrota só aumentava aquela chama, porque sabíamos que não podíamos jogar fora aquela força plena, ela ainda triunfaria, ainda nos levaria um dia à realização dos grandes sonhos, só não podíamos desistir, sim, só tínhamos de continuar.