domingo, 18 de abril de 2010

A pobreza, a riqueza e a arte


O escritor Francis Scott Key Fitzgerald, um dos membros da tríade dos grandes romancistas da literatura americana, ao lado de Henry James e Herman Melville, costumava dizer que, sem a sua obsessão pela riqueza e a vida dos ricos, teria escrito uma obra completamente diferente.

Com seus três principais romances (O Grande Gastby, Suave é a Noite e O Amor do Último Magnata), Fitzgerald foi o autor que melhor captou a aura da riqueza e o seu efeito sobre a alma humana. Sua obra mais famosa, O Grande Gatsby, é considerada pelos críticos o romance central da literatura dos Estados Unidos, pela maneira como retrata o Sonho Americano, seu endeusamento e suas vicissitudes.

Em Suave é a Noite, obra marcante da Geração Perdida, mostra a vida perfeita dos ricos na era próspera dos anos 1920, crônica de uma época em que a América decolava num binômio de prosperidade e hipocrisia que se tornou novamente muito atual.

“Scott Fitzgerald foi ao mesmo tempo o grande celebrante e o satirista do sonho que virou pesadelo”, define o crítico literário Harold Bloom, no ensaio “Gênio”, sobre os maiores mestres do mundo das idéias em todos o os tempos.

O cenário de O Grande Gatsby é a América da Lei Seca, na qual um garoto pobre das ruas de Nova York chegava ao Sonho Americano pela via do crime organizado. A apresentação da máfia como um negócio qualquer, confundindo um bandido a um grande homem de negócios, é típica do estilo de Fitzgerald, no qual o brilho e a euforia da riqueza contém também os genes do seu trágico fim.

No romance, ele se dá com a morte do protagonista, Jay Gatsby, assim como na História a derrocada veio com o crack de 1929, que levou à bancarrota não somente os milionários da época como seu estilo de vida e a ilusão um tanto hipócrita de toda uma era.

Tudo isso parece familiar? Por trás da fuga do volátil capital globalizado e dos homens-bomba enviados vingativamente pelo mundo marginalizado dessa riqueza, há um cheiro permanente de que o paraíso dos ricos americanos está ameaçado. “Hoje em dia, no início do Século XXI, não está claro o que opera o sonho americano como mito estruturante”, escreve Harold Blom. “Na Era de Ouro de George W. Bush e seus Barões do Roubo, haveremos de dizer: expandir ou explodir?”

Em vida, Fitzgerald vendeu apenas 25 000 cópias de O Grande Gastby e, a despeito de ter se casado com uma mulher de família rica, conheceu tanto o lado looser (“perdedor”) quanto o winner (“vencedor”) no qual o Sonho Americano dividiu seus cidadãos - e, por extensão, a Humanidade. A linha demarcatória do dinheiro, que para o padrão americano estabelece se uma existência pode valer ou não a pena, é o denso e ao mesmo tempo sutil material de trabalho do escritor, que constrói seu ponto de vista pelos detalhes aparentemente mais prosaicos.

Como na cena em que Gastby mostra ao narrador, Nick Carraway, sua coleção de ternos, trajes a rigor, gravatas e camisas acondicionadas meticulosamente em pilhas de 12 unidades. Eram compradas para ele na Inglaterra, depois de uma rigorosa seleção entre as novidades da estação:
“Tomou uma pilha de camisas e se pôs a exibi-las, uam a uma, puro linho, seda ou flanela, que, ao caírem sobre a mesa, em uma desarrumação colorida, perdiam os vincos das dobras... De súbito, emitindo um ruído de dor, Daisy curvou-se sobre as camisas e pôs-se a chorar, convulsivamente. “Que camisas lindas!, ela soluçava, a voz abafada pelos tecidos. “Fico triste porque jamais vi tantas... tantas camisas tão lindas assim.”

Essa fina construção é também o esteio de Suave é a Noite, publicado por Fitzgerald em 1935. Nele, a frivolidade de uma vida perfeita apenas na aparência é desvelada de maneira tão mais chocante quanto sutil.

A história de Dick Diver, um jovem e brilhante psiquiatra que interrompe sua carreira para casar-se com Nicole Warren, uma herdeira bela, rica e mentalmente perturbada, é vista pelos olhos de uma aspirante a estrela de Hollywood. Esta conhece Dick e Nicole em uma temporada na Riviera Francesa, onde se apaixona não só pelo protagonista como pela imagem de perfeição produzida pelo casal. Para sua surpresa, ela os reencontrará anos mais tarde. Nicole, recuperada, continua a levar a sua vida de distanciamento da realidade, como se o tempo não tivesse passado.


Descartado depois de cumprida a sua finalidade, Dick torna-se um médico obscuro no interior do Estados Unidos, fadado a lutar no fim da vida contra dificuldades materiais e o vazio de, depois de ter entrado naquele círculo de sonhos, ser enviado de volta ao que socialmente determinou-se ser o seu lugar.

Em sua própria biografia, Fitzgerald lutou para firmar-se nesse mundo mais aristocrático que ele acreditava sempre rejeitar corpos estranhos. Nascido em 1896 em Saint Paul, Minnesota, ele descendia de uma família católica irlandesa, o que significa estar no centro da mentalidade que se tornou a base do comportamento e da sociedade americana. Estudou na Universidade de Princeton e se alistou na primeira guerra mundial, sem no entanto chegar a combater. Numa época em que os escritores podiam ganhar tanto dinheiro quanto hoje o fazem autores de novelas na TV, arriscou-se na atividade literária.

Em 1920, publicou Este Lado do Paraíso, romance que lhe deu grande popularidade e lhe abriu espaço em publicações de prestígio, como a Scribner's e o The Saturday Evening Post. Seu segundo romance, Os Belos e Malditos, foi publicado em 1922.

O sucesso financeiro foi suficiente para aproximá-lo de Zelda Sayre, sua futura mulher, que já o havia rejeitado em tempos de vacas magras. Filha de família rica, Zelda seria um componente importante e trágico na vida de Fitzgerald. Dividia com ele o gosto pelas coisas boas e as viagens que os levaram a temporadas na Europa e à companhia de milionários como Gerald e Sarah Murphy, americanos que recebiam os amigos artistas em sua casa de veraneio na Riviera Francesa.

Emocional e psicologicamente instável, Zelda deixava fundadas suspeitas de trair o marido e causava escândalo com suas bebedeiras e um comportamento inconsequente. A partir de 1930, seria internada sucessivas vezes em sanatórios para tratamento psiquiátrico, rendendo a Fitzgerald farto material para Suave É a Noite.

Mais tarde, Zelda escreveria um livro de memórias acusando o marido de tê-la plagiado, entre outras declarações que somente podem ser explicadas como produto dos sanatórios onde ela fazia terapia ocupacional.

Com a saúde já abalada pelo alcoolismo, Fitzgerald mudou-se para Hollywood, onde trabalhou como roteirista cinematográfico, último refúgio para ganhar algum dinheiro. Em 1939 começou a escrever seu último romance, The Last Tycoon (O Último Magnata), publicado postumamente em 1941. A obra era sua última tentativa de retratar a personalidade de um grande artífice do "sonho americano", inspirada em um grande produtor hollywoodiano.

Nesse livro incompleto, o escritor americano John Dos Passos veria a libertação de Fitzgerald de sua obesssão pelos ricos. “pela primeira vez, ele escreveu sobre eles como se fala de um outro ser humano, numa relação entre iguais”, disse Dos Passos, num artigo sobre a morte do amigo. Sim, Fitzgerald estava enfim livre, mas, como nos mais trágicos romances, não de maneira que pudesse aproveitar, pois deixaria o livro incompleto. Morreu aos 44 anos, fulminado por um ataque cardíaco que terminou de liquidar seus corpo já devastado pelo alcoolismo.

Por suas idéias e estilo, Fitzgerald ajudou a criar a aura da Geração Perdida, um grupo de romancistas que precedeu o existencialismo na sua técnica e propósitos. Outro expoente desse grupo, Ernest Hemingway, seguiu na esteira da obra de Fitzgerald em romances como O Sol Também se Levanta, no qual a sensação de inutilidade e crueza da vida passa pela narrativa da viagem de um homem impotente pela Espanha das touradas e de uma amante inalcançável.

O homem castigado pela sua própria natureza, ou o que o destino lhe reservou, são o traço comum no estilo do Hemingway de seus primeiros anos e Fitzgerald, a quem o amigo descreveu no memorialístico Uma Festa Móvel como um ser já decadente e apodrecido pela bebida – tudo verdade, mas resultado de uma ponta de inveja por uma literatura superior. Impotente como seu alter ego de O Sol Também se Levanta, o livro no qual procurou mais aproximar seu estilo ao de Fitzgerald, Hemingway não terminaria a vida melhor que o antigo colega. Alcoólatra e deprimido, matou-se com um tiro de sua espingarda de caça.

O valor da obra literária de Fitzgerald perdura, mesmo que tenha passado por altos e baixos tão grandes quanto os de sua vida. Adaptado para o cinema e a Broadway, O Grande Gatsby mergulhou no esquecimento no longo período da depressão e só ganhou fama ao ser republicado depois da Segunda Guerra mundial, quando foi aclamado como a obra prima da literatura americana.

Está de volta às prateleiras nos Estados Unidos como um alerta muito presente dos perigos da prosperidade, agora que ela não parece ter freios senão ela mesma. Assim como o personagem-título de O Grande Gatsby, há nos Estados Unidos de hoje aquele mesmo materialismo que ameaça corroer a alma humana. 

É essa condenação ética que faz se voltar contra o país o olhar indignado do mundo, cansado da resposta aos problemas sociais dos marginalizados com a política do “big stick” – a expressão cunhada por Franklin Roosevelt para esclarecer que aos americanos estão sempre dispostos a usar a diplomacia da paulada. 

Na obra de Fitzgerald, como na vida, a abundância carrega em si mesma uma certa arrogância visível para todos – exceto, evidentemente, para quem a encarna.

sábado, 27 de março de 2010

Poeta selvagem

Poeta selvagem
Da ilha interior
Criado na margem
Do riso e da dor

Poeta da liberdade
Nunca cercada
De mar nem cidade
O tudo do nada

Poeta selvagem
Na ilha do sol
Infinita viagem
De ser como sou

sábado, 20 de março de 2010

Mentira, indignação


O jeito mais certo de se perder a razão

“Ninguém mente tanto quanto o indignado”, escreveu o filósofo Friedrich Nietzche em uma de suas mais importantes e menos lidas obras: Além de Bem e do Mal. Como se sabe, Nietzche era um retórico, um polemista, um filósofo dedicado a negar o conhecimento, a destruir a própria filosofia. Era um provocador. Com sua provocação, procurava abrir horizontes, destruir barreiras imaginárias, fazer pensar. E, se pensarmos bem, ele tinha razão. Por isso, estou prestes a abandonar a indignação.


O pressuposto do indignado é que ele está com a razão. A mentira, a injustiça, o atropelamento do óbvio, o desvirtuamento das coisas naturais – estas são as fontes primárias da indignação. Para Nietzche, porém, não existia a verdade absoluta, nem justiça, nem o óbvio, ou o natural. Havia apenas a verdade de cada um, assim como a filosofia não era uma ciência, mas um ponto de vista individual, que expressava o pensamento do autor, e tanto melhor ficava quanto mais se aproximava da literatura, isto é, de uma expressão artística.

Que sentido há na indignação quando não há verdade absoluta, mas a verdade de cada um? Indignar-se, dessa forma, é defender um ponto de vista como verdade absoluta, uma forma de mentir.


Penso nisso, não somente por perceber a inutilidade da busca pela verdade, como também por uma questão de atitude. Há na indignação uma certa superioridade, uma rispidez, um moralismo que faz com que percamos a razão, mesmo quando a temos. A atitude de quem se indigna é a de um falso juiz. Nos revoltamos, mas a causa é semrpe mais emocional que objetiva. Porque, no fundo, tudo se explica, mas não há razão.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Diálogo com as pedras

Eu me lembro de tentar conversar com meus pais quando era adolescente e da sensação de não ser ouvido. Era o início da década de 1980 e, embora um pouco mais avançados que meus avós, eles pareciam não entender nada do que eu dizia. Essa é a essência da adolescência: a gente tenta se expressar, ser compreendido, e as palavras parecem inúteis. O velho não aceita ou compreende o novo. Nós pudemos ajudar a fazer ouvir a voz do povo que fez a democracia no Brasil, mas em casa a voz do jovem não valia grandes coisas.

Hoje eu tenho em casa um rapazinho de 14 anos; por conta dessa minha experiência, pergunto sempre o que acontece, tento estabelecer o diálogo que me parecia tão importante. O que pensa disso e daquilo? E namorada? E sexo? E ele... Não diz nada. Fica mudo, desconversa. Dentro de casa, passa a maior parte do tempo diante do computador. Ou no quarto, com a porta fechada.

Descobri que a barreira entre pais e filhos continua a mesma. Dessa vez, porém, para minha surpresa, não são os pais que não querem ouvir. São os filhos que não querem falar. Troquei de posição, mas continuo no meu diálogo com as pedras.

Consulto os amigos. A coisa não é só comigo. Nunca os adultos tiveram tanto interesse em entender os filhos adolescentes. Nunca foram tão flexíveis. Hoje há poucas proibições. Se quiserem, os adolescentes vêm namorar dentro de casa. O que no meu tempo de adolescência era algo impensável, hoje é até preferido pelos pais. Acham melhor que pensar nos filhos arriscando o pescoço por aí nesse mundo violento. Mas o interesse dos outros pais cai também no vazio. Eles obtém de seus filhos adolescentes tantas respostas para as suas perguntas quanto eu.

Percebo que há toda uma geração de adolescentes que, mesmo tendo pais abertos ao diálogo, não querem saber de falar. Continua aquele buraco negro que surge entre pais e filhos nessa fase da vida de ambos. O antigo conflito de gerações transformou-se em vácuo.

Como fui adolescente que queria falar sem ser ouvido, e hoje sou padrasto que quer falar e não sou escutado, tenho a sensação de que a minha geração é uma vítima rara das mudanças psicossociais. Pois as palavras, que eram inúteis, continuam inúteis. Aqueles que não foram ouvidos pelos áis, continuam a não ser ouvidos pelos filhos. Isso me leva a acreditar, com meu espírito radicalizador, que realmente não existe nem jamais existirá uma conexão verdadeira entre pais e filhos nessa fase tão importante da vida de ambos.

Acho que dá para entender os adolescentes hoje. Eles nunca foram tão controlados. Têm de andar de celular e assim sabemos onde estão, o tempo todo. Por medo de assalto ou coisa pior, eles não têm independência alguma. São levados de carro para o judô, o balé, o piano, a natação. Tudo o que fazem é pago. Nunca são simplesmente esquecidos ou deixados a andar pela rua.

Resultado, eles passaram a defender sua privacidade. Construíram um mundo no qual não podemos penetrar. Não gostam de contar com quem andam, o que conversam com os amigos, nem mesmo o que pensam. A internet e especialmente os bate-papos eletrônicos viraram uma área particular à qual o pai e a mãe não podem ter acesso. É a maneira que encontraram na vida contemporânea de ganhar identidade, liberdade e independência. Ao se esconder, eles tentam se afirmar.

Para qualquer pai, claro, é preocupante. Como um meio fácil de alienação, a internet tende a ocupar o tempo todo dos filhos. Eles caminham cada vez mais para a reclusão e o individualismo. Proibi-los de ter seu espaço, porém, é também tolher seu último refúgio. Trata-se de um dilema novo, assim como eram novos para nossos pais os dilemas que lhes impusemos.

A adolescência é uma idade que implica certos riscos, isso não mudou. Eles acabaram de ser crianças, acham-se adultos e não têm experiência. Os adolescentes de hoje tem muita informação e, por não ter liberdade, tem também pouca vivência e responsabilidade. Conversar seria importante. Se não há conversa, o que fazer?A resposta, creio, é nada. É preciso deixar que eles encontrem seu próprio espaço e voltem a sentir necessidade de se aproximar dos pais. É preciso vigiá-los e ajudá-los, mas respeitar a distância que impõem. Cada geração adquire afirmação para a vida adulta de uma forma. Essa é a deles, muito influenciada pela evolução tecnológica, que estimula a reculsão e o individualismo.

Que fazer? Parei de desperdiçar as palavras inúteis. Recolhi as pontes que vivi lançando para os outros a vida inteira. E espero o dia em que as palavras, e mais que as palavras, a busca pelo entendimento, a compreensão e o amor, voltem a ter valia. E me saíram estes versinhos, se é que chegam a ser versinhos:

Dialogar com as pedras
É tarefa de uma vida inteira
E do sussurro ao grito
Ouço de volta somente o eco

domingo, 10 de janeiro de 2010

O caminho certo

A volta do prazer da leitura para muita gente

Nos últimos tempos, voltei a ler livros em série, por conta do trabalho – recentemente, assumi a direção editorial da Editora Saraiva para fazer livros de ficção e não-ficção. Não me dava conta de quanta falta estava sentindo de ler; recuperei assim um prazer de menino.

Não deixei de ler bastante por falta de tempo ou de interesse. Quando enconram em um livro uma ideia que os interessa, muitos escritores param a leitura, compelidos a escrever. Quando algo me desperta, passo imediatamente para o papel. Depois de certo tempo, o que temos a escrever passa a ser mais importante do que aquilo que queremos ler, exceto quando isso traz informação ou contribui de alguma forma para o texto. Então o autor acaba sempre ocupando o tempo do leitor.
Agora que o editor se impõe, o leitor volta a tirar o tempo do autor. Tenho de criar produtos e ler, não como diversão, mas com os olhos do avaliador de mercado.

É enorme o número de livros que eu gostaria de ler por interesse prático ou puro prazer. Muitos deles passaram para o final da fila; agora, a prioridade são aqueles que devo ler, por razões profissionais. Fico feliz, no entanto, de saber que o Brasil está no bom caminho. Sabemos que o desenvolvimento de um país depende da educação, e a educação depende da formação de leitores. E nossos leitores estão aumentando em número e qualificação.

Um sinal disso é que já não são tão raros os livros que alcançam números expressivos de vendas. Há livros que chegam aos 500 mil exemplares vendidos. No mercado de livros para adolescentes, em que estão títulos da série crepúsculo e Harry Potter, as cifras superam a casa do milhão. É gente cujo interesse pela leitura certamente não se perderá.

Pouca gente sabe, mas o Brasil tem um dos maiores, se não o maior programa de distribuição gratuita de livros do mundo. Todos os anos, o governo compra e distribui cerca de 130 milhões de livros didáticos e paradidáticos. Com isso, acaba aumentando o número de pessoas que tem acesso ao livro pela base, ainda que o ensino de massa somente aos poucos venha ganhando qualidade.

Quem começou esse programa maciço de distribuição de livros foi José Sarney, quando ocupou a presidência; no meio de tantas barbaridades por ele cometidas, o presidente que é também imortal da academia acabou pouco reconhecido pela melhor coisa que talvez tenha feito - o seu Bolsa Família na área educacional.

A leitura aumenta também porque nunca tivemos tantos alunos de segundo grau e de nível universitário. As escolas são fracas, dizem os especialistas, mas é assim que se começa. Quando há mais oportunidade de estudar, o topo de pirâmide acaba também por aumentar com o crescimento da base. E, com o tempo, a qualidade vai crescendo, depois do salto inicial da quantidade.

Para completar, creio que a internet, em vez de destruir o livro, só vem a ajudá-lo. Democratiza, barateia e estimula o acesso à informação e à cultura. Nunca se leu e escreveu tanto quanto hoje, graças à internet. O preço de todo produto virtual será mais baixo e com certeza provocará muitas transformações no mercado editorial. Mas ao final disso a escala de vendas será como nunca jamais se viu.

A Câmara Brasileira do Livro estima que o brasileiro compre, em média, 1 livro por ano. Nos Estados Unidos, são nove. Creio que essa é a distância que nos separa do primeiro mundo. No entanto, significa que há um grande espaço para crescer. Quando se fala tanto em desaparecimento do livro por conta do meio digital, acredito que no Brasil seu futuro está apenas começando.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Infeliz ano novo


Razões para comemorar no meio das tragédias

Feliz ano novo, dizem todos nesta época do ano. E no noticiário vemos somente a tragédia: a chuva que faz descer os morros que levam as casas que soterram as pessoas. Fim de ano, revisão de vida: agradecemos os que estamos vivos, pensamos nas perdas, tentamos olhar adiante. Acima de tudo, procuramos não perder a alegria.

Vejo as fotos das pessoas que tentam ajudar em meio ao caos: os bombeiros, os vizinhos, os anônimos e desconhecidos que surgem de toda parte, solidários na tragédia, irmanados no desastre. Um homem que leva o corpo de uma menina morta na enchente. A pousada no paraíso que virou inferno. As chuvas mataram mais que o acidente célebre com o Bateau Mouche no Rio de Janeiro, outro acidente que fez um reveillon se tornar inesquecível, é o que dizem as estatísticas.

Por quê o período de festas parece ser cada vez mais trágico? O mundo contemporâneo é superlativo em tudo. Milhões de pessoas se deslocam para se divertir. Quando milhões se deslocam, as estatísticas crescem em grande proporção para todos os lados – acidentes de todo tipo, congestionamentos, confusão.

O crescimento das cidades e o consumo dos recursos naturais também vem provocando as forças fenomenais da natureza. A civilização ocidental vem roubando o equilíbrio da Terra, que devolve (ou se vinga) na mesma medida. O planeta aquecido pela ação predatória do ser humano é um planeta de chuva: o sol tórrido logo é encoberto pelas nuvens que procuram repôr a vida com a água. O homem mata a natureza e a natureza em contragolpe mata o homem com violência descomunal.

Quando eu era criança, chegar em 2000 – Século XXI – era coisa de ficção científica. Encerramos a primeira década deste século cabalístico para ver que o mundo não mudou tanto assim, embora tudo seja em maior escala. O homem continua tentando dominar a natureza, inutilmente. A intolerância e a selvageria sem limites ainda desafiam os iluministas que procuram trazer a harmonia à sociedade. Por isso, o tema mais importante deste século não é a tecnologia, mas o equilíbrio ecológico e o desenvolvimento sustentável.


Ainda tentamos nos alegrar com nossas pequenas vitórias e o fato de ainda estarmos vivos, enquanto a tragédia, a pobreza e a inconsequência coletiva ainda ameaçam a paz. Comemoramos porque no mundo imperfeito ainda podemos nos agarrar à esperança trazida por qualquer amor – e qualquer flor, qualquer saúde, qualquer felicidade ganham importância como nunca.

sábado, 26 de dezembro de 2009

A história por trás da história


No final do Século 19, a Europa vinha de um período de guerras e grande pobreza, especialmente a Itália. Antes um país dividido, recém-reunido em uma campanha militar liderada pelo rei da Lombardia e do Piemonte, Vitor Emanuel II, havia pouco emprego, sobretudo no campo. No final dos anos 1800, começou a migração de mutios italianos para os países do Novo Mundo, que ofereciam oportunidades distantes, como os Estados Unidos e o Brasil.


Entre 1880 e 1930, vieram para o Brasil cerca de 1,4 milhão de italianos, de acordo com um levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE. Trazidos por navios a vapor, desembarcaram principalmente no Rio Grande do Sul, onde foram trabalhar como artesãos ou camponeses na serra gaúcha, e em São Paulo. No interior paulista, que precisava de mão de obra com o fim do trabalho escravo, eles eram contratados como colonos, trabalhadores assalariados.


Além de seus rendimentos, aos colonos era permitido também plantar para seu próprio sustento entre os pés de café nas terras do patrão. Com isso, os imigrantes italianos, bem como os portugueses e espanhóis, tinham uma renda adicional. Eles moravam em “colônias”, conjuntos de casas construídas especialmente para abrigá-los, e que acabavam por aproximar as famílias, incluindo pelos laços de casamento.

A união das famílias de mesma nacionalidade permitiu que os imigrantes juntassem recursos para mais tarde comprar suas próprias fazendas em sistema de consórcio e depois novas propriedades para cada uma das famílias. Muitos deles enriqueceram no início do Século 20 com as plantações de café, então o principal produto de exportação do Brasil, enviado ao exterior por meio do porto de Santos.

Nessa época, a cidade de São Paulo passou a brilhar com os casarões dos fazendeiros de café, que tornaram famosa a Avenida Paulista, onde se construíam casas com telhas importadas da França, mármore de Carrara e madeira de lei brasileira. Os primeiros italianos a se aventurar na indústria fizeram fortuna, como o Conde Francisco Matarazzo (1854-1937), que a partir da venda de barris de banha de porco construiu o maior império industrial do país (as Indústrias Reunidas Matarazzo). O nome Matarazzo, desde então, se tornou um símbolo de riqueza, especialmente em São Paulo.

No interior de São Paulo, os colonos italianos não encontraram uma vida fácil. Seu trabalho era desmatar o sertão, para permitir o plantio do café, uma cultura favorecida pelo clima e a célebre “terra roxa”. Esse nome é também uma influência italiana, pois terra roxa não existe. Trata-se de uma terra muito rica em nutrientes, de cor vermelha (ou “rossa”, em italiano).

No sertão paulista, além das dificuldades naturais do trabalho e de um país diverso de sua terra natal, os italianos enfrentavam o preconceito dos brasileiros, que os consideravam uma gente bronca, mal educada e temperamental. Em sua maior parte contadinos, como eram chamados na Itália os trabalhadores da terra, eles tinham pouca instrução, mas muita vontade de trabalho. E, aos poucos, começaram a se impôr e influenciar também a cultura do país com sua comida, sua língua e seus costumes.

Com a crise mundial de 1929, quando as exportações de café praticamente foram paralisadas, muitos italianos que possuíam fazendas ficaram com pesadas dívidas e voltaram à pobreza. Muitos deles migraram para o norte do Paraná, onde ainda havia terras virgens e baratas a serem exploradas. Outros deixaram o campo e migraram para São Paulo, instalando-se em bairros como o Brás, Móoca e Bela Vista, que tiveram uma forte influência da cultura italiana.


Eram os bairros das cantinas e das cadeiras na calçada, onde se jogava baralho e bingo aos domingos, e de festas como a da Nossa Senhora Achiropita, promovida pela igreja do mesmo nome, que existe ainda na rua Treze de Maio, na capital paulista, realizada uma vez por ano.
Hoje, a influência da migração italiana ainda está muito presente na vida cultural e econômica do Brasil. O consulado italiano em São Paulo estima que existam hoje cerca de 25 milhões de descendentes de italianos no Brasil, o que seria cerca de um sexto da nossa população.


Os italianos participaram ativamente do primeiro grande ciclo de crescimento do país, agrícola e exportador, na era do café. Fizeram parte também da primeira fase de industrialização do Brasil, no papel dos primeiros grandes empreendedores de origem popular, como o Conde Matarazzo, ou como formadores do operariado brasileiro.

Deixaram sua marca no urbanismo, não apenas nos casarões neo-clássicos da Avenida Paulista como nos bairros operários. Sua identidade ficou na religião, de predominância católica, assim como entre descendentes de portugueses e espanhóis, e na culinária. A influência italiana é forte sobretudo no gosto do brasileiro pelas massas.


Em São Paulo, a pizza foi incorporada como um prato “local”. No Rio Grande do Sul, a influência italiana na culinária pode ser vista também nos cafés coloniais, onde se pode desfrutar de uma mesa farta; nas galeterias, onde o frango é servido com polenta e uma massa fina, conhecida como “cabelo de anjo”; e no vinho, que por influência italiana, e com o auxílio de um clima mais favorável, passou a ser produzido na serra gaúcha.


Essa influência se estende até ao futebol, onde ainda há clubes cuja tradição se liga ao passado do imigrante italiano, como o Palmeiras, de São Paulo, antigo “Palestra Italia”, que mudou de nome por causa de Segunda Guerra Mundial, quando os italianos passaram a ser hostilizados por estarem ao lado dos alemães no conflito. E o Cruzeiro, em Belo Horizonte, cuja fundação também se liga à tradição da colônia italiana.


É possível dizer que, assim com a mão de obra escrava fez do Brasil um país racialmente miscinegado, com grande presença dos descendentes do negro e sob forte influência das culturas africanas, o país seria outro sem os imigrantes italianos. No Brasil, a Itália hoje se encontra em toda parte, o que ajuda a fazer do nosso país um pedaço do mundo onde a diversidade melhor encontrou uma forma de convivência pacífica: não uma fonte de discórdia, mas de enriquecimento da vida.