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quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Por que escrevo


Estou terminando de escrever um livro, que deve ser meu próximo, o mais difícil (para mim mesmo) que já escrevi. Divido ou antecipo aqui um pequeno trecho, que fala sobre a própria dificuldade de escrevê-lo. (E esse aí da foto sou eu mesmo, piqueno, objeto dessa obra).

"Deveria ser fácil, mas assumir os erros e enfrentar a nós mesmos para mudar e melhorar é uma tarefa ainda mais difícil que enfrentar os outros. Mudar é doloroso, pois no caminho temos de encarar quem somos, nossos medos, nossas falhas.

Precisamos de humildade para aceitar que não sabemos tudo, que temos problemas e que nossa felicidade depende dos outros. Isso fica muito evidente quando temos filhos. É por eles, até mais do que por nós mesmos, que devemos tentar ser melhores.

Aprendi a duras penas. O exercício de escrever é um processo de reflexão, do qual acabamos dependentes. Escrevemos não por vaidade, ou por exibicionismo, ou para ficar na posteridade, mas para viver. Seja como autor de livros de ficção como de não ficção, eu me obrigo primeiro a quebrar a casca da ostra, a encarar a verdade interior.

Depois, aceito o que nunca faço: me expor. Escancarar as portas da alma, sem segredos, é uma forma de mudar, superar a dificuldade de estabelecer uma ponte para o mundo. Ao escrever, ajudamos a nós mesmos; ao publicar o que escrevemos, a intenção é ajudar também os outros na mesma situação. O que vemos nos livros pode ser informação, ciência ou arte, mas em última análise é o aprendizado com a experiência humana, que dividimos uns com os outros.

Aquele que abre o coração expia seu sofrimento em busca de redenção. Dá o primeiro passo para a admissão de que é um ser humano. E descobre, ao abrir os braços, que os outros o acolhem. Saber que não estamos sozinhos no mundo e receber esse retorno, tanto quanto dá-lo, traz um grande alívio."

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Quando as coisas se juntam

Sou um colecionador de memórias profissional - e, da mesma forma como acumulo a memória factual e afetiva para escrever, vou juntando móveis, papéis, obras de arte e pequenas tralhas das quais tenho dificuldade de me separar. Penso que os objetos que carregamos junto conosco contam um pouco a história da gente e falam muito sobre quem somos - ou o que fizemos de nós mesmos. No meu caso, aparecem aqui e ali nos meus livros e são parte do que escrevo.

Na minha casa em São Paulo, que deixei há quatro anos, esse espaço estava circunscrito ao escritório, onde eu trabalhava diariamente, cercado de coisas cuja maioria só eu sei para que servem ou de onde vieram - pinturas, desenhos, lembranças de viagem, objetos curiosos. Para quem olha de fora, aquilo é apenas uma bagunça, ou o sinal visível do caos interior. Para quem examina tudo mais de perto, ou vê o conjunto, e conhece as histórias de cada objeto e sua importância, surge um novo sentido, que é inerente à própria vida e ao trabalho criativos.

Comecei a revisitar as minhas coisas, e a mim mesmo, recentemente. Para tentar entender melhor o porque de tudo, ou de cada coisa, como numa visita ao museu de mim mesmo.

Por certo tempo, minhas coisas andaram espalhadas, por conta da bússola errática que às vezes toma controle da vida. Assim como seu dono, parecia que elas andavam à procura de um lugar - um lugar onde afinal tudo se encaixasse, esperando que fosse para sempre. Algo difícil, como haver harmonia na tempestade, unidade na diversidade, sentido na loucura. Aos poucos, porém, vida e arte foram se juntando no mesmo lugar.

Até por estar sem endereço fixo em São Paulo, levei tudo para uma nova casa no meio da mata, onde passei a escrever meus livros. No antigo sítio, jamais consegui trabalhar. Havia sempre algo a fazer, a cerca para cuidar, o cão como companhia do passeio, a tarde para namorar. Porém, aos poucos foi tomando força a ideia de reunir tudo lá - o trabalho e o ambiente que o cerca.

Na Casa da Mata, além do meu último níquel, gasto sem nenhuma cerimônia em um cheque rabiscado no balcão de fórmica do cartório, comecei a fazer meu novo futuro levando meus cacos do passado, como o rearranjo de um antigo mosaico, em busca de sua forma definitiva. O que só foi possível depois de encontrar com um amor extraordinário e benevolente que, sem ciúme do que já passou, e capaz de me trazer de volta a energia incomparável da esperança, permitiu que passado, presente e futuro se juntassem de uma forma harmoniosa.

Para minha surpresa, ou alívio, velho e novo foram se encaixando em seus lugares, como se tivessem esperado sempre para estar ali. Passeio agora pela casa e tudo ali faz mais sentido: começo, meio, fim. Cada peça conta uma história, e cada história é uma parte do quebra-cabeça: elementos de sonho, de realização, de aventura, de amor.

Vejo uma linha do tempo e vêm recordações que não são passado, porque atuam, ou mesmo determinam minhas mudanças e a razão de estar aqui. Sentimentos antigos continuam presentes: tudo está dentro de mim. E tenho o impulso de registrar um pouco o que há por trás de cada coisa: a vida que pulsa em cada objeto aparentemente inanimado, o que cada coisa fala de mim, ou sobre mim, e para mim. Eu me redescubro, preparado para mais.

Somos a somatória de tudo: viagens, momentos, lembranças, ideias, ideais, encontros. Recolhemos pela vida aquilo que se amolda a nós mesmos: e aqui estamos. Nossa casa é o espaço onde essa mágica se realiza, ainda mais no caso de gente que, como eu, trabalha em casa e cria um mundo ao próprio redor.

Aqui quero trabalhar, juntar crianças, ouvir o som dos pássaros. Há lá fora um bando de javalis baderneiros que se atocaiaram na montanha e escavam o baixio com os seus caninos; lá embaixo, onde havia o lago onde uma vez uma mulher já morreu afogada, está agora o poço de pedra onde a água mina, cristalina; a rede está à espera, depois do almoço, quando eu e a Mulher Desaparecida vamos nos deitar.

E a mesa de trabalho está ali, ao lado da lareira vermelha; são dela as primeiras horas do dia, sempre, e alguns minutos, antes de dormir.