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sábado, 3 de julho de 2010

Campeões no coração


A Copa de 1982 será para sempre a lembrança de como éramos jovens, de como éramos fortes, e de como lutar contra o destino, as impossibilidades, os golpes da vida fazem da era romântica também a mais sublime.
Em 1982 eu estava na faculdade, fazia Ciências Sociais à tarde, Comunicação pela manhã, ambas na USP. Passava meu dia na universidade, com suas alamedas, sua calma de fazenda, apenas aparente; naquele tempo a escola fervilhava, eram assembléias de estudantes mobilizados contra o final da ditadura, ainda havia greves, manifestações, a vida tinha um sentido político de mobilização em nome de algo melhor: a democracia purificadora de 30 anos de ditadura militar, de porões sangrentos, de censura à imprensa, sem voto nem liberdade.
Diferente da geração de nossos pais, que tinham visto o golpe militar nascer e o enfrentaram como podiam, éramos uma geração que não queria as armas, o confronto, mais sofrimento; queríamos apenas a paz e a liberdade com a certeza das coisas irrecorríveis e inevitáveis, a certeza de que nenhum mal, nenhuma arbitrariedade, nenhuma violência faz sentido, por isso não pode triunfar.
Lembro de deixar as aulas convocado de repente para ocupar o restaurante, uma forma de criar caso muito em uso na época; lembro de ocupar a reitoria, centenas de estudantes sentados no amplo salão de entrada; lembro de estar sentado no chão no extremo daquela massa de gente, separado de um batalhão da Polícia Militar, armado como um exército, apenas por uma porta de vidro; podia olhar nos olhos dos policiais a centímetros de distância, quase sentir seu hálito do outro lado daquela tênue separação dos dois lados.
Infernizámos a reitoria e os dirigentes de toda espécie porque suas medidas atrabiliárias se confundiam com o clima de repressão geral; o Brasil começara desde 1974 a era da distensão dita gradual, mas vivia ainda sob um governo militar, eleito fajutamente num Congresso manipulado. Éramos jovens, queríamos a paz em paz, repito, mas queríamos mudar. E não aceitávamos nada imposto, tínhamos de participar, aquela era a verdadeira abertura, não só política, mas abertura de nós mesmos; descobríamos nossas ideias, nossas vontades, nossos desejos, nossas paixões, nossos ideais, descobríamos o sexo, o corpo e as sensações que davam um sentido literal, ao mesmo tempo amplo e profundo, do que se chama de universidade.
Era o começo do movimento que daria nas multidões que correriam as ruas clamando por eleições diretas, o histórico movimento das Diretas-Já, marco da democracia no Brasil e da história futura do país, fincada na liberdade e numa espírito pacífico, porém determinado, que recolocou o Brasil no seu caminho como Nação e lhe deu um lugar de tolerância, respeito à diversidade, defesa da liberdade e exercício pleno da vida perante todo o planeta.
Hoje pode parecer exagerado dizer isso, mas a grandiloquência fazia parte daqueles dias; éramos jovens, repito, e sonhávamos com dias melhores; víamos os nossos pais sofridos, o país massacrado por uma guerra silenciosa e cotidiana, e queríamos mudanças ao lado deles, com eles e por eles; não esperaríamos outra geração para ver realizados nossos projetos de liberdade, progresso e paz; não queríamos um Brasil melhor para nossos filhos, mas para nós.
Tudo isso estava em jogo naquele congresso de estudantes de comunicação em Florianópolis, uma semana de retiro, numa espécie de república estudatil instalada na universidade federal, cujo campus virou uma cidade-Estado, com leis e vida próprias. Dormíamos no chão, amontodos em salas de aula; namorava-se no meio dos outros, livremente, entre os corpos deitados na penumbra, nos corredores, no gramado; nos debates havia os que se empenhavam em parecer sérios e aqueles que, desdenhando da política, não deixavam de fazê-la; era um tempo de rebeldia, não apenas contra as instituições fraudadas, mas contra tudo, rebeldes contra a própria rebelião.
Ali discutíamos como se tivéssemos o poder de mudar tudo (e hoje vemos que mudamos: no Brasil democrático, que desfruta e crescimento continuado, de uma paz duradoura, de constituição sólida. Mesmo que ainda com graves problemas sociais que somente com muitos anos e educação poderemos ir sanando eu vejo que mudamos.)
Não havia ainda em vista a eleição direta para presidente, nem a Constituição-Cidadão de 1988, que restabeleceu a democracia no Brasil; mas a semente estava lá, no clima acalorado dos debates, mas na maneira da juventude mudar as coisas, com sorrisos no rosto, bandeiras de liberdade, abraços inesquecíveis de amizade e amor, momentos que não se perderam no tempo, porque estão hoje em dia em cada brasileiro que pode ser livre e ter uma vida melhor, ainda que não saiba direito a quem deve tudo isso.
Como um símnbolo de tudo isso, havia a seleção; era uma seleção nova, forte, vibrante, jovem. Era uma reunião de talentos, uma expressão de vitalidade e de arte como não se via desde 1970; era uma seleção de craques, que jogavam um futebol vistoso e que, como nós, tinham por dentro a certeza da invencibilidade. Talvez fosse melhor até que a de 1970; não tinha Pelé, porém tinha mais craques; no meio de campo, reunia-se uma constelação de jogadores que parecia uma seleção de todos os tempos, com Toninho Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico.
Era um time de sonhos que fazia a bola rolar preciosamente, uma equipe de zéfiros, que não conhecia outro resultado senão a goleada, que fazia a torcida vibrar de orgulho e paixão. Era um Brasil novo que surgia, resgatava o que este país tinha de melhor, devolvia o orgulho de ser brasileiro, depois de anos de derrota, que nos havia mantidos distante do sonho então mnuito possível de sermos campeões, de sermos plenos, da mesma forma que o Brasil demorava a se tornar o gigante que surgiria assim que pudesse ser livre outra vez.
E lá fomos nós, a república da juventude, para o salão da universidade, não lembro em que lugar, só do grande salão com um aparelho de TV improvisado em cima de uma mesa, diante dele a multidão de faces cheias de certeza; gente de pé, sentada, de joelhos, abraçada; começou o jogo como todos os outros, aquele time só dava exibições de gala, aquele time goleava, aquele time jogava bonito, aquele time era vencedor.
E a festa prosseguiu, até que, como um raio que cai num dia de azul esplendoroso, a Itália fez dois gols; o jogo terminou e a platéia, assim como o Brasil inteiro, ficou muda; aquilo não podia estar acontecendo, era mentira; como era ilusão o próprio estádio Sarriá, era ilusão toda a Espanha. O destino não podia ceifar a alegria daquela forma, aquela certeza; éramos os melhores, merecíamos a vitória; jogamos melhor, fomos belos, fomos bravos, fomos fortes, e mesmo assim perdemos, em dois lances casuais, numa prova cabal da arbiotrariedade da vida, uma arbitrariedade cruel e acachapante que nos deixou massacrados, como se repente tivesse caído uma laje de concreto sobre nossas cabeças.
Saímos dali atordoados; centenas de estudantes,subitamente abalados em todas as nossas certezas; se naquele momento o entusiasmo da seleção e de todo um país estavam tão juntos, um baque daqueles punha abaixo nosso amor próprio, nosso futuro, a esperança nacional; era um golpe terrível, e não sei o que me fez caminhar para aquele lugar, como caminhamos; aos poucos foram chegando todos, nos reencontramos no lugar menos provável daquele dia: uma campo de futebol.
O campo da universidade de Florianópolis nunca viu um jogo como o daquele dia: vinte e dois jogadores, que corriam chorando, a descarregar a raiva, a tristeza, a angústia; como se pudessem mostrar como se fazia, tornar certo o que dera errado; repor algo, não no campo da batalha perdida de Sarriá para os algozes italianos, mas na nossa própria alma.
Lembro que atirei longe o tênis, queria sentir a terra, queria os pés feridos de bater na bola de couro com todas as forças, queria correr à exaustão, exorcizar aquela tristeza, desabafo convertido em esforço; gastar-me até não ter forças para nada, nem para sentir; vencer a dor da alma pela exaustão.
E me lembro de nunca jogar futebol tão bem na vida, tão bem que poderia ter estado perfeitamente no Sarriá; pegava a bola na defesa para dar início às jogadas, distribuía o jogo no meio de campo, lançava, surgia na área, fiz vários gols. Corria como um guerreiro etíope, flutuando sobre o chão, sem esforço, sem suor, sem cansaço; com cinco graus de miopia, e sem os óculos, via tudo, mesmo sem enxergar nada; despachava lançamentos de longa distância, fazia passes em profundidade, como se dotado de um radar de morcego; fomos assim sem ver o tempo, até que caiu a noite, até que, extenuados, olhamos uns para os outros, não totalmente vingados, não totalmente satisfeitos, não totalmente consolados, herdeiros daquela fúria que ainda posso sentir hoje, moídos, doídos como se tivéssemos também participado daquela batalha, dividindo aquele momentos irmanados.
Não, o Brasil tinha perdido um jogo, mas não saíra derrotado; a beleza daquele dia seria lembrada para sempre, a derrota só aumentava aquela chama, porque sabíamos que não podíamos jogar fora aquela força plena, ela ainda triunfaria, ainda nos levaria um dia à realização dos grandes sonhos, só não podíamos desistir, sim, só tínhamos de continuar.