terça-feira, 6 de junho de 2017

Giorgio, os protonerds e a marca de uma geração

Outro dia falei para a Mulher Desaparecida de Giorgio, de sua importância musical, de tudo o que representava para mim - e o mundo. Ela nunca tinha ouvido falar dele. Tirando os óculos escuros, minha mulher não deixa nada esquecido: descobriu que ele daria um show em São Paulo, comprou os ingressos de surpresa e lá fomos nós, algumas outras pessoas e muita coisa envolvida ao encontro do velho mago.

A caixa negra do espaço das Américas se abriu ao som e luzes de um dos artistas mais importantes para toda uma geração e cuja amplitude somente agora se vai descortinando. O inventor da música eletrônica, e agora pai da música digital, virou novamente moda, trazido de volta por adolescentes e jovens para quem, de repente, ele tem tudo a ver com os novos tempos. E como.


A plateia, não muito grande, que deixava espaços abertos na pista para dançar, era seleta e de todas as idades: não somente pais que levavam os filhos para ver o monstro sagrado, como jovens que descobriram Giorgio pelo fato dele ser hoje o que há de mais contemporâneo na música. Para minha surpresa, verifiquei que ele se encontra presente em grandes sucessos, num tempo em que a era digital faz uma releitura da base eletrônica que ele criou.

No Spotify, sua marca aparece desde no trabalho de seus seguidores, como David Guetta e Chainsmokers, até astros que foram atrás de sua mágica para criar grandes parcerias musicais, como Rihanna (That's what you came for"), Kylie Minogue (Right here, right now), Phil Oakey (Together in Electric Dreams) e Sistar (One more day).

Como ele mesmo ironizou em uma música de três anos atrás, "74 is the new 24". Agora, Giorgio tem 77 anos - e seu legado, assim como a marca dessa geração, se confunde com os tempos. Posso dizer isso de um ponto de vista muito particular.

Quando Giorgio começou a fazer sucesso, entre 1977 e 1980, eu fazia o segundo grau, curso de eletrônica, no Liceu Coração de Jesus. Naqueles três anos, formou-se a irmandade que completou o curso no célebre 3o. TRA, uma classe só de homens, amigos entre os 14 e 17 anos, para muitos dos quais ele se tornou um ídolo.

Numa época em que, como acontece com toda juventude, pouca gente nos entendia, Giorgio era como nós: a novidade surgindo pela tecnologia. As escolas então eram obrigadas por lei a dar um curso profissionalizante, e eu, achando que em Exatas se exigia mais dos alunos, juntei-me àquela turma de protonerds que rabiscavam circuitos eletrônicos em cadernos pautados, adoravam se meter nas galerias intrincadas da rua Santa Efigênia, então já a meca dos artigos eletrônicos em São Paulo, que ficava a curta distância do colégio - e descobriam de repente aquele sujeito que fazia música com máquinas ancestrais do computador.

Giorgio foi o primeiro a utilizar o sintetizador, um misturador de sons, por meio do qual os computadores faziam vozes que substituíam ou se mesclavam à voz humana. O resultado dava à música um poder e uma profusão muito maiores que os da velha guitarra, instrumento que Giovanni Giorgio chegou a tocar quando era ainda um músico imberbe.

Foi esse efeito que produziu aquele ídolo impossível, quando estouraram seus primeiros sucessos: não era apenas música, era o surgimento de um mundo novo, onde um sujeito que não sabia cantar, não tinha banda e era feio de doer, com seu bigode obsceno, podia se tornar um popstar. Sucessos como From Here To Eternity, hino eletrônico em que o grande astro não era de carne e osso, e sim a voz metalizada e incorpórea que anunciava o futuro, passou subitamente a dominar as rádios e mexia com a nossa imaginação.

Nós, os garotos estranhos que gostavam de coisas que ninguém ainda entendia, éramos feios de doer, desajeitados de dar dó e como consequência morríamos de medo das garotas em geral, passamos a ver o mundo a nosso favor. Giorgio nos dava energia, nos fazia interessantes, nos dava esperança. O mundo começava ali de um jeito diferente, e o futuro, de grandes mudanças, éramos nós.

Éramos protonerds, mas não alienados - éramos rebeldes. No colégio salesiano, submetido à rígida disciplina dos padres, estávamos sempre girando a roda no sentido contrário. Pela manhã, às vezes ainda escuro, fazíamos fila no pátio para ouvir o sermão, em geral do padre bedel, o implacável Perini, ou do padre Anderson, o reitor. Uniforme, missa, carteirinhas carimbadas. Não podíamos encostar nas garotas da Patologia e da Administração na hora do pátio: a vigilância era constante. Na sala de aula, com o bedel passando pelo corredor, olhando pelas janelas internas, ninguém podia dar um pio. Mas a gente não se conformava. O velho mundo seria sacudido como nunca.

Localizado nos Campos Elíseos, que já naquela época deixara de ser o antigo bairro dos casarões nobres de São Paulo, perto do centro e da antiga rodoviária, cheia de mendigos, bêbados e putas, os TRAs estavam sempre nos lugares errados, nas horas incertas. Às nove da manhã, um grupo podia ser encontrado num bar ali perto, tomando cerveja, ou comprando a revista Playboy de um jornaleiro que tornava as coisas mais fáceis, quando ver mulheres peladas, para adolescentes, ainda era uma coisa quase impensável.

Às vezes, conseguíamos escapar para ir aos cinemas do centro, que já funcionavam desde cedo, para assistir na sessão da nove da manhã pornochanchadas brasileiras ou filmes de putaria nos cinemas da Avenida Ipiranga. Foi assim que assistimos a obras-primas da velha adolescência como A Superfêmea, com Vera Fischer, Garganta Profunda e  120 Dias de Sodoma, que chegavam aos cinemas brasileiros com atraso, depois de vencer os surreais trâmites da censura da ditadura militar. Contávamos então com a vista grossa dos funcionários dos cinemas, que não ligavam para quem estava pagando ingresso, fossem os bêbados e vagabundos ou aqueles menores franzinos com uniforme de colégio.

Era uma turma estranha, divertida e unida. Até choque tomávamos juntos. Nas grandes mesas do laboratório de eletrônica, em grupos de seis, sentados na bancada lado a lado, quando alguém levava uma descarga elétrica de um lado, todos pulavam, em sequência, com uma onda serial de gritos. Os que eram pegos de surpresa ficavam putos, é claro. Mas era engraçado.

No terceiro ano, atingimos o nível infernal de comportamento. Quando os professores saíam da classe, fazíamos guerras de papel e queimávamos caneta com chiclete para jogá-las e grudá-las no teto de pé direito alto. Certo dia, fui pego subindo na torre da igreja pelo corredor do dormitório dos padres com duas garotas, na tentativa de ver a cidade do sino da torre. Não sei como, escapei de um severo castigo - talvez por ser protegido de um padre, primo de meu pai, muito influente por lá.

Enfrentávamos o sistema de todas as formas. Algumas delas era picarescas, como o dia em que eu, como entregador das cadernetas para o carimbo de presença, saí da secretaria com uma cópia mimeografada da prova de Televisão dentro da cueca. Televisão era uma matéria difícil como o diabo, que havia encarnado no professor, também um demônio. Vi o maço de folhas ao lado do mimeógrafo e não tive dúvida: me aproveitei do fato de que não havia ninguém ali no momento para surrupiar o documento.

Saí pé ante pé, para que a prova não fizesse barulho de papel amassado por baixo da calça. Depois de comprovar que aquela era mesmo a prova de Televisão, passei uma semana de medo, com receio de que alguém contasse o número de cópias da prova e desse pelo fato de que faltava uma. O professor de Televisão, um sujeito que nos odiava, porque criticávamos suas faltas constantes e transformávamos suas ausências em verdadeiros comícios para demiti-lo, tinha preparado um teste praticamente insolúvel com a clara intenção de nos prejudicar.

Fiz a única coisa que, depois daquele pequeno delito, me pareceu certa. Comuniquei que roubara a prova a todos da classe. Formamos um comitê com os alunos mais brilhantes de eletrônica para resolver as questões: Sérgio Soares (Cabelinho), Maurício Grego (o Grilo), Edgar Giorgiante (Dumdum) e Sergio Cabete (que não precisava de apelido). Levaram a semana inteira para concluir o que oficialmente teríamos apenas 40 minutos de prova para fazer.

Colamos, coletivamente. Cada um decorou as respostas, não podia dar nada errado. Quando as notas vieram, para nosso espanto, o homem nos dera de zero a 3 (nota máxima entre trinta alunos). Reclamamos. Eu, a essa altura na liderança do levante, com a ousadia de alguém que faz pose cheia de razão mesmo tendo um delito como base, demonstramos que as respostas seguiam o livro recomendado pelo professor e exigimos dos padres a revisão das notas.

Foi uma aula memorável. O professor, sentado à mesa, chamou os alunos um por um e revisou as notas. Tiramos todos entre 9 e 10 (menos o Eduardo Reis, hoje eminente advogado, tão averso à eletrônica que nem colar soube). O professor acusou outro - Miltão, mestre de administração, que havia fiscalizado a prova - de nos deixar colar, gerando a fúria do colega. Por fim, para nosso gaúdio, pressionado de todos os lados, Mr. TV pediu demissão.

O final do 3o TRA teve muitos lances memoráveis. No pátio, fazíamos pirâmides humanas. No esporte, ganhávamos de todos: as disputas eram entre nós. A final do campeonato de futebol daquele ano foi o time A do 3o. TRA contra o time B, supostamente mais fraco, onde eu me encontrava (os times eram cores, e o nosso era o Laranja, que logo apelidaram de Laranja Mecânica, como a Holanda maravilhosa da Copa de 1974, então o time mais famoso).

Depois de uma campanha gloriosa, em que marquei um gol sem tê-lo visto (um chute do meio de campo, num escuro fim de tarde, que dei sem os óculos de 5 graus, e só soube do resultado depois que os outros saíram pulando em comemoração), vencemos o time A da nossa própria classe num sábado pela manhã, pelo placar histórico de 3 a 1. Foi uma vingança interna: os rejeitados do "B" venceram os "craques" do A, que nunca aceitaram a derrota.

Nenhum evento, porém, foi maior que a Maratona Cultural, evento que incluía uma gincana de perguntas e respostas de várias matérias (eu respondia sobre literatura) e a apresentação de um espetáculo artístico. Era muito competitiva e eu queria ganhar, depois de perder da Patologia no campeonato benemérito de recolhimento de artigos para a caridade. Nós conseguíramos comida e cobertores para a campanha dos salesianos, mas a Patologia acabou vencendo com uma trapaça - trouxeram um caminhão cheio de papel higiênico e ficaram com mais pontos, porque o regulamento estabelecia o vencedor pela contagem de unidades.

Depois de muita discussão, num debate que substituiu uma aula de matemática de Mario Omura, com o consentimento do professor que até hoje nos ilumina com a paciência e a sabedoria dos chineses, eu assumi o comando do que iríamos apresentar na competição. Reuni textos de poetas brasileiros e, como não tínhamos mulheres na classe, com uma suada vaquinha compramos uma. Era uma estátua de jardim, réplica de uma escultura grega, uma musa de nariz reto e seios provocadores que se encontravam ligeiramente à mostra.

Tive muitos embates sem sucesso para fazer passar os textos dos poetas brasileiros pela censura dos padres, que não permitiam a declamação das partes mais picantes. Nossa musa, que pesava uma tonelada, saiu a muito custo de uma kombi para dentro do teatro, envergando um casaco militar, emprestado do figurino do teatro, para encobrir a sua nudez. Apareceram colaboradores de última hora. eduardo Bucciarelli, que no começo tinha sido contra a ideia do espetáculo, foi seu principal executivo. Cabelinho, que desaparecera misteriosamente, apareceu como por milagre para operar o gelo seco na hora H. E tudo funcionou.

No dia marcado, com a plateia lotada, a dissipação do gelo seco revelou a imagem, quando para já era tarde demais para qualquer reação dos censores. Assisti ao espetáculo que tínhamos ensaiado da boca de cena. Reinaldo Lino, Márcio Dudu Duailibi e outros desfiaram Vinícius de Moraes e o que de melhor pudemos salvar da poesia brasileira para aquela apresentação depois da censura religiosa. Quando o espetáculo terminou, senti meu corpo erguido no ar: Bahia e outros vinham me colocar em triunfo. Que pouco durou. Com um palhaço cantor, e um banco de praça num musical cheio de mulheres de carne e osso que encerrou a série de espetáculos, as meninas da Patologia levaram novamente o troféu, nos deixando o segundo lugar.

(Aprendi isso aí: as mulheres sempre ganham.)

Foram todos embora, enquanto eu fiquei. Sentei no banco da praça, deixado pelos concorrentes sobre o palco, olhando o teatro vazio. Estava triste, frustrado, exausto. O desgaste da luta contra o sistema se somara à derrota no fim para me liquidar. Nesse instante, porém, senti que não estava sozinho. Sentou ao meu lado Celso de Mello, professor de português, nosso ídolo e incentivador.

Ele, que nos divertia com suas histórias de literatura, subira ali para colocar a mão no meu ombro. Não disse nada. Somente na aula seguinte, sem mencionar o nome de ninguém, fez um discurso pintando a cena de um guerreiro, sentado num banco, depois da batalha, para dizer que nenhum luta era vã.

Foi assim que eu tive certeza de que meu caminho era o das letras, onde as lutas nunca estão perdidas, pois no mundo das ideias há sempre esperança para as boas causas e a necessidade de guerreiros que se lançam ao bom combate. Fui para um lado e meus amigos para outro. Estávamos todos, porém, cumprindo a profecia da nova era. O mundo avançaria, com a tecnologia e as ideias, o binômio indissociável e transformador.

No último dia de aula, depois de um jogo de futebol que encerrou as festividades de fim de ano, eu caminhava com um de meus colegas, o baixinho Ademir, com o calção e os meiões enrolados debaixo do braço. Íamos juntos pela calçada que dava na Avenida Rio Branco, onde ambos tomávamos o ônibus que levava para a Casa Verde, onde eu morava. Ademir estava triste: tinham acabado as aulas e não sabia qual seria o seu futuro. Achava que não entendia de eletrônica, sentia-se incapaz de passar no vestibular e o fim daqueles tempos parecia-lhe realmente um fim.

Um ano depois, quando eu cursava Ciências Sociais na USP e me preparava para prestar o vestibular de Comunicação, encontrei Ademir na Brunella, então famosa sorveteria da Avenida Sumaré. En quanto eu ainda andava pendurado pelo lado de fora dos ônibus lotados, porque não tinha dinheiro para pagar o bilhete, e assim podia descer no ponto sem entrar e passar na catraca, ele apareceu numa motocicleta Honda CB 250, novinha em folha.


Com um grupo de colegas da nossa classe, tinha sido convidado por um de nossos professores de eletrônica, Jefferson, para trabalhar na Itautec. Era a empresa que começava, no Itaú, a instalação pioneira de caixas eletrônicos e a substituição das filas bancárias pelo auto-atendimento. Um trabalho que fez muitos de meus amigos, ainda nem entrados na faculdade, praticamente ricos. Viajavam de cidade em cidade, instalando equipamentos nas agências - um processo que se tornava irrecorrível, obrigaria muitos bancários a mudar de emprego e mudaria o comportamento e a sociedade.

Na música, Giorgio também entrava em novas eras e capitalizava seu momento. Ajudou a impulsionar a onda Disco, um dos maiores fenômenos sociais da história. Foi ele que usou a voz de Donna Summer, futura rainha da era Disco, como mais um elemento sintético no som transcedental de I Feel Love. Seu sintetizador esteve por trás da voz de Summer em muitos outros sucessos, elevando a energia daquela extraordinária mulher a uma potência cósmica. A tecnologia criava também uma força impulsionadora na vida de todos nós.

Giorgio fez muita coisa que atravessou nossa juventude. Da trilha sonora de Top Gun ("Take My Breath Away) à criação de uma nova figura: sem ele, não teriam existido as subsequentes gerações de DJs, que começaram a tocar música em festas e clubes com novos recursos e mais tarde passaram a produzir música original, tornando-se astros como ele. A era eletrônica evoluiu para a digital e a música de Giorgio continuou inovadora e atual.

Outros ídolos se juntaram para mim a Giorgio, na música e na vida. Com Cazuza, Legião Urbana, David Bowie e tantos outros embalamos grandes mudanças, no mundo e no Brasil, da antiga ditadura militar à democracia, ao restabelecimento do Estado de Direito, a estabilização econômica e por fim a luta que perdura rté hoje, de um maior equilíbrio econômico e social. A tecnologia mudou o mundo, assim como as ideias, que são o começo de todas as transformações. Mas nem tudo foi resolvido.

Muita gente não conhece bem Giorgio e o que aconteceu nessa geração. Eu mesmo ouço novamente Giorgio e só agora alcanço a dimensão do que fizemos. Mais: entendo que não envelhecemos. A base do que lançamos, ainda é que faz germinar o futuro. O que nós sonhamos na juventude ainda é o que move o mundo. A tecnologia. E as ideias.

Todos nós do 3o. TRA ficamos mais velhos. Mas nunca nos separamos: entre nós, falamos dos membros da classe como os "irmãos". Estamos sempre em contato e de vez em quando nos reunimos em encontros carinhosos e barulhentos. Giorgio também envelheceu. Seu proverbial bigode hoje está branco como seus cabelos. Mas ele ainda mostra o caminho. Eu tenho 53 anos e saí de seu show pensando que 53 é o novo 23. Nessa geração, o mundo mudou muito, mas o que fazemos, a mudança que iniciamos, ainda está em curso. Este mundo ainda precisa de guias, de criadores, de gente com grandes certezas, que espera completar a missão de transformação. Precisa de nós. E disso, estou certo, só sairemos para a eternidade.


Nossa musa, que hoje ainda repousa no jardim da família do Lino

A pirâmide, símbolo das nossas ambições

A pirâmide registrada de baixo

O 3o TRA alinhado nas velhas arcadas

Festa de despedida que nunca aconteceu

No centro, embaixo, Celso de Mello, o mestre

Eu aí à direita, agarrado ao Luís Bucciarelli, entre amigos tão caros: Celso ao centro e Mané, completando a fileira central, Fossa e Rogério (agachados), atrás, Mauricio Fortes e marco Antonio Rocco



quinta-feira, 1 de junho de 2017

Um menino vai a Paris

Minha mãe estava já na fase terminal do câncer quando lhe mostrei aquela folha, a avaliação escolar de meu filho André, então com apenas dois anos de idade. Dona Marlene, professora primária, educadora a vida inteira, apanhou a folha nas mãos e chorou.

(Acho que a vi chorar apenas duas vezes na vida. A outra foi na morte de um cachorro.)

Este sábado, meu filho, que agora tem dez anos, embarca com a escola para Paris. Fez com seus coleguinhas um filme que será apresentado num festival da Academia Francesa, na Cinemateca de Paris, com a abertura feita pelo cineasta grego Costa-Gavras. André trabalhou no filme como ator, roteirista e editor. E só consigo pensar no que minha mãe sentiria, se estivesse viva.

Dona Marlene era apaixonada por Costa-Gavras. Talvez hoje pouca gente o conheça, mas ele é um dos cineastas mais importantes para toda uma geração. Z, filme da década de 1960, tornou-se um símbolo de liberdade, não apenas na Grécia, como em todo o mundo e especialmente no Brasil, onde sua exibição foi proibida pela ditadura militar. Eu era ainda criança quando minha mãe me levou para, afinal, assistir Z. As cenas de combate entre a polícia e o povo na rua, que pichava o asfalto com a letra que dá nome ao filme, ficaram na minha memória para sempre. Quando penso na luta contra o arbítrio, penso em Z: Z de Zorro, o Z grego de liberdade.

Tentei explicar a André quem é Costa-Gavras. Ele nasceu num país democrático e livre e procurei mostrar a ele como foi difícil chegar até aqui e quanto esforço, coração e mesmo a vida de muita gente foram empenhados nisso. Quando André embarcar para Paris, tenho certeza de que vou ter de segurar uma vontadinha de chorar. Não por ele, que aos dez anos é cidadão do mundo e está acostumado a viajar. É por minha mãe - e pensar que, em algum lugar, ela estará chorando pela terceira vez.