terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Podemos escolher o que sentimos

Certa vez, ouvi de um sábio chinês que o sentimento não tem tempo. Você pode sentir a mesma coisa que sentiu na infância, com a mesma intensidade e o realismo de quem está sentindo aquilo pela primeira vez.

Sempre pensei nisso pelo lado negativo da balança. A ideia do sábio chinês é de que você tem de resolver os conflitos do passado. Não perdoar, apenas, pró-forma, como se fosse uma concessão ao perdoado. Ao contrário do que muitos pensam, o perdão não é para quem é perdoado. É sobretudo para quem perdoa.

Ao perdoar, mudamos o significado do sentimento, para que a raiva, a tristeza,  o rancor e o ressentimento deixem de nos machucar - o que os psicólogos chamam de "re-significação".

Se você não resolve sentimentos conflituosos do passado, esse passivo de sentimentos venenosos vai  se acumulando. A pessoa fica rancorosa, amargurada, e até doente.

Perdoar significa perder essa carga ruim que vamos acumulando quando não resolvemos sentimentos negativos que vão surgindo ao longo da vida. Perdoar deixa quem perdoa mais leve. Você esquece, deixa de sentir. E isso traz saúde.

Há também o outro lado. Se o sentimento não morre, assim também é o amor. Você pode amar uma pessoa com quem viveu há muito tempo atrás. O sentimento vem, volta, parece que renasce. Mas é que ele nunca saiu de lá.

Uma história de amor não vai embora. A menos que você a apague. Mas, nesse caso, talvez fosse melhor não apagar. Todo amor é algo para se lembrar.

O coração é grande. Quem teve mais de um filho sabe como é possível amar muito a mais que uma pessoa e da mesma forma. Cabe muita gente num só coração. Porque com o amor romântico seria diferente?

Não se apaga um antigo amor. Mas podemos lidar com ele também de forma diferente. Para poder seguir adiante. para mudar de vida. Basta re-significá-lo.

Todas as pessoas da sua vida ficam com o seu lugar. Na tapeçaria dos sentimentos, ajudam a formar a trama de quem somos. Há belos tapetes de um só fio. Há tramas com fios e cores diferentes e que rendem desenhos complexos. Todos podem ser belos.

Um homem é quem ele nasce, o que ele aprende, mais a soma de suas experiências. Podemos escolher também o que sentimos. Para nos aproximar dos sábios chineses, de sabedoria tão grande quanto seus bigodes proverbiais.


A Conquista do Brasil nos lembra de conquistar o mundo

Lançado pela editora Planeta de Portugal em outubro passado, A Conquista do Brasil segue com velas enfunadas em águas portuguesas. É um prazer estar na mesma editora portuguesa que tem em seu catálogo autores brasileiros como Lya Luft, Edney Silvestre e Fernando Morais. Grande editora também em Portugal, possui um vasto portfólio, que vai de ficcionistas tão diferentes quanto Jo Nesbo, Carlos Ruiz Zafón e Rick Riodan a personalidades sagradas ou consagradas como Nelson Mandela e o Papa Francisco.
A capa da edição portuguesa

Quando estive em Lisboa, na volta de uma feira do livro em Frankfurt, me dei conta de como era despropositado Portugal ter sido o último país da Europa que conheci. Distante no extremo da península, é uma Europa isolada e única, onde, estranhamente, se falava português.

Eu me sentia curiosamente em casa. A arquitetura lembrava o Brasil colônia: aquelas janelas retangulares, que em Portugal são de pedra branca e no Brasil, onde não havia pedra igual, se utilizou a madeira brasileira,  moldou o jeito de morar e ser do colonizador e nos deu uma herança cultural única no mundo.

Sobretudo, vi em Lisboa algo da educação que recebi de família. Os portugueses são tão cuidadosos que o ônibus anuncia a parada a cada minuto. "Dois minutos para a estação tal... Um minuto para a estação tal... Estação tal".

Os portugueses são europeus no sentido clássico da palavra, educados, cultos e discretos. E seu vinho e sua cozinha são tão familiares quanto deliciosos. Assim como na Itália, eu podia entrar em qualquer restaurante e escolher o prato correndo o dedo no cardápio de olhos fechados.

A Conquista do Brasil me mostrou como esse antigo elo ainda é profundo. Ele não está no passado. Está no dia a dia, no sangue, nos hábitos. Em alguns vícios, também. É uma conexão que nos interessa. Pode nos ajudar a compreender a nós mesmos, e poderia nos ajudar a crescer, a nos lançar também ao mundo, com as caravelas contemporâneas.

O Brasil vive muito preso em si mesmo, tentando resolver sempre as mesmas questões, sem olhar para fora. Temos de ser mais ousados, mais conquistadores, como os antepassados que aportaram nas praias brasileiras, afrontando tantos perigos. O Brasil precisa ser maior. Só assim será melhor também aqui dentro. Para isso, é preciso antes de mais nada querer conquistar o mundo. E atravessar o mar.



A tragédia brasileira


A palavra "tragédia" vem do seu original grego, trag-oidos, que quer dizer "o canto do bode". Isto porque, na Grécia antiga, o teatro saiu das antigas festas, onde os participantes cantavam e dançavam fantasiados de sátiros, homens com pernas peludas, patas e chifres de bode, símbolo masculino da depravação. Até que Téspis teve a idéia de colocar um "ator" para dialogar com o coro. Assim surgiu o teatro, que os grandes dramaturgos gregos como Ésquilo carregaram com as máscaras e conteúdo dramáticos. Daí a tragédia ganhou a conotação de catástrofe humana, no sentido mais amplo, como a entendemos agora.

Tudo isso para dizer que 2016 foi o ano de glória da tragédia brasileira. Como a tragédia grega, começou como festa: a lambança patrocinada pelo PT, seja com a distribuição descontrolada de benefícios à população carente, gerando uma bolha econômica de estouro previsível, seja com o saque puro e simples do erário para encher a burra do partido, de seus associados e um grupo seleto de empresários que, assim, acabaram todos atirando no próprio pé.

O conjunto da obra resultou na bancarrota do Estado brasileiro e na geração da crise que contabilizou já este ano cerca de 13 milhões de desempregados, para ficar no número até agora quantificável. Enquanto o povo estava satisfeito com com sua parte do butim, o governo corrupto continuou popular. Agora, na crise absoluta, os brasileiros vibram cada vez que vai um para a cadeia. Mas não há o que comemorar, nem como vingança.

A conta gerada pelos inconsequentes vai levar tempo para pagar. O governo do PT caiu, mas a tragédia não se encerrou aí, porque caiu o PT, mas ficaram os seus sócios. Num governo que em um breve tempo já teve um bom pedaço de seu ministério defenestrado também por corrupção, o novo presidente Michel Temer carrega as denúncias que pesam contra ele e seu partido, o ônus do desastre financeiro deixado pela antecessora e a falta de credibilidade de quem chegou ao poder no mesmo navio cujo naufrágio ajudou a patrocinar.

Parece outro governo, mas é apenas o monstro cuspido de dentro do antigo monstro. A tragédia brasileira promete ser duradoura. As reformas levadas adiante por Temer são muito questionáveis em todos os sentidos. Quer se reformar a previdência, jogando a conta para contribuinte, mas se escamoteia o fato de que o dinheiro da conta social é usado para tapar outros buracos. O teto nos gastos, a chamada PEC, não parece ser a solução para impor a disciplina fiscal.

Por fim, é verdade que a Justiça afinal começou a fazer seu trabalho e passou a colocar corruptos e corruptores na cadeia, mas até agora não existe nenhuma iniciativa para normatizar os financiamentos de campanha e reconstruir as instituições onde já se provaram espúrias.

A tendência é a paralisação do país em todos os sentidos, algo grave num país já abalroado seriamente pela crise.

Nem mesmo eleições diretas, que poderiam ser convocadas em caso de impedimento do atual presidente, parecem uma solução útil neste momento conturbado. Não existe no cenário uma liderança capaz de colocar o Brasil nos trilhos. Os caciques do PSDB, o partido de oposição, também estão em xeque, acusados de financimento escuso de campanha. Sobretudo, não existe um programa sólido para a reconstrução. Que aponte não apenas o corte e limitação de gastos, como redefina o papel do Estado brasileiro e volte a dar oxigênio para o nosso destrambelhado capitalismo.

A redefinição do Estado que se pede é orientadora do futuro: um governo que seja social de fato, investindo em educação, saúde e segurança nos seus três níveis, federal, estadual e municipal. Uma democracia de mãos mais limpas, com transparência na origem e finalidade do dinheiro, e que inviabilize a prática de financiar candidatos com o próprio dinheiro público que eles repassam a seus financiadores privados. O círculo vicioso que perpetua no poder a parcela mais retrógrada da elite brasileira.

E isso tem de ser feito num clima de reconstrução. É preciso um grande líder para realizar uma tarefa que, agora, quando se começa tarde demais, se tornou hercúlea.

Tragédias por definição sempre terminam mal e sempre podem ir mais fundo. Elas existem desde a Grécia antiga porque o espírito trágico está no próprio espírito humano. Os autores da festança estão indo para a cadeia, mas as consequências trágicas dos seus ruinosos interesses são para todos nós. Nossa é, portanto, a tarefa da reconstrução. Que venha 2017.