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quarta-feira, 30 de março de 2016

Conexões: A Conquista do Brasil

"Prezado Thales, boa tarde. Interrompi minha leitura de "A Conquista do Brasil" para procurar referências suas na Internet, até que encontrei o seu site. O objetivo deste é lhe enviar meus parabéns pela sua obra, que ainda não terminei de ler. Sou jornalista, entre outras formações, e por ter trabalhado com Educação e Turismo, já muito li e viajei pelas terras deste nosso Brasil e do mundo. Sou um entusiasta de História, notadamente do Brasil e dos grandes personagens do passado. Muito já li de diversos autores e continuo minha procura por novas e velhas obras que possam me enriquecer. Sua obra supracitada é especial, provavelmente a melhor leitura que fiz da história do nosso Paí­s. Aprendi ao longo do tempo que nossa herança cultural foi forjada com a mistura forçada de nossos antepassados de índios de várias tribos, portugueses e negros e, mais tarde, de outras imigrações. Essa mistura vem dos sangue derramado em guerras, do suor do trabalho árduo e escravizado e do sexo que miscigenou nossas raí­zes. Muito do nosso presente se explica olhando e estudando o passado. Quero lhe dar os parabéns pelo seu trabalho. Pelo prazer de poder ler transcrito o sentimento do sábio Anchieta, dividido entre o alí­vio de sobreviver às escaramuças, mas angustiado de ver muito do gentio dizimado. Obrigado. Um abraço. M. B."

Tenho recebido muitos emails como este de leitores de A Conquista do Brasil. Dá aquele alívio de ver que o trabalho alcançou o que eu desejava. E o prazer de contar com a simpatia das pessoas com quem a gente, pelo livro, acaba estabelecendo uma conexão.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

A importância de São Paulo na Conquista do Brasil

Agora que O Caminho do Brasil está indo para a terceira tiragem, começa também a chegar às mãos dos professores, que têm nessa obra uma instrumento muito importante para a formação dos estudantes. O livro mostra muito bem o DNA das nossas virtudes e defeitos. E compreendê-los é o melhor caminho para melhorar, numa hora em que o Brasil precisa, e muito, melhorar.

O Caminho do Brasil é recomendado sobretudo aos professores de São Paulo. Mostra a importância dos paulistas na formação do Brasil colônia, subestimada na maioria dos livros de História, como a Biografia do Brasil, que praticamente começa pela indústria do açúcar no Nordeste, e dedica somente 14 páginas ao período do nascimento brasileiro.

Capa da segunda impressão
Ao escrever A Conquista do Brasil, eu mesmo fiquei surpreso sobre quanto não sabia a respeito da nossa gênese - e da participação dos paulistas. Desde João Ramalho, misterioso criminoso que se instalou no planalto e criou uma indústria de escravos índios, São Paulo teve importância fundamental na formação do país.

Foi a guerra criada pelos mamelucos de Ramalho contra os índios que terminou no massacre dos tupinambás na baía da Guanabara, com a participação dos portugueses, sob as bençãos dos padres jesuítas.  Os paulistas não apenas ajudaram a fundar o Rio de Janeiro como repartiram suas terras com a Igreja. Estenderam a colônia ao sul, abaixo de Santa Catarina, e depois pelo sertão. Com isso, se instalaria de fato a colônia portuguesa na costa brasileira, ainda além do que comandava o Tratado de Tordesilhas.

Os paulistas foram os primeiros brasileiros de verdade. João Ramalho foi o Adão do Brasil. A partir dos seus múltiplos casamentos com as índias, criou-se uma raça que reunia a ambição dos portugueses ao conhecimento da mata. Era gente feroz, que recebeu a denominação de "mameluco", empregado originalmente aos guerreiros mouros, por quem os portugueses tinham grande admiração. Horrorizavam os jesuítas, por viverem quase como os índios, razão pela qual São Paulo foi fundada longe da vila da Borda do Campo, onde Ramalho era praticamente um rei - uma distância grande o suficiente para se proteger dele, e perto o bastante para recorrer a ele, quando necessário.

Essa figura lendária, que teria seus dias de glória e morreria no ostracismo, é essencial para compreender a origem dos paulistas e do Brasil. Independente, pouco afeito a obedecer a administração central, numa terra que dependeria de aventureiros para sobreviver, seu espírito permaneceu vivo por gerações. E encontrou seu momento certo no final do Século XIX, quando o declínio da economia rural no Nordeste, baseada no trabalho escravo, deu lugar ao trabalho assalariado na plantação de café e no processo seguinte de industrialização que transformaram São Paulo no carro chefe da economia nacional.
Ramalho na versão edulcorada

A guerra, a mutação dos jesuítas, que de catequizadores se transformaram aos poucos em patrocinadores do esforço de guerra, a posição estratégica de São Paulo na marcha para o interior, tudo está em A Conquista do Brasil com grande riqueza de detalhes. Ali se descortina a história  muito próxima da realidade de seus protagonistas, com uma revisão de documentos originais deixados por administradores, jesuítas e viajantes, como o alemão Ulrich Schmitt, que descreveu a Vila de São Paulo como um lugar de "dar medo", ao ali passar, vindo de Assunção no Paraguai pelo caminho conecido como Peabiru.

A Conquista do Brasil é, de fato, uma história de dar medo, com canibais, guerreiros sanguinários, administradores corruptos e padres implacáveis. É também a origem deste país que está aí, e ao terminar o livro deixamos de nos surpreender com o fato de que em muitos aspectos ainda estamos lutando para ser civilizados.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

A influência do índio no Brasil - de hoje

Um antigo companheiro da revista Veja, amigo de longa data, assiste à minha entrevista ao Jô Soares, e manda pelo Facebook uma pergunta com aquela pimentinha típica: "Só não entendi essa história de 'como o índio entrou no brasileiro'. "

E a resposta está na sua própria pergunta.

Realmente nós, brasileiros, temos uma enorme dificuldade de comprender como a sociedade brasileira incorporou o índio. Para nós, o povo massacrado pelos portugueses no Século XVI é uma coisa do passado, e hoje se resume àquela gente que sobrou, circunscrita aos recônditos da Amazônia ou ao Parque Nacional do Xingu, a célebre reserva indígena criada pelos irmãos Villas-Boas. Nada portanto a ver conosco.

O fato, porém, é que ó índio está no nosso DNA, como bem mostra A Conquista do Brasil, onde está claro o esforço não só para exterminar o índio como apagar os vestígios de sua influência. Apesar do empenho do colonizador imperialista e sanguinário em exterminar aquela gente insubmissa, o índio não contribuiu apenas com os nomes de lugares, ruas e cidades por todo o país. Sua cultura e seu comportamento estão arraigados na sociedade brasileira. De uma forma tão profunda que nem chegamos a perceber, porque já é quase impossível dissociá-la da nossa personalidade como Nação.

Como mostra a malícia da pergunta do amigo, o  brasileiro gosta de fazer pouco das coisas, de desvalorizá-las, de falar mal dos outros. Isso chega a extremos. Quando morre alguém conhecido, ou há alguma crise, no instante seguinte o brasileiro está fazendo piada. Esse é um comportamento típico do índio brasileiro. Não respeitamos nem gente que morre em desastre aéreo.

Assim como o índio, o brasileiro não gosta de autoridade. Nas sociedades indígenas, incluindo aquelas que os portugueses encontraram no Brasil ao desembarcar, o chefe é um servidor da comunidade e na realidade tinha pouco poder. Para os índios, o chefe servia para lhes dar presentes. E nem por isso lhes deviam servidão ou sequer reconhecimento. Uma atitude muito típica do brasileiro, que quer que o governo proveja tudo, mas está sempre pouco disposto a colaborar.


Os índios eram uma sociedade de subsistência, que viviam na abundância e não viam sentido em acumular riqueza nem planejar  o futuro. O brasileiro não planeja o futuro. Isso tem consequências em todos os planos. O brasileiro quer comprar uma geladeira e uma TV de última geração assim que recebe um dinheiro, mas não guarda recursos para a aposentadoria, como fazem outros povos, dos Estados Unidos ao Japão. De maneira geral, o brasileiro é consumista e imediatista.  Junta para o dia. Há algo do índio aí.

O índio não tem responsabilidade com as coisas. Faz coisas graves como se não tivessem efeito. Pode matar um ser humano e em seguida sair dando risada, como testemunha muita gente, incluindo os próprios irmãos Villas-Boas, no seu livro A Marcha para o Oeste. Assim como o índio, o brasileiro é inconsequente. Estes dias em que nos deparamos com os bilhões roubados da Petrobras e de outros estamentos da administração federal, nos perguntamos como alguém pode ser inconsequente a ponto de achar que ninguém descobriria uma roubalheira desse tamanho, maior que o PIB de muitos países, capaz de levar estatais à bancarrota e à falência de toda a administração pública. É nossa mentalidade silvícola na gestão pública.

A corrupção não é um problema do governo, é da sociedade que a permite. Ela se instala de forma generalizada e custa a deixar o nosso dia a dia porque está enraizada. Contagia a todos, do alto escalão da administração federal ao fiscal de rua. No setor privado, desce do capitão de indústria, que concorda em pagar propina para obter preferência na obra pública, até o cidadão que ultrapassa o outro na fila, trafega pelo acostamento para evitar o engarrafamento ou tenta dar o célebre "jeitinho", sempre alguma forma de se livrar dos pequenos regulamentos que põe ordem ao dia a dia.

Isso é resultado da porção silvícola em nossas veias, em nosso comportamento, em nossa sociedade. Gostamos de ver o lado bom da nossa porção indígena, que ajudou o brasileiro a ser um povo alegre, que enfrenta as dificuldades com certa leveza, que não se preocupa tanto e consegue ser mais flexível e tolerante com regras e pessoas. Porém, não gostamos de olhar para o lado negativo desse mesmo comportamento, que nos leva a ser uma sociedade desorganizada, propensa à corrupção, à falta de planejamento e que gosta de criticar a si mesma sem se corrigir de fato.

A melhor maneira de melhorar é entendermos a nós mesmos, sem receio de olhar para  nossas mazelas. Ao fazer um mergulho no passado, A Conquista do Brasil propicia também o exercício de psicanálise de uma Nação, trazendo do berço seus traumas e características. Somente essa terapia pode nos ajudar a entender cada um que cria o país adulto de hoje e trabalhar de forma coerente para melhorá-lo.



quarta-feira, 17 de junho de 2015

Nem os portugueses sabem


Para minha satisfação, a editora Planeta, que publica A Conquista do Brasil no mercado brasieliro, adquiriu os direitos também para a venda do livro em Portugal, onde deve ser lançado até o final do ano. Uma pesquisa recém divulgada pelo jornal Folha de S. Paulo mostra o motivo de tanto interesse pelo livro, disputado ferozmente com outra editora de prestígio. Segundo levantamento solicitado pela Folha, a pergunta mais feita pelos portugueses no Google é: "quem descobriu o Brasil?" E a segunda é: "quem colonizou o Brasil?" Isso vem na frente de "como conseguir um emprego no Brasil". Uma pergunta que os portugueses também se fazem há centenas de anos.

O começo do Brasil é ainda tão pouco conhecido dos brasileiros quanto dos portugueses. Os primórdios do descobrimento foram sempre pouco pesquisados e valorizados como raiz da nossa história. Para se ter uma ideia, o best seller "Brasil: uma biografia", lançado este ano pela Cia das Letras, dedica apenas 14 das suas mais de 500 páginas aos descobridores e primeiros colonizadores do país. Mais centrado em explicações esquemáticas da economia brasileira, o livro destaca em primeiro lugar a criação da indústria açucareira, como se o Brasil tivesse realmente começado ali.

Como se pode ver em A Conquista do Brasil, a ocupação da costa brasileira começou bem antes, foi muito mais aventuresca, sangrenta, rica e complexa. A indústria açucareira é posterior e apenas uma peça da formação do Brasil e da sociedade brasileira. O começo, assim como a primeira infância na formação, temperamento e personalidade de todo indivíduo, é mais importante do que nos acostumamos a pensar. Um conhecimento mais profundo desse período, como revela A Conquista do Brasil, é decisivo para a compreensão do país de hoje e da sociedade brasileira.

O Brasil não foi descoberto pelos portugueses. E a história da colonização envolve guerra e a participação da Inquisição contra os "hereges", assim compreendidos tanto os "hereges canibais" quanto os "hereges protestantes" do Rio de Janeiro. Além da participação de figuras hoje legendárias, que o livro recupera, mostrando como eram verdade, a começar por João Ramalho, Manoel da Nóbrega, José de Anchieta e líderes indígenas dos quais se sabia pouco até aqui, como Aimberê e Cunhambebe. A indústria açucareira veio depois e por acaso - como mostra o livro, foi iniciada, bizarramente quase sem querer, graças a uma história de amor.

A  história não é feita apenas de movimentos de lógica econômica, e sim da ação de indivíduos movidos por paixão, ambição, ou simples obra do acaso. A história é construída pelo homem, que nem sempre obedece a trilhos da razão. Explicar o Brasil é entender o brasileiro, desde a sua infância, o seu DNA. Por isso acredito que A Conquista do Brasil permanece leitura essencial - para portugueses e brasileiros.


http://www1.folha.uol.com.br/asmais/2015/06/1641394-quem-descobriu-o-brasil-perguntam-portugueses-em-site-de-busca.shtml

sábado, 2 de maio de 2015

O esforço e o sentido de A Conquista do Brasil

Amigos me perguntam quanto tempo levou para escrever A Conquista do Brasil, ou quanto tempo se leva para escrever um livro. Para mim, é uma resposta difícil de dar: o livro começa a surgir com o interesse do autor, às vezes de forma difusa e muito tempo antes de se concretizar. No caso de A Conquista do Brasil, é resultado de muitos anos de interesse e trabalho, mesmo na época em que eu mesmo nem sabia por que juntava tanta coisa sobre o assunto.

Hoje eu sei: minha vontade de escrever um livro de história nada tem a ver com o passado, e sim com as preocupações com o presente. Elas são mais candentes hoje, com  a polarização política, a corrupção monstruosa e as ameaças veladas ao processo democrático que duramente minha geração ajudou a construir. Tudo isso nos faz pensar no que há de errado com o Brasil, em quem somos nós, brasileiros, e como podemos melhorar como Nação. E as respostas vêm lá de trás.

Entender as raízes mais antigas e profundas dos nossos problemas, estudar o começo, onde está o nosso DNA, é o caminho para mudar e melhorar a realidade de hoje. Como na psicanálise, para entender o que somos é preciso voltar à primeira infância. Fazer uma regressão.

O Brasil é um país que inventou muita coisa sobre si mesmo: o país do carnaval, do samba, do futebol, das mulatas, do Pão de Açúcar, do bom baiano, do brasileiro cordial. Com isso fica difícil explicar, ou mais fácil de acomodar, o país da corrupção, do abismo social, do racismo camuflado, da violência urbana, da direita truculenta e da esquerda hidrófoba.

Compreender o Brasil antigo é um esforço que exige muitos ângulos: o jornalístico, da pesquisa e informação bem apurada; o sociológico, para entender a formação do povo; o antropológico, que ajuda a compreender sem preconceito os índios e seu papel em todo o processo. A Conquista do Brasil deve muito à minha formação em Ciências Sociais, especialmente antropologia política.

Livros de etnólogos pouco conhecidos do público, como Pierre Clastres e Helène Clastres, me ajudaram a compreender o mecanismo social e político das sociedades ditas primitivas do Brasil, assim como a religião e sua influência psico-social, especialmente nas tribos do tronco tupi-guarani. A antropologia, no sentido geral, ajuda também a ver as coisas como eram, sem preconceitos modernos, seja na compreensão do canibalismo indígena, parte de um sistema social, seja na mentalidade dos primeiros portugueses, incluindo os jesuítas.

Ajudaram também as editoras brasileiras, especialmente a Itatiaia, que publicou há muito tempo as obras completas dos primeiros viajantes e historiadores brasileiros, e que eu comecei a colecionar, no princípio sem outro propósito além de querer saber mais.

Mais recentemente, uma ajuda inestimável veio da iniciativa do espólio do empresário José Mindlin, que disponibilizou obras raras de sua coleção pessoal, gratuitamente, na internet. E a própria rede social, que facilitou acesso a documentos que antes demandavam viajar a Portugal para serem consultados, razão pela qual a história que aprendemos nos bancos escolares até agora ainda era baseada no trabalho de pesquisadores do final do século XIX e começo do século XX, como Capistrano de Abreu.

Por último, e não menos importante, está uma certa experiência de vida. Passar alguns dias entre os índios do Xingu, por exemplo, me deu exata noção de como é para um ocidental estar no meio deles, em circunstâncias não muito diferentes das que tiveram pela frente homens como José de Anchieta e João Ramalho. Devo essa experiência à iniciativa do amigo, empresário e aventureiro James Lynch. Mesmo a enrascada em que nos metemos, sendo submetidos a um perigoso tribunal indígena, me deu melhor noção do que é encarar o risco de vida numa aldeia diante dos índios em seu próprio meio, como aconteceu com Hans Staden e o próprio Anchieta, que em sua cartas narra ter passado por julgamento semelhante.

Escrever, portanto, é a junção de muita coisa. Um livro é produto de um enorme esforço, onde colocamos tudo o que sabemos, num esforço físico e intelectual exaustivo. Quando terminamos, estamos esgotados, e isso é só o começo, porque um livro nada é, se não tiver leitores. Seja qual for o resultado, porém, para mim terá valido a pena.

sábado, 12 de março de 2011

A presença do passado

O México é um sítio arqueológico: por toda parte, se sente a presença do passado. As pirâmides, próximas da cidade do México, uma cidade grande como São Paulo, com menos prédios, por temor dos tremores - estruturas reforçadas, com colunas cruzadas, para suportar abalos símicos como os que já resultaram em tragédias coletivas. O vasto parque, cercado por montanhas vulcânicas, cortado por canais, onde no passado havia um grande lago, e no lago uma grande ilha, na qual vivia o grande povo azteca - os mexicas, de onde os mexicanos tomaram seu nome. Os espanhóis varreram a cidade azteca do mapa, demoliram seus templos de pedra, passaram a fio de espada seu orgulhoso imperador, que vestia um cocar de penachos azuis e liderava um povo guerreiro que subordinara seus vizinhos ferozmente: mas de alguma forma pode-se sentir seus fantasmas ali.



Do alto do hotel Nikko, pela parede envidraçada de onde eu avistava esse cenário em minha passagem relâmpago pela cidade, não sabia que encontraria ali meus próprios fantasmas. Numa manhã livre, apenas algumas horas, decidi visitar o museu antropológico, a quinze minutos de caminhada; queria ver as esculturas toltecas, maias e de todos aqueles povos bárbaros que habitaram a América Central; e a grande sala mexica, com suas paredes de pedra negra, onde atrás de um vidro está o cocar de Moctezuma, que teria sido dado de presente a Cortez, seu algoz, antes da traição dos visitantes conquistadores e cobiçosos; e, no fundo do salão, sob o jato de luz que jorrava de um spot no teto de pé direito altíssimo, a Pedra do Sol, peça mais importante da coleção, pela concentração de significado, materialização da teoria circular da vida para os aztecas, com os ideogramas das estações, que giram ao redor do deus guerreiro, segurando na mão dois corações sangrando - seu almoço ou seu jantar.

Fui embora, impressionado; passei pela ala central do museu, a céu aberto, com um lago povoado da vegetação nativa que ao tempo mexica abundava no lago de Tenochtitlán; passei pela grande coluna azteca com um chapéu metálico, ao redor da qual jorra uma cascata permanente, como um véu d'água circular, descendo sobre o chão; saí em direção às barracas dos camelôs, que ficam diante do museu à espera dos turistas, vendendo máscaras coloridas de luta livre, flautas andinas, canecas pintadas. De repente, parei: ali estava, miniatura esculpida em pedra verde, imitação da obsidiana, produto mais precioso do lendário passado mexica, uma réplica da Pedra do Sol. E me lembrei de que minha mãe me dera uma peça como aquela - ou melhor, aquela peça, provavelmente comprada naquele mesmo lugar, tantos anos antes, quando voltara de uma viagem ao México; sempre vinha com alguma lembrança, ela que colecionava colheres turísticas e outras quinquilharias, uma maneira não somente de mostrar apreço aos outros, mas de contar de si mesma; logo ela, que falava muito, mas pouco dizia realmente de si.

Caí em mim: eu andava pelos lugares de minha mãe, os mesmos lugares, o mesmo museu, a mesma calçada, a mesma barraca. Olhava para aquilo como ela tinha feito; saí dali a sentir aquela presença, como a sentiria novamente mais tarde ao ver, no aeroporto, às três da manhã, na vitrine da madrugada, o sombrero negro, como o que ela também me trouxera, com certeza comprado ali mesmo - quem compraria um sombrero, aquele trambolho para o transporte, exceto no próprio aeroporto, já perto de embarcar?

Tomei o avião pesado de sono e de alma; ali minha mãe tinha feito descobertas, as mesmas que eu; encarara os despojos místicos mexicas, talvez com o mesmo assombro; as salas onde abundavam os sinais da religiosidade mexicana, pobre, colorida, e ao mesmo tempo sombria, com seus esqueletos e espantalhos e xamãs; um povo que mistura vida e morte, e que nisso talvez tenha sabedoria, eu que hoje percebo, com a memória de minha mãe, como a morte está mesclada à vida, nos acompanha, não sai de nós; a morte dos outros, com quem temos de aprender a viver, e a nossa morte, antes que nossos filhos passem sobre as mesmas calçadas, talvez fazendo as mesmas perguntas.

Minha mãe faleceu há dois anos, mas de certa forma nada passou; ela continua dentro de mim, eu a vejo nas sombras, nos lugares que passo, no prato que como, em palavras que ouço; na reza do meu filho, que ensinei a rezar como ela me ensinou ("proteja papai, mamãe, eu e tooodas as criancinhas do mundo", e tinha que ter aquele "tooodas as criancinhas do mundo").

Tenho vontades de chorar, tenho ganas de revolta, tenho crises de impotência, por não poder voltar atrás; tenho ódio da crueldade divina, que nos coloca no mundo para conhecer a felicidade máxima e nos tirá-la; artífice de um mundo efêmero, onde toda a esperança é sempre provisória. Me pergunto todos os dias, olhando o riso do meu filho, como é possível ser feliz depois de se descobrir o sofrimento da perda sem retorno; a alegria das crianças nos ilumina, nos conforta, é o que nos salva, é um pouco de saúde no meio da loucura, mas lá dentro fica uma sombra, como se fossemos agora somente um resto do que fomos.

Minha vida com minha mãe não foi perfeita, brigávamos como inimigos, ela tinha um amor destrutivo, egoísta, insensível e feroz; era no entanto o maior amor que eu conheci, violento e voraz; era, de todo modo, o único amor de mãe que eu tinha. Eu fui tudo o que ela não queria para mim, por isso conspirava contra minha felicidade, a ponto de me confundir entre o amor e o ódio que eu lhe devotava, talvez em igual medida; descobri, porém, que nem com a morte de minha mãe me separei dela; continuo a conviver com os mesmos conflitos, a dialogar com ela, porque ela não está apenas na minha carne, no verde dos olhos, nos cabelos claros, nuns jeitos e manhas que se apanha às vezes em fotografia; ela está dentro de mim, companhia permanente, que salta diante dos meus olhos a qualquer instante, como no México, no México de seus fantasmas vivos - mais vivos, talvez, do que nós mesmos, porque os fantasmas, esses sim, são para sempre.