sexta-feira, 24 de março de 2017

Anita e as mulheres

Uma das histórias mais impressionantes da vida de Anita Garibaldi é a da sua decisão de abandonar os filhos com desconhecidos pescadores na costa de Nice, para seguir até Roma, onde se encontrava o marido. Não apenas porque a viagem seria cheia de perigos e ela estava, na prática, indo ao encontro da guerra. Foi um desafio para mim quando escrevia "Anita", romance que está sendo lançado agora pela Editora Record. Eu não entendia exatamente aquilo: como uma mãe podia abandonar os filhos. Com desconhecidos. E para juntar-se ao marido.


Para as feministas de hoje, as pessoas que discutem o "empoderamento" da mulher, seus direitos e problemas na sociedade contemporânea, Anita é um tema muito atual.

Para ela, naquela situação, não adiantava ficar com os filhos - estar ao lado do marido, e na guerra, era mais importante. Caso perdessem a guerra, seriam todos mortos. Certamente os austríacos não deixariam vivos os filhos de Garibaldi. E ela não podia deixar as crianças com alguém conhecido, rastro que os inimigos saberiam seguir. Precisava deixá-los com alguém sem qualquer relação com a família.

Era uma decisão duríssima. Pode ser paradoxal, mas foi pensando nos filhos, em salvá-los, que ela os abandonou à própria sorte. O maior perigo, no fim das contas, era eles estarem com a mãe. O tempo mostrou que tinha razão.

Obrigado a entrar na pele dessa mulher, fiz um exercício que me levou a ver as mulheres de uma forma diferente. Entendi, a partir do exemplo de Anita, muita coisa que vi das mulheres ao longo da vida.

Quem mais que uma mãe pode estar 100% com os filhos? No entanto, é difícil definir o que é 100%.

Aprendi, olhando pelos olhos de Anita, que a ausência também pode ser uma forma de amor extremo. E que as coisas se misturam. Assim como Anita pensava nos filhos, é verdade também que ela desejava ir para a guerra. Depois de anos em Montevidéu, na maior parte dos quais ela cuidou das crianças ainda pequenas, estava cansada da vida doméstica. No Uruguai, tomara a decisão de levar os filhos ao front de guerra. Ela, tanto quanto Garibaldi, precisava da liberdade. Da luta. Independentemente das crianças.

De Nice, grávida, ela foi para a guerra pelos filhos, é verdade. Foi pelo marido. Mas acho que foi mais, no fim das contas, por si própria.

Garibaldi teve muitas mulheres, mas casou-se com Anita porque ela era como ele, capaz de levar uma vida com a sua, e não se conformava em ser de outra forma. E a entendia, porque também ele tinha o espírito indomável da liberdade. Era isso que fazia de ambos verdadeiros revolucionários. Fazia deles quem eram.

Casou-se com ela porque eram iguais.

Garibaldi é o maior heroi da história italiana, e acredito que sua trajetória é a mais impressionante, inacreditável e quase inverossímil da história universal. Mas acredito que, para ele, Anita era ainda maior.

Anita me fez pensar sobre a coragem, a maternidade e sobre o amor. Melhor, me fez sentir.  Essa é, afinal, a tarefa do romance. Não basta sabermos uma coisa. É preciso senti-la. Ao final, não estamos apenas conscientes, mas transformados por viver uma experiência .

Anita para mim ainda é uma personagem transformadora, para homens e mulheres. Escrevi Anita, escolhi Anita, porque precisava. E isso me ajudou. Saí do livro diferente do que entrei. É a aventura que proponho ao seu leitor.

quarta-feira, 22 de março de 2017

Um encontro em Assis

É uma noite luminosa, não só porque as abóbadas pintadas de azul cobalto têm estrelas douradas, como pelo facho divino que entra pelas janelas do templo gótico. Caminho sobre o mármore da Basílica de São Francisco, em Assis, a Assisi dos italianos, e sinto a presença dela.

Ali ela esteve, viu aquelas estrelas idílicas; viu a tumba do santo que nasceu naquela cidade, sob a sombra da fortaleza destruída pelo povo oprimido, reconstruída pela força do Papa, no tempo em que este era também um senhor feudal, com poderes temporais como os dos reis terrenos, como jamais foi Jesus.

O santo também rebelado: contra o pai, rico tecelão, que decidiu se vestir como um asceta, em trajes de retalho, como o que vemos na "sala das relíquias"; contra a igreja, cujo sacerdócio rejeitou, para fundar sua própria ordem. O santo que criou uma legião de despossuídos para peregrinar pelo mundo propagando a fé católica. Inclusive pelo mundo muçulmano, que a igreja católica então combatia com a espada.

Pela roupa, Francisco se tornou símbolo de despojamento e simplicidade, que transformou "franciscano" em adjetivo. Pelo propósito, associou-se à paz e à fraternidade. Provavelmente por isso, passou a ser representado na companhia das pombas brancas, pássaros e animais silvestres, porque associamos a paz à natureza selvagem, não ao ser humano, concupiscente e belicoso.

Há quinze anos, minha mãe esteve diante do santo, da sua tumba de pedra sobre pedras, e do seu legado; caminhou pelas mesmas ruas, na cidade luminosa de vielas medievais, com seu templo romano, transformado em igreja. Ali ela foi feliz: entendi, ou melhor, senti o que ela sentiu diante da história. E sua identificação com aquele santo. Como ele, minha mãe acreditava nas pessoas, na capacidade de mudança, no poder transformador da bondade e do amor pelo próximo; acreditava, como Francisco, no ser humano.

Ela, professora, certamente venerou aqueles restos, assim como seu significado. Rezou pela mudança da Humanidade, ela que me ensinou no padre-nosso a pedir "pelas criancinhas"; certamente rezou por mim e pela minha mudança. 

Iluminou-se com a vista deslumbrante da cidade, tendo aos pés a colcha de retalhos verdes que se estende até as montanhas nevadas. Ali os romanos instalaram sua fortaleza, depois sua cidade, antes de ser território da fé, e da felicidade de minha mãe, contagiada por tamanha beleza.

Assisi tinha e ainda tem tudo o que ela gostava. As alamedas bem cuidadas, com vasos de flores na escada das casas; os nichos pintados nas paredes, com imagens de santos; os monges franciscanos com seus longos hábitos; os alegres grupos de estudantes circulando nos cafés e nas praças, as vielas imprecisas onde de repente avistamos o vale e o além entre paredes de pedra.

Um lugar da de elevação do homem e do espírito, onde minha mãe encontrou alegria, encontrou amizade, encontrou paz. De todo o tempo em que ela andou pela Itália, quatro meses distante, ela me falava mais de Assisi. 

Lá ficava a casinha do amigo, talvez namorado, que ela tinha puderes de definir como tal. Da casa desse homem, que não sei quem é, ela dizia ver a catedral; falava da cidade, da luz, e que era o único lugar onde ela pensou, realmente, em ficar para nunca voltar.

Hoje ela está ainda mais distante, porém, nunca me pareceu tão perto. Ando pela nave central da Basílica, rumo à saída; sinto a presença de minha mãe, como se ela tivesse me levado até ali. Ela sempre quis que eu visse a vida pelos olhos dela, e ali estava: eu via Assisi por seus olhos, e vi a vida também. Foi como uma mensagem, soprada do além. 

Não havia apenas amargura, o rancor, a dor dos tempos de briga. Era uma mensagem também de paz: dizia estar bem, e assim eu pude ver também o que havia de bom: eu sua alegria, sua boa-fé, seu amor. E isso me conforta o coração.

Minha mãe de rancores e mágoas, de brigas ferozes, tanto quanto de doçura e amor: penso que ela é que havia me levado até ali, pela mão, como mãe e professora, como sempre foi. Levou o filho invisivelmente até Assisi, para que Assisi falasse por ela. 

E eu, que nunca aceitei ver as coisas como ela via, faço em Assisi o que nunca pude, quando isso significava ser eu mesmo, reafirmar o que queria, diante de minha mãe. Em Assisi eu vejo pelos olhos dela, me rendo, baixo as armas, como numa comunhão.

Por ela, ou melhor, para entender as mulheres, as mães, sua luta, mesmo que ás vezes pareça contra os filhos, escrevi Anita, que está saindo agora nas livrarias. Minha mãe tem me falado por muitas vias: pelo olhos de Anita hoje eu vejo as mulheres, eu entendo, eu perdoo, e sou obrigado a também pedir perdão, pelos tempos de incompreensão.

Saio da Basílica chorando; não de tristeza, e sim de alegria por um encontro há muito esperado; choro de amor, de saudade, de felicidade com uma antes impossível conciliação. A cidade sob o sol radioso do inverno, tão perto do céu, me fez agradecer a vida, a vida que ela me deu; choro por estar vivo, e por ela me dar o caminho, me ensinar o caminho, até hoje. Choro por tê-la ajudado a chegar a Assisi, e de gratidão, por poder segui-la até ali.

Minha mulher me dá um abraço; ela, que é mulher, filha, e também mãe, é calorosa, sem nada perguntar. Mais tarde, quando vamos embora, no carro, ela me pergunta se ainda guardo mágoa de minha mãe. Não, respondo eu, não tenho mais por quê. 

Pena que só sabemos essas coisas quando é tarde demais; mas sei que de alguma forma converso com ela. Assisi não foi um lugar, foi um encontro. Ela está bem, eu disse, cessou a tempestade; é a única coisa que faltava para eu baixar também a guarda; agora eu posso descansar.
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terça-feira, 21 de março de 2017

Um bilionário de meia furada

Era 1986 e o bilionário americano David Rockefeller, então presidente do banco Chase Manhattan, resolveu visitar o MAM, o Museu de Arte Moderna de São Paulo, no Parque do Ibirapuera, durante uma passagem por São Paulo. Eu, então aos 22 anos, entusiasmado e inexperiente repórter da seção de Nacional do jornal Gazeta Mercantil, fui destacado para tentar arrancar dele uma entrevista, se tivesse a oportunidade. E tinha que ter, porque, caso contrário, estava frito. Repórteres sem sorte não duram muito no emprego.

Esperei Rockefeller na marquise do parque, perto da entrada do museu, ao lado de um verdadeiro batalhão de outros jornalistas - avisados, assim como meu jornal, pela assessoria de imprensa do museu. Lá veio Rockefeller, num terno escuro, com sua cara de americano mais que americano, os cabelos grudados à cabeça com gel, nariz afilado, passo de lorde, sem se assustar nem um pouco com os jornalistas brasileiros, ao contrário. Para minha surpresa, fui eu o único a lhe fazer perguntas, por uma razão muito simples: era também o único a arranhar alguma coisa de inglês.

Surpreso com tanta gente na sua frente, mas um único interlocutor, ele me perguntou se eu tinha aprendido a falar a língua nos Estados Unidos. Respondi que não conhecia o país: o que sabia de inglês tinha vindo de um mero curso intensivo no Cel-lep. Ele pareceu um pouco desapontado. Explicou que estava ali para ver o Museu porque sua família tinha contribuído com grande parte do acervo e queria ver como estavam as coisas. Eu, porém, não estava muito interessado em arte. Num jornal de negócios, só queria fazer perguntas sobre economia.

Enquanto conversávamos, caminhando, reparei que um fotógrafo da Folha de São Paulo ia rolando no chão, ao nosso lado, feito um cachorro amestrado. Fiz de conta que não vi. Rockefeller também. Quando o banqueiro entrou no museu, fui perguntar o que tinha dado no fotógrafo.

- Você não viu? - ele disse. - O homem está com uma meia furada! Eu tinha que fazer a foto!

Eu não pude publicar a foto - mas não deixei de publicar, no texto, aquele episódio anedótico.

Como herdeiro de um dos maiores impérios de negócios dos Estados Unidos, Rockefeller representava bem a aristocracia americana. Seu bisavô, o lendário John Rockefeller, fizera fortuna com petróleo e ganhara tanto dinheiro que no final a maior empresa do grupo, com os passar dos anos, se tornara o banco. Isso não impedia Rockefeller de conversar normalmente com um repórter brasileiro quase monoglota nem andar de meia furada.

Ontem, deu nos jornais a notícia de que David Rockefeller morreu, aos 101 anos de idade. Era o último neto vivo do fundador da companhia. Os Estados Unidos hoje são outros, os negócios também, e com ele vai embora o último remanescente de toda uma geração empresarial que eu vi passar e ajudar a construir o mundo como o vemos hoje, para o bem e para o mal. Rockefeller era amigo do secretário de Estado Henry Kissinger e a influência do seu banco, ou melhor, do capital americano, era tamanha que sua importância equivalia à de um chefe de Estado.

Assim como os homens de calibre, o jornalismo hoje em dia também tem um peso muito menor no mundo que no passado. E funciona muito diferente. É raro um repórter fazer plantão em qualquer lugar à espera de uma entrevista. Em geral o entrevistado já emite suas opiniões num blog pessoal e a imprensa digital copia aquilo e cola. Por fim, eu mudei. Já fui vezes sem conta aos Estados Unidos. Morei um ano em Nova York e conheço o país de cabo a rabo. Fui o primeiro editor da Forbes no Brasil, consultor do Discovery Channel e dirigi o Grupo Playboy na Editora Abril, o que sempre me manteve em contato direto com americanos. Jamais, porém, procurei Rockefeller, como ele me convidou a fazer. Talvez devesse ter ido vê-lo. Agora, é tarde demais.

Não sou do tipo saudosista, que vai dizer que antigamente era melhor. Mas essa pequena notícia sobre a morte de Rockefeller num canto qualquer do espaço virtual me lembra que era, pelo menos, mais divertido.


terça-feira, 7 de março de 2017

Fotografias de um mundo sem futuro

“Você é o único aqui que não precisa de máquina para fazer fotografias”, diz a Mulher sem Nome, que, desde que nos separamos e tentou me proibir na Justiça de escrever seu nome, ficou sem nome - e me acostumei.

Estamos sentados no #Harry’s Bar, de Harry #Cipriani, celebrizador do carpaccio e do Bellini, onde já bebeu #Hemingway, em belas eras. É carnaval em Veneza e, desta vez, o bar está lotado de gente que entra da rua para o salão sóbrio e quente, acotovelando-se diante do balcão, entre os garçons de meticuloso paletó branco e gravata borboleta negra.

Entre os recém chegados, que amotinam o bar ao estilo naval, estão dois cavalheiros setecentistas de chapéu tricórnio, meias brancas até o joelho e paletó de asa. No meio deles, um sujeito com vestido balão (“lutador de sumô”, identifica a Mulher sem Nome), que ocupa, sozinho, o espaço de quatro pessoas e se movimenta boiando, enquanto rebate erraticamente entre os circunstantes.

Tomamos dois #Bellinis, acompanhados de azeitonas. É bom estar aqui, respirar novamente o ar de Hemingway, e estar com a mulher que entende exatamente o que estou falando. Viemos do palácio do Doge, decorados com cenas #de guerra e Netuno entregando a #Veneza a sua cornucópia, na representação de #Tiepolo. Andamos pela ponte Dei Sospiri, saindo da pompa dos salões venezianos, até a curta e claustrofóbica passagem sobre o canal que leva às frias e escuras masmorras do velho império.   

“É o que está acontecendo hoje”, diz ​a Mulher sem Nome, quando observa que o túnel entre os salões ricamente decorados e o claustro sombrio são aqueles vinte metros suspensos sobre o rio. 

Sim, no Brasil, hoje, os políticos que expoli​​aram o país, e empresários a eles associados, todos frequentadores dos melhores salões da república, navegantes de iates e passageiros de jatinhos particulares,​ estão indo para as imundas e superlotadas cadeias brasileiras. Entre eles, até mesmo #Eike Batista, que já foi o homem mais rico do Bras​i​l, destituído de sua fortuna, da liberdade – e de sua peruca italiana.

Tempo sem futuro, sem esperança, em que avanços recentes, não só no Brasil, como no mundo, se perderam. Nos Estados Unidos, Obama, com seu programa de saúde, seu olhar de ecumenismo político sobre as nações e o mundo, deu lugar a Trump: a volta à velha truculência do selvagem capitalismo americano.

Tempos do recrudescimento da ira, catapultada pelo poder digital, pela violência religiosa, ambos filhos da intolerância. Este é um mundo em que a tecnologia avança, mas ela apenas serve para melhor armar os homens e seus antigos barbarismos.

“Senhor, fotografar aqui dentro não pode”, adverte o maître do bar, firme e gentilmente.

Tarde demais. O retrato, como diz a Mulher Sem Nome, está feito. Veneza espera lá fora – a noite azul marinho, a cor de que mais gosto, nesta cidade que combina tanto com o caleidoscópio humano dos blocos nas ruas centenárias. O cheiro do mar, o estalo das gôndolas no cais, o trajeto pelas vielas estreitas, até a Chiesa San Vidal, onde, às 20h30, iremos a um concerto de violinos para ouvir As Quatro Estações de Vivaldi.

Talvez os tempos de Hemingway fossem mais sombrios ainda, tempos de guerra, embora mesmo a guerra naquela época fosse mais romântica. Estou aqui no Harry’s Bar, há vida e livros pela frente. Estou usando barba, por causa de Garibaldi, tema do romance que está saindo do forno, e muita gente diz que estou muito Hemingway. Sei apenas que, como eles, procuro viver até o limite, com ajuda do amor – amor que eu carregava pela mão na noite de festa e regozijo.

(Redação revisada para um texto escrito em Veneza, 26 de fevereiro de 2017, sábado de carnaval.)

A Pietá, o Vaticano e um amor comovente

Quatro anos atrás, quando estivemos em #Roma juntos pela primeira vez, Dona Aranha foi barrada na porta do Vaticano.

Era verão, e estava com os braços de fora. Saímos em busca de agasalho, para atender aos padrões de compostura da catedral. Com isso, perdemos a hora – aborrecida, ela aceitou visitar o museu Vaticano, sem a catedral, por conta da imensa fila que se formava àquela hora. Dentro do museu, ficou ainda mais brava ao ver as estátuas gregas nuas, na coleção dos papas. Na sacra galeria, somente ela parecia estar toda vestida.

Desta vez, além de estarmos prevenidos, era inverno. Ela suportou tudo: sua agorafobia, no meio da multidão, aglomerada no bolsão anterior à revista, minha vertigem ao subir a espiralada escadaria do domo, o que, para um labirinto tão sensível como o meu, é sempre uma aventura.

Porém, nesse dia, enfim, entramos na igreja do Vaticano. A catedral das catedrais.

Logo na entrada, indico à direita a #Pietá. “Mas ela sempre esteve aqui? Eu não a vi em outro lugar?”, pergunta ela, candidamente.

É tão conhecida a Pietá que, assim como a #Monalisa, nos é sempre familiar. Mas a Pietá, ao vivo, só ali. É um deslumbramento e um choque. “Estou com vontade de chorar”, diz ela, se afastando.

A visão da mãe com o filho nos braços amoleceu seu coração – de filha, de mãe, de mulher. “A mãe entregou o filho ao mundo para cumprir sua missão, mas, quando ele morre, é ela que o recolhe novamente”, explicaria mais tarde no jantar, enquanto ouvíamos um violoncelista no #CampoDiFiori, em uma das mesas do restaurante #Magnolia.

Ainda no #Vaticano, assistimos à missa – cantada em latim, com um coro literalmente divino – e saímos mais leves. Sem dúvida, apesar do turismo de massa, ali ainda se pode ter um encontro solitário com #Deus. “Pela primeira vez, entrei numa igreja sem ter nada a pedir”, disse ela.

Dona Aranha é comovente. Ela me trouxe à Itália para lembrar quem sou, ou de que sou feito. Porém, o que me lembra quem sou não são os lugares onde já estive ou de que gosto. É ela.

segunda-feira, 6 de março de 2017

Korian volta pela mão de um leitor

Lucas, estudante de Design da UFES (Federal do Espírito Santo), me procurou pedindo autorização para usar um livro meu, há muito desaparecido das livrarias, como seu trabalho de curso. Queria  projetar, diagramar e imprimir um livro. E escolheu um que lancei em 2005, pela antiga efitora Siciliano, hoje encontrado raramente, em um ou outro sebo. Assim surgiu uma nova versão de "Korian na Terra do Engano", que ele leu quando criança e, pelo jeito, nunca  esqueceu. Aqui vai o resultado. Acredito (e espero)  que ele passe de ano. Da minha parte,  fico sempre feliz de fazer parte da formação e inspiração de alguém - é o retorno que mais nos dá prazer e vontade de trabalhar. #thalesguaracy #korian #naterradoengano

A cidade e a memória

Eu no Diana com uma taça do vinho da casa
Há vinte anos, cheguei no começo da noite ao aeroporto de Bolonha, aluguei um carro e dormi na cidade. Vinha testemunhar o primeiro momento de Pedro Paulo Diniz dentro de um carro de Fórmula 1, na Forti Corsi, equipe emergente da categoria inferior, a Forti Corsi, que seu pai, Abílio Diniz, havia conseguido promover obtendo patrocínio da Parmalat - em troca da compra de panetones encalhados, postos à venda em seus supermercados de Portugal.

Eu ia contar aquela história para a revista VIP. Entrei em Bolonha já à noite e me hospedei no hotel Tre Vecchi, na Via della Indipendenza, importante artéria do comércio da cidade. Era então um 3 estrelas, com alguns quartos mais simples e baratos, e uma pequena área ao lado onde pude estacionar o carro.

Foi uma noite solitária - e maravilhosa. A cidade, naquele domingo à noite, se encontrava deserta. Caminhei sozinho pela via, sob as arcadas da cidade mais elegante que já vi, com suas cortinas verdes nas janelas retangulares e mouriscas,  os edifícios de tijolos vermelhos e terracota, as abóbadas pintadas como se as calçadas fossem igrejas.

Havia um único estabelecimento aberto, além  do hotel: o restaurante Diana, com sua fachada de vidro,  as paredes de lambris,  os candelabros de cristal. Foi uma surpresa encontrar justamente aquele lugar feliz, nobre e acolhedor.  Mais tarde, conversando com o editor de moda Fernando de Barros, que ia muito à Itália para ver os desfiles e outros compromissos da meca da moda masculina, descobri que ele adorava Bolonha pelo mesmo motivo que eu: sua elegância. E tinha também o Diana como um de seus lugares e restaurantes preferidos no mundo.

Dali, subi a ladeira até a Piazza Netuno, com sua grande estátua do deus do mar, e dobrei à esquerda na Piazza Maior, onde estão os mais belos edifícios da cidade. Sentei na escadaria de um pórtico para contemplar a praça  sozinho. Diante da catedral, de fachada incompleta, o silêncio tinha o peso dos séculos. E eu podia jurar, pela traição da memória, que ali, no centro daquela praça, se encontrava a estátua de Garibaldi.

Ainda estava escuro quando parti,  na madrugada,  em direção ao autódromo de Monteriggione, à beira do Adriático. Parei para um café na saída da cidade. O sol raiava sanguíneo e fresco quando vi Bolonha pela última vez.

Volto à cidade, tanto tempo depois, para entender o que eu sabia, o que não sabia e deixei de saber.  A estátua de Garibaldi, de fato, está na Indipendenza, em frente ao Tre Vecchi. A cidade continua elegante, mas agora, aos domingos, fervilha de vida. Nas praças,  nas vielas onde se come na rua as delícias locais, gente de toda parte manda para os fundos da memória o meu antigo silêncio. Eu não sabia que estaria aqui após escrever um romance sobre Garibaldi e sua mulher, Anita. Nem o quanto isso tudo significaria para mim.

O restaurante Diana continua o mesmo. A comida na via dei Peschieri Vecchi é muito mais barata e melhor. Mas continua para mim um abrigo acolhedor, apesar do maitre mal humorado, que parece escolher os clientes na porta. Dessa vez, não estou sozinho. Trago comigo a Mulher Desaparecida, que é  sempre elegante e por isso combina com Bolonha como se fosse parte do retrato na cidade.

Saio de Bolonha, terra de meus avós, mais uma vez. Levo a Mulher Desaparecida e com isso não serei eu desta vez a sentir falta da cidade: ela já não será a mesma sem nós. A história segue com suas transformações, mas daqui outros 20 anos, em 2037, quem ler isto poderá avaliar plenamente esta simples verdade.

Bolonha: a elegância se alinha como os astros




Um exílio para voltar

O que estamos fazendo aqui? Fuga do Brasil e da realidade? Volta súbita a um passado de esperança, ou esperança renovada?
Retirados de um país sem perspectiva, sinto-me novamente no exílio voluntário. Hoje, os exilados brasileiros não têm motivação política. Apenas cansaram de lutar inutilmente por um país que teima em reprovar, na prática, as previsões sobre seu futuro promissor. São previsões mais baseadas na riqueza natural do território explorado por estrangeiros e pelos próprios brasileiros que se instalaram no poder há gerações – e dele extraem a riqueza, como quem drena o seu sangue.
O Brasil hoje está perdido, mais perdido que nunca, sem uma liderança capaz de renovar a economia, restabelecer os bons valores, recolocar a coletividade nos trilhos. Dar pesrpectiva ao país e a seus habitantes honestos e trabalhadores, hoje apenas frustrados, exaustos de tanto sacrifício.
Na vida, no País, vi tanto esforço, e tantas vezes, apenas para tudo desmoronar ou ser desconstruído. O Brasil do Estado de Direito, da honestidade, da democracia, da estabilidade econômica, da justiça social, do exemplo de liderança para o mundo surge em espasmos – e volta a desaparecer. Tantos recomeços, tantos avanços supostos, e, de repente, não sabemos onde estamos.
A bolha de ilusão dos últimos anos explodiu de repente. Nada temos, a não ser o desnudamento das coisas como são. Pelo menos a justiça não se rendeu, e faz o seu trabalho. Mas mesmo com tantos indo para a cadeia na operação lava-jato, do governo e fora dele, não há razão para otimismo. O que aconteceu, em larga escala, é apenas reprodução do que acontece no Brasil desde a colonização portuguesa, como pude me conscientizar ao pesquisar para os livros A Conquista do Brasil e Desbravadores do Brasil.
O Brasil sempre foi isso: um largo território para ser espoliado por arrivistas e a elite nele incrustrada. Apropriaram-se dos recursos naturais e se acostumaram ao mais selvagem tratamento do povo, desde a eliminação simples do índio até a escravização e submissão da gente mais simples. Já era assim, e tudo indica que sempre será.
Vejo na Europa bastante pobreza. Em Roma, há muitos mendigos na rua. Não há aquela gente bem vestida de outros tempos, mulheres chiques de meias negras rendadas e cavalheiros em ternos Zegna. Os taxistas entraram em greve por causa do Uber. Volta e meia, uma passeata causa rebuliço na rua. Mas há a velha cultura. A educação. O orgulho. E respeito pelo ser humano.
Agora percebo o que viemos fazer aqui. Não é para esbravejar ou esperar que mudem os outros, o Brasil ou o mundo. No meu caso, é para voltar a ser o que eu era. Ganhar energia, para ter novamente a esperança: de uma vida melhor. De um mundo melhor. Ter de novo esperança no amor. No bem.
Vim para reencontrar o que gostei e gosto. Lembrar das minhas razões. Da minha identidade. Lembrar do desenho e das fontes de criação. Da vontade de escrever. Recuperar a crença na felicidade, na construção do futuro, nas ideias, ideais e sentimentos que me levam aos livros; não o fim, e sim o ponto de partida para a ação.
Venho não para o exílio, afinal. Ou venho para o que servem os exílios. Venho, como sempre, para voltar.

domingo, 5 de março de 2017

Anita e a vida ao extremo

O frontão da tumba de #anitagaribaldi no #gianicolo  em #Roma retrata a cena em que ela procura #Garibaldi entre os mortos da batalha de Curitibanos. Na realidade ela era prisioneira de guerra e, depois de ver degolados seus companheiros, conforme o uso dos gaúchos, pedira para procurar o marido no campo de batalha. Grávida, obteve o favor do general imperial. Ela estava certa de que Garibaldi não estava lá. E usou a oportunidade para fugir.

Outra cena do frontão traz Anita liderando um grupo de cavalaria. Há um célebre episódio em que ela, grávida, se lançou à frente sozinha contra o exército inimigo, muito superior em número, quando a coluna farroupilha buscava se juntar a Bento Gonçalves no sul. Para que ela não morresse, os farroupilhas,  que antes hesitavam no ataque, tiveram de avançar. Venceram a batalha, com pesadas perdas. Aquela  era Anita.


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Ao terceira cena do frontão de #Anita no #gianicolo em #Roma mostra Garibaldi carregando Anita no colo. Cercado pelo inimigo, sem poder contar com abrigo, e com a mulher grávida e doente, viveu o momento mais dramático de sua vida. Garibaldi e Anita viveram a vida no extremo - o que sugere também o extremo amor que os ligou.


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Ao voltar para a #Italia, a bordo do navio Bifronte, cujo nome ele trocou no trajeto por considerar vergonhoso, #garibaldi trouxe também sua sela, com estribos para os pés e para apoiar a lança. Hoje ela está no #museudorisorgimento, em Roma, assim como um par de calças, a boina turca e outros objetos pessoais. Levou para Itália também 60 homens da legião italiana, os "camisas vermelhas", depois de enviar na frente #Anita,  que como ele aprendeu a montar e guerrear como os gaúchos - e ganharia um lugar também na história italiana. #anitagaribaldi #romance #romancehistórico #romancebrasileiro #guerra #risorgimento

De onde saem as histórias


Daqui de Bolonha saíram meus bisavós e as histórias contadas por meu avô que deram origem ao meu primeiro #romance, #filhosdaterra. Nele eu já falava de #garibaldi, heroi de meu avô José, assim com de seu pai, Mauro.

Contava o velho José histórias do homem que desde criança mostrava sua coragem, entrava nas igrejas em pata de cavalo e revelava as atrocidades que lá se cometia: mais que unificador, o salvador da pátria. Eu herdei aquela admiração e sempre tive vontade de escrever sobre Garibaldi,  projeto que agora realizo com #anita, minha história de #anitagaribaldi,  sob a perspectiva do homem que a amou.

Reencontro #garibaldi em #Bolonha, na efígie da via della Indipendenza, e a família nos nomes pela cidade: Fiorini é uma alfaiataria elegante na Piazza Grande, Melega um mercado das delícias bolonhesas numa rua próxima. 
Caminhando, vejo gravado numa lápide que seis Fiorini e três Melega morreram por se opor ao nazi fascismo. Era para eu ter nascido aqui, se meu bisavô Mauro não tivesse sido forçado a procurar a vida no Brasil. Para cá eu volto, refazendo seus passos, e o caminho das histórias, transmitidas de pai a filho até caírem nas páginas em branco nas quais eu tento ressuscitar toda essa gente. #Anitaoromance #vemlivronovoaí

 

#Anitaoromance #vemlivronovoaí

Desenhando entre vinhedos


A Mulher desaparecida hoje corre em meio aos vinhatais de Fienil del Monte, a poucos quilômetros de Soave, onde nos hospedamos em uma casa em meio aos vinhatais. Fomos tomar café na vila pela qual passamos antes de carro, na estrada. Achamos aberto somente o bar de uma senhora afônica, chamado Deja Vu (“aqui a gente nunca entra pela primeira vez”, eu brinco).

Saímos do bar – eu na frente. Ela para por um instante, olha para mim e diz: “Você está muito style”. Poucas vezes ela me vê de casaco de couro, chapéu e cachecol. Faço cara de desdém, como sempre. E ela, com traje de ginástica, propõe ir correndo na frente para buscar o carro.

Ando sozinho pela estrada e entro na alameda de cascalhos, entre vinhedos, no vale de Ilasi, com os alpes nevados ao fundo. As parreiras estão secas e formam uma cama de galhos que sobe as encostas, pontilhadas por casas de pedra e paredes pintadas de terracota, entre janelas de madeira verde.

É a Itália de meu bisavô, que arava a terra perto daqui. (“Meu pai dizia que a terra, na Itália, é mais fácil do que no Brasil”, contava meu avô). Terra trabalhada por séculos a fio, onde piso, como se os Fiorini nunca tivessem saído daqui.

Caminho ouvindo meus passos no cascalho, em meio ao silêncio circundante. Ao lado da alameda, um ribeirão corre sobre pedras. Cruzo uma ponte sobre um rio seco, que parece levar a um mar de granito, e penso que, assim, nós (meu bisavô, o avô, minha mãe e eu) somos o rio, na parábola do tempo, de Herman Hesse, em Sidarta: a água passa, mas o rio é sempre o mesmo. Aqui estou eu, como meus antepassados, parte da correnteza que se confunde com o tempo.

Vamos ao castelo de Soave, habitado entre os anos 1000 e 1300, conquistado sucessivamente por suevos e italianos de #Veneza e #Verona. Propriedade de uma família de mecenas desde o século XIX, hoje encima galhardamente o pequeno burgo murado. Tomamos café no fim da tarde entre jovens de preto, no único bar aberto. Soave é uma cidade de turismo de fim de semana e há pouca gente e poucas lojas abertas neste final de inverno.

Vamos a Verona. Visitamos a arena romana, quando a luz da tarde já cai, pintando o céu de rosa marmóreo: homens já trabalhavam na construção do palco para as óperas, na temporada de verão.  Cruzamos a velha ponte românica sobre o Adige, visitamos a casa de Julieta, na verdade de um "Capelleti" que associaram aos Capuletto", com uma sacada iluminada sobre um pátio, como no drama de Shakespeare, e uma estátua em bronze da célebre personagem da ficção. As paredes do túnel de entrada estão cobertas de mensagens de amor. Faz frio mas ali as paredes antigas e o vaivém de gente são calorosos.

De volta a Soave, tiramos o dia seguinte para caminhar. Tomamos café ao lado da casa, diante dos vinhedos; ali eu sento numa cadeira esconjuntada para desenhar o cenário com o caderno e o pedaço de carvão que a Mulher Desaparecida me deu. Subimos a estrada de Fienil del Monte, passamos por uma bucólica igreja, com a vista para o vale. No alto do morro, duas horas de boa caminhada, um velho castelo abandonado, sombra de outros tempos, batido pelo vento e o sol límpido da tarde, é o ponto final: dali se vê todo o Vêneto, um lago lá embaixo, o sol.

Arriscamos na volta cortar a estrada sinuosa, nos perdemos, voltamos atrás. Fazemos nosso piquenique ao lado da igreja, com vista para o vale: queijo e a garrafa de vinho local que a Mulher Desaparecida toma no gargalo, entre risos, sob fachos da luz solar. Somos riso e despreocupação: não penso em outros tempos, outros dias, outras felicidades, trabalhos feitos ou por fazer. Não há passado, nem futuro, só o presente, e a mão de minha mulher, que volta e meia pelo caminho da descida encontra a minha.

Último dia em Soave. Conheço Claudio, dono do vinhedo onde nos hospedamos. Um homem de quase sessenta anos, cabelos brancos, um pouco compridos, que lhe dão o ar de uma juventude gasta. Nós o víamos ao longe, todos os dias, com um alicate de jardim na mão, podando os vinhedos. 

Pergunto como é a vida ali. A casa de Claudio é de 1800; explica que faz o que fazia seu pai. mas pode ser a última geração da família a cultivar a terra. O filho, Mattheo, estuda Direito em Verona, quer ser advogado. Ele balança a cabeça, meio frustrado. "Para que servem advogados?", ironiza. "Alguém tem de beber o vinho!", respondo. "É verdade!", ele concorda, e ri.

Nos seus 55 mil metros quadrados plantados, Claudio explica que todo setembro vende suas uvas à cooperativa: valpolicella, 12 euros o quilo, três vezes mais que soave, a uva autóctone do vale. Recebe o dinheiro dividido em cinco vezes por ano. "Dá para viver, sem luxo", diz ele.

Tem um restaurante que funciona em fins de semana, onde deixou um brasileiro cozinhando em seu lugar. "Já tenho de cuidar sozinho do vinhedo, é muito trabalho", diz. "É já  estou um pouco velho." "Mas cozinhar é uma das poucas coisas que os velhos fazem melhor", eu digo. Ele se diverte comigo.

Para ganhar um pouco mais, agora Claudio aluga 5 apartamentos na sua torre de pedra pelo airbnb. Quem cuida disso é o filho mais novo, Mattheo, que estuda Direito em Verona. Abana a cabeça. " ara que serve isso?" , lamenta, como se fosse o último a pertencer àquela terra. "Advogados são importantes", digo. "São eles que bebem o vinho!"

Claudio ri de novo. Me leva ao fundo do galpão e entrega duas garrafas de tinto sem rótulo. #Valpolicella da casa, pequena produção que ele mantém para consumo próprio.  Pergunto quanto é. "Regalo", diz ele, e sorri.

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Perspicaz como sempre, depois de duas semanas de viagem a Mulher Desaparecida observa que eu mantenho a mala arrumada, mesmo sabendo que ficaremos alguns dias. Ela se estabelece, se espalha; eu estou sempre pronto para a partida.

Só por isso, hoje deixei os sapatos e as meias jogados de qualquer jeito. Sem dúvida, este é um dos poucos lugares do mundo onde eu realmente gostaria de ficar para sempre.



sexta-feira, 3 de março de 2017

Antes da primavera

Claudio nasceu aqui e cuida das vinhas como seu pai. Mora a  quilômetros de Soave, num casa de mais de meio século entre vinhedos que vêm passando de geração em geração. Nos três dias que ali passamos, o vimos caminhando nos vinhedos, amarrando galhos e podando as videiras com o cuidado de um japonês e seus bons aí.

Nos seus 55 mil metros quadrados plantados, cultiva  valpolicella, pela qual recebe 130 euros por 100 quilos de uva - o dobro do que recebem plantadores de soave, uva autóctone do vilarejo mais próximo, à  sombra do castelo dos Scala. Habitado entre os anos 1000 e 1300, conquistado sucessivamente por suevos e italianos de Veneza e Verona, tornou-se propriedade de uma família de mecenas desde o século XIX. Hoje, como uma coroa de pedra, encima galhardamente o pequeno burgo murado.

Claudio entrega as uvas em setembro à cooperativa e recebe o dinheiro dividido em cinco vezes por ano. "Dá para viver, sem luxo", diz ele. Tem um restaurante que funciona em fins de semana, onde deixo um brasileiro cozinhando em seu lugar. "Tenho de cuidar do vinhedo,  é muito trabalho", afirma. "E já  estou um pouco velho."
"Ma i vecchi cuccinano meglio", eu digo.

Ele ri.

Claudio aluga 5 apartamentos na sua torre de pedra pelo airbnb. Quem cuida disso é o filho mais novo, Matteo, que estuda Direito em Verona. Abana a cabeça. "Para que serve isso?" , lamenta. "Advogados são importantes", digo. "São eles que bebem o vinho!"

Claudio ri de novo. Me leva ao fundo do galpão e me entrega duas garrafas de tinto sem rótulo. Valpolicella da casa, pequena produção que ele mantém para consumo próprio.  Pergunto quanto é. "Regalo", diz ele, e sorri.

Na Itália, terra de meus avós, a generosidade inunda o dia.