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terça-feira, 14 de outubro de 2014

O jornalismo à beira de um ataque de nervos



A demissão do jornalista Chico Sá da Folha de S. Paulo, que o teria proibido de escrever uma coluna apoiando a candidatura da presidente Dilma Rousseff, é um bom exemplo de um certo desvairio em que se encontra o mundo da comunicação na era digital. E não é o único.

Sá, que foi meu contemporâneo na revista Veja, num tempo em que ela era o mais prestigiado veículo nacional de imprensa, junto com o jornalismo da TV Globo, é um amigo, um homem correto e, acima de tudo, um sujeito divertido e agradável. Porém, parece que esqueceu, talvez atordoado pelos novos tempos, de velhas e conhecidas regras, consagradas entre os profissionais de imprensa: a busca da notícia, a isenção e o apartidarismo.

O mesmo tendencismo saiu como uma nota estridente na carreira da jornalista Laura Capriglione, também ex-colega minha em Veja, ex-repórter da Folha de S. Paulo, que em uma coluna anunciou o funeral de Marina Silva, por sua decisão de apoiar Aécio Neves no segundo turno. Como se Marina não tivesse o direito de escolher, bem como seus eleitores. Repórter sempre correta, brilhante apuradora, Laura até pode desvencilhar-se das regras do jornalismo, já que não está abrigada por um veículo de imprensa tradicional, e do princípio elementar de respeito à liberdade alheia. Porém, como profissional, perde o capital mais precioso do jornalista: a credibilidade.

Existem princípios que, mesmo com a mudança do papel impresso para o virtual, continuam válidos como esteio da profissão. Um profissional de imprensa não pode professar uma preferência política, assim como um cronista esportivo não deveria colocar à vista sua preferência por algum clube. Um jornalista se manifesta politicamente por meio do voto, que é secreto, como um cidadão qualquer.

A era da internet tem sufocado o bom jornalismo, e, pior, os bons jornalistas, que vêm confundindo seu dever de bem informar com o mar de opiniões erráticas e tendenciosas sobre tudo, que se dá com a possibilidade da “autopublicação” no mundo virtual. Hoje há na web tantos donos da verdade que se torna mais claro do que nunca o fato de que não há verdade, há somente versões sobre tudo. Especialmente quando até os profissionais de comunicação deixam de respeitar princípios elementares e a ética da profissão, talvez contaminados ou em competição com o comportamento geral.

Os veículos de imprensa se encontram em profunda crise, derivada da falência do antigo sistema de propagação. Antes detentores dos meios de produção, agora os jornais disputam espaço com qualquer um. Hoje, é possível acessar tanto um jornal que antes tinha grande circulação quanto o blog de um desconhecido, já que são ambos apenas uma página na internet, capturáveis na pesquisa randômica dos mecanismos de busca. Porém, não são ou não podem ser coisas iguais. O jornalismo se enfraquece ainda mais ao perder aquele que na realidade é seu bem mais precioso: a credibilidade, construída com a excelência e a postura de seus profissionais.

As redações de jornais e revistas diminuíram e hoje resta ali praticamente apenas o volume morto da imprensa. Boa parte dos bons profissionais saiu, sobretudo pelo fato de que os melhores em geral ganhavam também os maiores salários. A crise da imprensa ainda não terminou. Ela ainda não é capaz de se sustentar apenas com assinaturas pelo meio digital. E, enquanto não se sustentar por meio exclusivamente de seus leitores, a imprensa não é livre. E, se não é livre, igualmente tem dificuldade de se manter isenta. Quem a fortalece é o leitor. E o leitor tem preferido atirar na imprensa, em vez de contribuir.

Nos últimos tempos, multiplicaram-se em corrente aqueles que resolveram transformar os veículos de imprensa em saco de pancada. São os mesmos que agora glorificam o pedido de demissão de Xico, como um herói picaresco, porém sem entender bem o que está acontecendo. Veículos tradicionais, como a própria Veja, são abalroados cotidianamente por campanhas raivosas movidas com ajuda das redes virtuais.

Por mais erros que um veículo de imprensa possa cometer, incluindo dar espaço também para blogueiros tendenciosos, as pessoas parecem ter se esquecido de que foi em grande parte a essa instituição agora desprezada que se pode hoje desfrutar de tamanha liberdade. E que, se os meios de produção foram renovados, os princípios do jornalismo, cujo objetivo é oferecer informação isenta e de qualidade, no limite das possibilidades, ainda não são praticados em outro lugar.

A internet parece ser não o lugar da informação bem apurada, equilibrada e isenta, que ouve sempre o outro lado, e sim um espaço em que quer ganhar aquele que simplesmente grita mais. Para obter esse efeito tornou-se normal ofender e propagar mentiras, falsificações e ameaças. A ideia de que no futuro o ambiente da informação será apenas um cruzamento de opiniões, versões e interesses em disputa, um vale tudo da comunicação, sugere o fim do jornalismo. Mas não será, porque a resultante desse embate de opiniões é zero. Dele, nada sai de construtivo.

A eleição presidencial é um bom exemplo dessa algaravia em que todos são donos da verdade e se julgam no direito de constranger quem tem opiniões politicamente diversas. Ninguém muda realmente de opinião, mas sob a bandeira da liberdade proporcionada pelo meio digital instalou-se um patrulhamento jamais visto, superior ao da própria ditadura militar. Os patrulheiros querem ser os donos das receitas que salvarão o mundo, mas são, eles próprios, o mal maior.

A condenação pública da moça que xingou o goleiro na TV, e teve sua casa queimada, num processo de radicalização jamais visto, que beira a histeria coletiva, lembra que os jornalistas não podem se juntar à massa. Devem continuar cumprindo seu papel de apurar a notícia e informar de forma isenta. Se não existe a verdade, essa é a melhor forma de pelo menos nos aproximarmos dela. Os patrões da imprensa continuam no seu papel, e os conflitos entre jornalistas e os pontos de vista das empresas em que trabalham não são novidade. No final, acabaram sendo sempre salutares para a criação de uma imprensa melhor. O que não se pode é jogar fora o que une ambos: a defesa, acima de tudo, do interesse do leitor, o interesse público, que para o jornalista deve estar acima dos interesses, opiniões e mesmo convicções individuais.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

A lição de Eva: uma releitura do papel na mãe da Humanidade e das mulheres a partir da Bíblia

Ela sempre foi vista como um mero subproduto de Adão e a pecadora que levou o homem à perdição. Agora, a mitológica mãe da Humanidade é revista como uma mulher capaz de assumir riscos, que defende o direito ao conhecimento e é a primeira entre as mulheres da Bíblia a desafiar, em nome da liberdade, a autoridade ? não só a masculina como a do próprio Deus.


Por muito tempo, a imagem de Eva foi associada ao pecado, fundamento de antigas tradições na qual as mulheres, ao mesmo tempo em que são o esteio da família, foram também o seu fator de desestabilização ? a marca da tentação, simbolizada pelo seu papel no pecado original. Eva é quem leva o inocente Adão a comer o Fruto Proibido. Funda uma existência de busca pelo conhecimento e o prazer que nem a pena ? perder o direito à imortalidade ? é capaz de desestimular. Traz a dor e condena a Humanidade movida pelo mais fútil dos motivos: a curiosidade. Inaugurava a galeria de mulheres bíblicas vistas como rebeldes, subversivas e pecadoras.

Vivendo num ambiente patriarcal, onde o poder masculino era absoluto e ao qual não havia outra saída exceto a submissão, elas tinham liberdade somente quando desafiavam o poder masculino por artes há muito associadas ao ?sexo frágil?: a sedução e a dissimulação.

Bem, tudo isto está mudando. Novos estudos da Bíblia têm feito uma uma leitura mais contemporânea do mito fundador da sociedade ocidental e da sua protagonista, tão polêmica quanto fundamental no nosso imaginário. Segundo essa revisão, a mãe literalmente de toda a civilização é de fato a personagem quem lança a pedra fundamental da Humanidade, por seu desejo de adquirir conhecimento, renunciando ao paraíso e à promessa de imortalidade em defesa de sua auto-determinação e pela capacidade de, também como Deus, poder dar a vida.

A antiga pecadora agora surge como a uma mulher modelar, capaz de desafiar as convenções, assumir riscos e escolher a busca da sabedoria e de uma vida de intimidade plena com seu homem - matriz de uma tradição monogâmica que perdura na sociedade ocidental até os dias de hoje. agora é o elemento de tangência que induz o homem a buscar a sabedoria, não apenas pelo conhecimento do sexo, mas num sentido mais amplo. E que inspira o casal a ter coragem de lutar pelo seu próprio destino, mesmo contra os desígnios divinos.

?Eva é uma mulher que assume riscos, em seu nome e do companheiro?, diz a psicanalista Naomi Rosenblatt, autora de After the Apple: Women in the Bible: Timeless Stories of Love, Lust, and Longing.

Os escolásticos hoje apontam que tal visão se deve a antigos preconceitos e atribuem a associação entre a mulher e o mal ou o pecado na Bíblia muito mais à interpretações baseadas em pontos de vista arcaicos, difundidos por igrejas ou pela transmissão do conhecimento popular, que propriamente pelo texto original. Na Bíblia, de fato, com raras exceções as mulheres recebem algum castigo. A maioria revolta-se contra algum tipo de opressão e a autoridade masculina, quando ela é injusta ou insuficiente para preservar a família. Ao contrário, muitas vezes elas são recompensadas. Agora, o que se destaca são outros aspectos também contidos no texto bíblico. Em boa parte, eles são ressaltados pelo fato de que hoje há muitas mulheres estudiosas dos textos bíblicos, que chamam a atenção para aspectos bem mais complexos dos personagens femininos.

Por essa leitura, as mulheres da Bíblia já se pareciam em muito com as mulheres contemporâneas, assim como os relacionamentos têm muita semelhança com os da sociedade ocidental de hoje. Assim como nós, os personagens da Bíblia são profundamente humanos, com suas lutas, dificuldades, forças e fraquezas ? e as mulheres não são diferentes. Mesmo sendo menos numerosas na Bíblia que os homens, elas têm sempre um papel muito forte. Tentam acertar em seus relacionamentos e são os principais personagens das histórias das quais tomam parte. São as primeiras a questionar a autoridade, a assumir riscos, quebrar regras do poder constituído. As mulheres da Bíblia mostram-se também defensoras ferrenhas da família, cuja descendência procuram preservar a qualquer preço, num instinto natural de preservação da espécie.

A jovem Eva não apenas toma a iniciativa, conduzindo Adão ao fruto proibido, como desafia o poder divino. Ao deixar o paraíso, desdenha aquilo que deixa para trás, satisfeita por ganhar o livre arbítrio, mesmo ao preço de sua recém-adquirida mortalidade. Sarah coloca outra mulher na cama de Abraão, para que dê ao marido o filho que ela própria não pode lhe proporcionar. (Mais tarde, é premiada com um bebê mesmo fora da idade em que é possível a concepção). Séfora impede Moisés de sair de casa, destruindo a família, da forma mais radical: toma nos braços o bebê do casal, Gérsom, e ameaça passar-lhe a faca, caso o marido a abandone.

Por trás das aparências da sociedade patriarcal, revela-se o exercício de uma grande autoridade e de uma infuência decisiva no curso dos acontecimentos. Hoje, são mais valorizadas personagens bíblicas como Débora, uma espécie de Anita Garibaldi da antiguidade, que lidera os exércitos hebreus em batalha. Ou Rahab, a prostituta que auxilia os espiões de Josué a escapar de Jericó, correndo risco de pagar com a vida. São mulheres inteligentes, capazes de tomar a iniciativa, que se negam a curvar-se diante das circunstâncias mais difíceis e nas quais o ambiente patriarcalista não deixou qualquer problema de auto-estima.

Tanto o Velho como o Novo Testamentos, os personagens bíblicos fazem parte de uma sociedade predominantemente masculina em que a poligamia é amplamente aceita. Com a história de Adão e Eva, mito fundador da família ocidental contemporânea, porém, a Bíblia estabelece a monogamia não como um padrão imposto por Deus, mas a fórmula menos problemática para a base familiar. Essa ideia é reforçada pelas histórias a seguir, nas quais os casamentos múltiplos dão errado ou causam inúmeros problemas. A rivalidade de Rachel e Lea, duas irmãs casadas com Jacó, assim como a das mulheres de Elkaná e as tribulações de Davi com suas numerosas esposas apontam para a vida caótica de núcleos familiares cheios de dissenções, traições e dissabores.

Enquanto isso, o casamento de Abraão e Sarah, em que pese a disposição da mulher de ceder seu lugar para garantir a procriação, é um relacionamento modelar, assim como o de Rebeca e Isaac. No Gênesis, ao criar a mulher, deus não imaginou mais alguém ao lado de Adão, exceto Eva. Ao ver Adão solitário entre os seres que habitam o Jardim do Éden, Deus pensa em lhe criar uma companheira. Tal combinação garante intimidade, companheirismo e afeto mútuo que antes só encontrava paralelo no relacionamento entre o homem e Deus.

Sexo não é assunto proibido na Bíblia. Dalila arrasta Sansão pela perdição atraindo-o claramente com seus favores entre os lençóis. Este novo tratamento desmistifica a idéia de que os personagens da Bíblia são santos ou sagrados, e também a de que são essencialmente pecadores. São seres humanos feitos à imagem e semelhança de todos os mortais, com seus erros e acertos, dilemas e certezas, medos e coragem. Desde que Eva decidiu questionar as regras do Jardim do Éden, desafiando a Deus para adquirir liberdade, reivindicar seu direito ao conhecimento e poder também criar a vida, o ser humano não se modificou essencialmente ? e mostra-se que a mulher já tinha muito do livre arbítrio, da importância e da independência que possui na sociedade ocidental contemporânea.

Ponto de partida para a história do homem, o amor entre Adão e Eva é feito de união contra as dificuldades, escolha da liberdade, desejo e amor. A ambos é oferecido o Paraíso por um Deus todo-poderoso que cria o ambiente perfeito não apenas para existir como para ser maculado: um homem, uma mulher, um jardim luxuriante, a serpente e o fruto proibido. É uma parábola sobre o livre arbítrio, a capacidade humana de escolher, a responsabilidade assumida pelas decisões e a necessidade de arcar com suas consequências.

Ao contrário da noção de que a Bíblia associa a mulher ao sexo e o pecado, o surgimento de Eva a princípio não tem qualquer ligação com a relação carnal. No texto bíblico, não é Adão quem pede por uma companhia. O próprio Deus conclui que aquela criatura solitária necessita de um interlocutor para sair da solidão. ?Não é bom que o homem esteja só?, diz ele. ?Vou fazer uma companheira que lhe corresponda.? Em Eva, ?carne da sua carne?, Adão passa a ter alguém que fala e ri como ele, diferente nas formas, mas igual moral e espiritualmente. A Bíblia lança o companheirismo como o vínculo inicial e predominante da relação entre homem e mulher. O desejo sexual aparece somente depois. O bem primordial do relacionamento é a cumplicidade.

O nascimento de Eva tem natureza simbólica, pois contraria a ordem natural das coisas, já que todos os homens nascem da mulher, e não ao contrário: ?Deus fez cair torpor sobre o homem e ele dormiu. Tomou então uma de suas costelas e fez crescer carne em torno dela. Depois, da costela que tirara ao homem, modelou uma mulher.? Os estudos mais recentes da Bíblia questionam a tradução que deu origem à versão corrente da Bíblia. Linguistas apontam que a palavra hebraica ''tzela'' é usualmente traduzida como ?costela?, mas tem o sentido de ?lado?. A ideia de que a mulher foi criada ?ao lado? do homem?, como se fossem um mesmo corpo, integrante de um mesmo corpo, e não um mero subproduto, é reforçada logo adiante: ''por isso, um homem deixa seu pai e sua mãe e se une a sua mulher; assim eles se tornam uma só carne.?

No Jardim do Éden, aperfeiçoado com sua nova habitante, há apenas uma regra de ouro. A liberdade de homem e mulher é limitada: Deus avisa que que nem o homem ou a mulher devem tocar no fruto da Árvore do Conhecimento, no centro do jardim. Mais uma vez, os linguistas buscam dirimir as controvérsias sobre essa passagem bíblica. A palavra hebraica para conhecimento (da'at) é a mesma utilizada para o conhecimento sexual. Dessa maneira, implica-se que os tradutores iniciais do texto se ativeram à implicação sexual do termo, mas cuja redação original poderia utilizar a palavra no sentido do conhecimento mais amplo.

Entra então em cena a serpente, o agente perturbador da ordem, símbolo fálico e ente maléfico, definido na Bíblia como o ?mais astuto do animais?. O Criador garante que quem comer do fruto proibido da Árvore do Conhecimento pagará com a vida, penalidade máxima para a transgressão de uma lei feita para ser quebrada. A serpente, porém, é mais exata, ao dizer a Eva que ela ?não morrerá, mas Deus sabe que, no dia em que dela (da árvore) comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal?.

Na tradição cristã, Eva leva Adão a cometer o ?Pecado Original?, simbolizado pela degustação do fruto proibido. No texto bíblico, ela é a primeira a conversar com a serpente e avaliar os benefícios do que o réptil lhe propõe. ?A mulher viu que a árvore era boa no apetite e formosa à vista e que essa árvore era desejável para adquirir discernimento?, diz o texto. Porém, quando come do Fruto Proibido, Adão está ao lado de Eva, num ato que pressupõe uma reflexão anterior e a concordância do consorte. Homem e mulher exercem a cumplicidade para a qual Deus os criou voltando-se contra a sua determinação.

Na interpretação mais atual do mito, Eva é atraída pela serpente não por ser mais frágil ou o veículo mais suscetível do pecado, mas porque foi desenhada para perpetuar a espécie. Esse desenho é biológico e mental. A compulsão de Eva pelo conhecimento é maior que o do homem porque faz parte de seu papel. A ela cabe a decisão de transgredir o paraíso, não por luxúria, mas pelo fato de carregar a maior responsabilidade. É ela a responsável pela continuidade da espécie. É ela que fica grávida, amamenta e assume as principais responsabilidades da procriação e, por conseguinte, da família. Toma decisões mais calculadas e por isso é também mais convicta. Sua força vem daí: a necessidade de procriação supera o dilema moral.

O efeito do Fruto Proibido é imediato: Adão e Eva cobrem-se de folhas, envergonhados de sua nudez. Vergonha, desejo, culpa e uma certa noção de privacidade desvelam-se repentinamente. Adão esconde-se. Localizado pelo Criador e instado a dar explicações, como um aluno malcomportado, numa atitude pouco nobre ele dedura a mulher. Eva justifica-se com a sedução da serpente. São então todos condenados, a começar pelo réptil, amaldiçoado e condenado a rastejar eternamente. A Eva, Deus impõe as dores do parte e a submissão ao marido. Ao homem, a condenação divina é o trabalho: ?Com o suor do teu rosto comerás o teu pão até que retornes ao solo, pois del foste tirado. Pois tu és pó, e ao pó voltarás?.

Apesar do constrangimento pelo ato de rebeldia, Adão e Eva em nenhum momento manifestam arrependimento. Está estabelecida a independência do ser humano, reafirmado o seu livre-arbítrio e assinalado que ele tem de buscar a felicidade por seus próprios meios. Não é, ao contrário da voz corrente, uma opção pelo pecado, palavra que em nenhum momento aparece na história, muito embora a famosa refeição tenha sido posteriormente rotulada como o Pecado Original. Nem essa palavra é utilizada para descrever o comportamento de Eva, n sentido de ruim ou pecaminoso. No Gênesis, em vez de pecado, ou de um grande erro, a decisão de escolher o conhecimento, mesmo sob a pena da mortalidade, é uma opção. A noção de pecado somente surge na Bíblia vez pouco mais tarde, quando Caim mata seu irmão Abel. Os filhos de Eva serão os protagonistas de um crime e da primeira tragédia humana.

Anátema para seguidas gerações de mulheres, a frase bíblica em que Eva é condenada a submeter-se ao homem ? ?teu desejo te impelirá ao teu marido e ele a dominará? ? teve implicações reais, na medida em que a leitura ao pé da letra convinha a padrões estabelecidos. Não é mais assim. Para os estudiosos da Bíblia, a sentença não se sobrepõe ao fato de que o relacionamento entre Adão e Eva é de colaboração, e não de dominação. Por sua vez, o homem não é apenas o único provedor da família por meio do trabalho.

Não existe nenhum registro na Bíblia de como Adão e Eva reagiram à condenação divina, mas não significa que houve concordância com a pena. Embora tenham se tornados mortais, condenados a voltarem ?ao pó?, o Gênesis trata a saída de Adão e Eva do Paraíso como um renascimento. Ele deixa de acusar a mulher. Chama-a pela primeira vez de Eva pois ela seria daria início à linhagem de todos os seres humanos - Havvah, em hebreu, seria uma derivação hayah, que significa ?viver?. Está fundado o arquétipo de todas as mulheres em todos os tempos: um ser destinado à criação. Não parece a reação de dois condenados à morte, mas de um casal reunido na missão de viver juntos e realizar uma obra segundo seus próprios desígnios.

Eva veste então a primeira peça da moda feminina na história da Humanidade, com a ajuda do próprio Deus que a condenou. Primeiro estilista da tradução escrita, o Criador substitui suas precárias folhas de parreira por um conjuntinho de peles costuradas. Num gesto de complacência com seus rebeldes, a roupa servirá para proteger também as crianças da intempérie fora do Éden, definido na Bíblia como um paraíso terrestre em algum lugar do ?oriente?. As roupas ganham também o sentido histórico do início da civilização, entendida como todo produto do artifício humano para sua sobrevivência.

Na saída do Éden, surge outra árvore mencionada no texto bíblico, porém sem nenhuma função até esse exato instante. No plural majestático, que mantém a natureza divina do ser humano, ou reduz a divindade a uma criação do próprio homem, Deus declara: ''Se o homem agora já é como um de nós, versado no bem e no mal, que agora ele não estenda a mão e colha os frutos da árvore da vida, coma e viva para sempre?. Manda então que querubins e as chamas da ?espada fulgurante? montem guarda no portão do paraíso para proteger a Árvore da Vida, de modo a evitar que o homem volte e tome do seu fruto também.

Está desenhada a separação entre o homem e Deus: ambos podem dar a vida, mas só Deus é eterno. Dessa forma, somente pela procriação Adão e Eva podem garantir a eternidade: não de si mesmos, mas de sua linhagem, uma saga cujo início a Bíblia tratará de traçar ao longo de todo o Velho Testamento. Adão e Eva partem para o mundo não mais como crianças, mas adultos num mundo imperfeito.

Em vez de olhar para trás, onde as portas se fecham Eva olha adiante, para onde elas se abrem. Sua participação na expulsão do Homem no jardim do Éden não é humilhante. Ao contrário, rejeita a perfeição, à qual atribui um componente tedioso. Quando olha para a Árvore do Conhecimento, ela se pergunta para que serve a vida se não pode ser desfrutada com a sabedoria trazida pela experiência. É dela o papel mais importante na solução do primeiro dilema moral do livro sagrado. Adão e Eva partem convictos da escolha que fizeram para fundar sua família. Não choram nem cobrem a cabeça de cinzas, como fartamente retratado nas imagens que procuraram reconstituir esse momento simbólico. Saem conscientes de que sua vida tem o sentido de amar e reproduzir a vida. Têm consciência das dificuldades e de sua responsabilidade. Graças à ousadia de Eva, o ser humano atinge todo o seu potencial, desfrutar plenamente dos prazeres da vida e encontrar a paz espiritual confortado pelo amor familiar.

Em qualquer das formas que ligam o casal, seja como companheiros, parceiros ou amantes, a Bíblia coloca Eva num papel preponderante, não apenas pela iniciativa, como pela construção do núcleo familiar e tudo aquilo que ele representa. Ela não é uma sedutora pecaminosa, ao contrário do que a tradição popular lhe atribuiu, nem uma vítima totalmente inocente da serpente sedutora. Dela parte a maior lição: a de que a missão da vida é aproveitá-la, não escapar da morte. É lição fundamental de toda sabedoria, aquela que somente a mãe, a amante e a esposa saberiam dar. Como humanos, a inexorabilidade da morte apenas aumenta a necessidade de fazer o melhor da vida, com um sentido de urgência que ultrapassa proibições.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Um homem sem medo do seu próprio mito



Em dezembro de 1990, eu dirigia a revista 2000, publicação de domingo do jornal O Estado de S. Paulo, que teria vida breve, mas palpitante. A última edição era uma retrospectiva dos acontecimentos daquele ano, recheado de momentos marcantes: a posse do primeiro presidente eleito do Brasil em 30 anos, Fernando Collor, a queda do Muro de Berlim, o lançamento ao espaço do telescópio Hubble, as mortes de Cazuza e Greta Garbo e o bicampeonato de Ayrton Senna na Fórmula 1. Quando entreguei a revista ao responsável por publicações especiais do Estadão, João Vítor Strauss, no entanto, ele abriu os olhos quando leu o que eu havia escrito sobre outra notícia que a muitos pareceu menos relevante: a libertação do líder sul-africano Nelson Mandela. "Isso é uma das melhores coisas que eu já li na vida", disse ele.

Eram apenas cinco linhas, uma legenda debaixo da foto de Mandela, com uma gravata com as cores da bandeira sul-africana, punho cerrado para o alto e um sorriso no rosto:

"Em 11 de fevereiro, um homem de cabelos brancos saiu da prisão de Victor Verster, na África do Sul. Pela primeira vez em 27 anos, um mitológico líder da luta contra o apartheid, Nelson Mandela, pôde ser visto em público - e ajudar a fazer História em liberdade."

Faço essa referência não apenas pelo prazer de lembrar João Vítor, como pelo que essa recordação explica sobre a extraordinária trajetória de Mandela. Condenado à prisão perpétua por sabotagem e incitamento à greve, Mandela se tornara, na prisão, um símbolo da luta contra o apartheid, a segregação racial dos negros na África do Sul, e mais - um símbolo da luta contra o racismo em todo o planeta. O mito cresceu ao longo dos anos, justamente pelo fato de que, impossibilitado de sair sequer para o funeral da mãe e do filho, e isolado no cárcere, sem que pudesse jamais ser visto, Mandela se tornara um personagem legendário.

Libertado na onda de protestos mundiais que se juntaram à queda do Muro de Berlim, Mandela poderia ter se curvado ao peso da própria lenda. Na cadeia, ele se tornara mais do que pode aspirar um ser humano. Como lenda viva, ele teria de enfrentar, fora da prisão, a realidade de se tornar novamente um homem. Poderia desapontar os milhões de pessoas que olhavam para ele, dentro e fora de seu país. Como pode estar um homem à altura do seu próprio mito?

Muita gente feneceu por muito menos. Chico Buarque, por exemplo, é um dos que declaradamente receiam ser comparados a uma imagem construída no passado. Preferiu renunciar a fazer música para não ser colocado lado a lado com ele mesmo no seu auge. Chico representa uma fase de belas canções da música popular brasileira, com uma leve passagem pela musica de protesto durante a ditadura militar, e acha melhor ser Francisco Buarque de Hollanda do que tentar repetir o mito. Imagine-se então na pele de Mandela, o homem sob a sombra da própria lenda, e mais - o homem diante das expectativas de um país inteiro, e depois do mundo inteiro, à espera de alguém capaz não apenas de simbolizar uma luta, como ser capaz de encarná-la, torná-la real, lutá-la e vencê-la.

Mandela não teve medo. Saiu da prisão como um gigante, e viveu os 24 anos restantes como um gigante de carne e osso ainda maior. Negociou as condições para uma nova Constituição, elegeu-se o primeiro presidente negro da África do Sul e, mesmo contras as dificuldades econômicas e sociais, sem falar na intolerância, que não desapareceu do dia para a noite, transformou a África do Sul num exemplo de igualdade, liberdade e civilidade. Um país ainda cheio de problemas, mas que plantou a base essencial para o futuro.

Transformado em estadista, Mandela foi também uma espécie de pajé, um velho sábio que fez jus ao mito graças a uma qualidade rara e contraditória em mitos: a humildade. Da mesma forma que arrumava sua cama todos os dias no palácio presidencial, despiu-se de ressentimentos, que poderia ter tido, por força da segregação, dos anos da prisão, da injustiça. Compreendeu que somente lançaria a paz em seu país se fosse o primeiro a baixar as armas. Com humildade, base da sabedoria, Mandela tornou-se superior. Algozes e vítimas de ambos os lados, negros e brancos, o seguiram pela força do exemplo. Uma boa história de Mandela está contada no filme Invictus - um exemplo esportivo de como ele conduzia um país beligerante à pacificação.

A intolerância, seja racial, econômica ou religiosa, é ainda a maior ameaça à civilização no Século XXI. Está por trás das guerras contemporâneas e provavelmente das que ainda virão. Mandela, morto semana passada, aos 95 anos, deixa dois grandes exemplos. O primeiro, que também é o de Gandhi, é o de que a paz prevalece sobre qualquer violência e que a tolerância extingue o rancor. O segundo é de que a igualdade, a democracia e a liberdade são e serão sempre princípios inerentes ao homem, e que líderes servem apenas para lembrar que os valores fundamentais da Humanidade são defendidos não nos grandes momentos da História, ou por mitos sobre-humanos, mas no dia a dia, pelo cidadão comum.

domingo, 15 de maio de 2011

Perguntas na China

Uma tarde com o pequeno André e João na Liberdade. A rua dos Estudantes, onde eu nasci, as lanternas na rua, a feira, comer no tatami com o hashi de elástico para crianças, André adorou tudo. Rolou pelo tatami, comeu yakisoba como se fosse macarronada italiana. No final, apertado de tanta laranjada, perguntou à mãe.
- Tem banheiro aqui na China?
Andamos pela rua, entramos para comprar coisinhas gostosas e exóticas no supermercado japonês. Curioso, André sai fuçando pela loja e acha uma portinha que dá para uma despensa meio escura. Vai abrindo primeiro, pergunta depois:
- Mãe, aqui é que ficam os bandidos?
Fomos de metrô, para André andar de trem (segunda vez na vida) e matar saudade de Nova York, quando o menino hoje com quatro anos ainda estava na barriga da mãe e caminhávamos pela cidade aos domingos. Para ir embora, pegamos um táxi.
- Moço - disse ele ao motorista. - Vamos voltar agora para o Brasil?

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Saudades de escrever. Vou voltando, aos poucos.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

A eficácia da democracia

E por que demora tanto a depuração do Congresso

Ninguém duvida que o grande legado de nossa geração para o Brasil foi a democracia. Com o crescimento econômico sustentado e a nova posição do Brasil como uma força emergente no mundo, estamos colhendo os frutos da convicção de que a democracia representativa não é apenas um sistema mais justo, como o que mais funciona.

O voto direto fez com que, a cada nova gestão, o eleitorado pudesse colocar o Brasil um passo adiante. Collor, apesar dos erros que o puseram fora do governo, abriu para o mundo a economia brasileira, antes meio soviética, por conta do nacionalismo obscurantista do regime militar. Seu sucessor, Itamar Franco, assegurou a estabilidade da moeda. Fernando Henrique estendeu essa estabilidade com um melhor controle fiscal e monetário. Lula recolocou o Brasil no caminho do crescimento com a expansão do mercado pela base – a imensa massa da população que vem se tornando consumidora. Certamente caberá ao próximo presidente consolidar mais nosso futuro com mais educação.

O sucesso da democracia vem do fato de que, a cada gestão, podemos impor as metas seguintes e colocar o indivíduo adequado para executá-las. Os últimos presidentes do Brasil têm respondido às exigências da etapa que lhes é confiada, num processo gradual próprio de um país institucionalmente estável e que aos poucos começa a aproveitar as riquezas que lhe dão imenso potencial.

Aí vem tantas perguntas: por que a democracia não depura também o Congresso? Por que deputadores e senadores ganham mais destaque pela contratação de parentes, viagens de turismo e outras atividades que sugerem mau uso do dinheiro e completa ausência de espírito público? Por que ninguém sabem o que eles fazem de bom para o país? Por que fica na conta deles a imagem negativa que hoje fazemos do político?

Parte da responsabilidade é nossa, do eleitorado, o que se explica. Para o eleitor brasileiro, governo é o Executivo. O Brasil não dá, jamais deu, muita atenção ao Legislativo. O brasileiro tem urgência na solução de seus problemas e não vemos capacidade de produzir resultados muito práticos na reunião de um monte de gente onde onde o debate se prolonga e forças opostas tendem a se anular, levando à paralisia.


Diante disso, especialmente na Câmara, para o Congresso em geral o eleitor elege qualquer um. Tende a marcar o nome do menos pior, ou vagamente conhecido, apenas como quem se livra de uma obrigação. E depois nem confere o que está fazendo a pessoa que ajudou a eleger.
O brasileiro acredita mais no executivo por uma razão muito simples. Funciona muito mais em termos práticas uma única cabeça que pensa e age sem deblaterar. E o brasileiro gosta de ação, porque este paí, com tantas carências, de fato, precisa de ação. Daí nosso histórico flerte com os demagogos, que constroem sua carreira em cima de muitas promessas. E daí a recente ojeriza à demogagia, porque o brasileiro se cansou de falsas promessas, ou de promessas sem resultados reais.


Nossa Constituição estabelece claramente a preferência do brasileiro pelo presidencialismo. O sistema presidencialista, com quatro anos de mandato para o presidente, é simples. O presidente é o chefe de Estado e tem quatro anos para resolver o que lhe foi mandado resolver; no final desse período, se fizer seu trabalho, ele fica, abençoado por nova votação; se não fez, vai embora.
O sistema parlamentarista, que tem o Congresso seu principal pilar, funciona melhor nos países com tradição de debate e um sistema partidário mais eficaz e representativo dos interesses sociais. Nele, o primeiro-ministro, que é o chefe do executivo, sai do próprio parlamento. O fato de poder ser trocado antes de quatro anos se o Congresso assim desejar, supostamente garante ao sistema mais agilidade. O brasileiro, porém, desconfia da agilidade de uma assembléia, assim como de seus meios e propósitos.


Na cabeça dos brasileiros, questionar a autoridade a todo momento, sujeita às forças sempre mutantes do Congresso, pode levar a muitas confusões e questionamentos da ação durante o mandato. Para a maioria, é melhor alguém que possa ser menos questionado durante o trabalho com o qual se comprometeu em campanha, aprovado pelo eleitor em votação direta. Ao mesmo tempo, lhe damos um mandato mais curto; seu trabalho pode ser verificado em quatro anos; caso não esteja satisfeito, o eleitor mesmo o manda para casa; não dá a nenhum deputado o senador o direito de fazê-lo em seu lugar, exceto em situações excepcionais, como a de corrupção.


O Brasil acredita mais no voto direto que na representatividade dos políticos do Congresso. Tem suas razões, pois o Congresso está muito sujeito ao lobismo e à má qualidade dos políticos. Diferente do executivo, de onde Collor já foi defenestrado por mau comportamento, graças à ação do próprio Congresso, tem mais dificuldade de punir seus próprios pecados. Tanto que o presidente do Senado, José sarney, continua lá, apesar de tudo o que se sabe dele. Tanto que até Collor está lá.


O brasileiro gosta de estar no governo. Eleger o presidente é uma forma mais direta de ver o poder que conferiu sendo exercido. Essa mentalidade é resultante de um povo que por muitos anos ficou sem o direito de escolher o seu chefe de Estado pelo voto direto. A principal demanda do país ao final dos 30 anos longe da democracia era a eleição direta para presidente, assim como os outros postos executivos na esfera municipal e estadual. É aí que o brasileiro centrou esforços de depuração política, porque aí residiam nossas esperanças de recuperar anos de atraso e diminuir o nosso enorme fosso social.


Outro efeito da ditadura militar, porém, foi dar um espaço maior ao parlamento. Ao elaborar a chamada Constituição Cidadã, a Assembléia Constituinte tinha ainda muito presente os anos de chumbo, em que o Executivo, apoiado nos seus batalhões, impunha sua vontade sem controle algum e vivia mais atento à lógica interna do golpe de 1964 e ao tecnicismo dos seus burocratas que à vontade e às necessidades da população.


Os constituintes, então, trabalharam por fazer uma Carta onde o Congresso, que chegou a ser fechado durante os anos de exceção, tivesse mais poder, incluindo o de obstruir a maioria das ações do executivo. Mas fez isso de um jeito tortuoso e atrapalhado. Por um lado, a maior parte das decisões passou a depender do Congresso. Por outro, para evitar a paralisia, a Constituição deu ao Executivo o instrumento da Medida Provisória, que permite colocar decisões em prática antes de serem ratificadas pelo Legislativo.


É óbvio que isso iria dar problema. Há uma quantidade enorme de medidas provisõrias que não são votadas pelo Congresso, muito embora o complexo parlamentar de Brasília abrigue 8.000 pessoas para fazer funcionar as duas casas, a Câmara e o Senado. Algum dia ainda será preciso reconhecer que a maioria das medidas provisórias são decisões que cabem ao Executivo e que os constituintes exageraram em uma porção de atribuições da própria Carta e do Congresso Nacional.


Desses exageros, apenas alguns foram cortados na nascente, como a lei que estabelecia um limite máximo de 12% para os juros reais. Assim como os juros dependem do mercado, e não da lei, só faltou à nossa Constituição dizer que o Brasil deve crescer 12% ao ano e é proibida a recessão. A Constituição americana é mais genérica, uma carta de princípios que não entra em detalhes de administração pública e que necessitam de mais liberdade e agilidade nas decisões.


O brasileiro não se preocupa muito com o Congresso, é verdade, e só se lembra dele quando aparecem falcatruas. O Congresso é importante no seu papel Constitucional de criar leis e fiscalizar os outros dois poderes, bem como os outros dois poderes devem fiscalizá-lo: o equilíbrio clássico no sistema de três poderes com um Congresso bicameral. Ajuda no sentido de proteger algumas minorias e defender de maneira proporcional os interesses de cada Estado na Federação.

Cabe aos próprios congressistas mostrar o seu valor, dedicando-se às tarefas essencias do parlamento com mais eficiência e fiscalizando com medidas eficazes que mostrem sua seriedade. Com isso, pode-se chamar novamente atenção para bons serviços que o Congresso pode prestar. E inverter o círculo vicioso que leva eleitores e os próprios representantes a acreditarem que aquilo tudo aquilo não passa de uma farsa que temos de aturar e só leva a mais desprezo.