sexta-feira, 24 de abril de 2015

Reler o Brasil sem preconceitos

Na releitura da história brasileira, em que podemos ver claramente o DNA do Brasil, aquela matéria celular da qual nos formamos, minha maior dificuldade foi me despir da moral e da ética moderna, para emitir julgamentos sobre personagens que, muitas vezes, podem parecer execráveis ou incompreensíveis pelos códigos de hoje.

A história do Brasil está recheada de personagens como o padre Manuel da Nóbrega, que em suas cartas chamava os índios de "negros"; o padre Anchieta, o santo brasileiro, que dizia que o problema do índio no Brasil só seria resolvido "pela espada e a vara de ferro"; ou mesmo os índios canibais: Cunhambebe, por exemplo, dizia que podia comer a própria espécie porque na realidade era "um jaguar".

Procurei realizar um esforço antropológico, no sentido contemporâneo da ciência, de entender o outro despido de preconceitos. O tempo fez mudar muitos conceitos: o mameluco, por exemplo, que hoje é visto como uma categorização racista, naquela época era um conceito elogioso: designava os guerreiros respeitados, no caso os capitães de mato paulistas, descendentes de portugueses e índios. O termo vinha dos combates nas Índias Orientais, e referia-se aos generais valorosos que os portugueses enfrentavam nas batalhas contra os mouros, uma casta belicosa que mostrava seu valor nas frebets de batalha.

Na formação do Brasil estão muitos dos elementos que combatemos ainda hoje, a começar pelos governantes malabaristas, que tinham poderes para dividir a terra, e transferiam propriedades para "laranjas", que depois as retransmitiam de volta, apenas para contornar a lei que os impedia de beneficiar a si mesmos.

É difícil separar o que era o "normal" da época, como a implicação racial nos escritos de Nóbrega, para quem o "negro" era todo mundo menos o europeu caucasiano, e empregava o mesmo termo para os mouros, do que já era proibido ou antiético. É difícil, também, entender a necessidade do genocídio dos índios, que no entanto não podem ser vistos como vítimas de um massacre: eram uma sociedade que não sabia viver sem guerra, já havia dizimado os ocupantes anteriores da terra, e encontrou um inimigo mais forte.

O ritual do canibalismo e a guerra permanente fazias tão parte de suas regras consideradas naturais quanto para nós é hoje o Estado de Direito. E os jesuítas enxergaram isso claramente, assim como o fato de que, se não podiam catequizar aquela gente, não havia outra saída para salvar a colônia nascente (e a fé cristã) do que eliminar toda aquela gente. Isso implicava no massacre de velhos, mulheres e crianças, uma erradicação cultural comparável ao massacre indígena na América espanhola.

A Conquista do Brasil convida a uma revisão geral, não apenas da história como de nossos conceitos diante da História. Mostra que a face que nós brasileiros gostamos de mostrar é um tanto ilusória; o país do "carnaval, do samba e do futebol" esconde um espírito beligerante, selvagem e impiedoso que está na origem da formação do nosso país. É mais fácil entender o que acontece na política e na sociedade brasileira depois que compreendemos e aceitamos esse DNA. E isso nos dá, também, mais instrumentos para melhorá-lo.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Que país é este?



Por que ler A Conquista do Brasil

O jornalista Laurentino Gomes, best seller com sua série de livros de história, que aceitou gentilmente prefaciar o meu próximo livro, Conqyista do Brasil, escreveu um elogio tão generoso quanto surpreendente: admirou-se da "invejável capacidade de pesquisa" que o livro revela.

Surpreendente porque, na realidade, a pesquisa hoje é o mais fácil de se fazer, com todos os inéditos recursos que a a internet oferece. Um dos grandes trunfos do livro, porém, é mesmo esse. Hoje se tem acesso mais fácil a todos os documentos originais da história do Brasil, que é ricamente documentada por viajantes, aventureiros e sobretudo os jesuítas. Não é preciso mais ir á torre do Tombo, em Portugal, para levantar documentos, ou recuperar edições de livros de história que já não são publicados há muito tempo.

Pela dificuldade de pesquisa, até hoje a história do Brasil é baseada no trabalho de historiadores do final do Século XIX e início do Século XX, como Capistrano de Abreu. Tudo o que sabemos de história, incluindo o que se ensina nas escolas, é baseado no trabalho de historiadores para quem o Segundo Império ainda era coisa recente. Por isso, meu maior desafio foi me despir dos preconceitos criados pelo que aprendi na escola e nos livros para refazer a trajetória do Brasil desde seu início. E tentar entender o nosso DNA, aquilo que está na origem de tudo, e nos influencia até hoje.

O resultado foi surpreende. Descobri como sabemos tão pouco do Brasil. A Conquista do Brasil é um esforço para entender a época com seus próprios valores, a começar pelos índios, que não eram simples vitimas nem meros canibais. E também os portugueses, como Manoel da Nóbrega, que chamava os índios de "negros", e José dde Anchieta, o santo brasileiro, que em suas cartas escreveu que o problema do índio no Brasil se resolvia "coma espada ou a vara de ferro".

A necessidade de construção de uma nação unificada num extenso território não se deu pela propalada "cordialidade' do brasileiro. Foi um processo de força, que envolveu uma guerra e o emprego violento da força para a construção de uma um poder unificado e hegemônico dividido entre a corte portuguesa e a Inquisição, representada pelos jesuítas no Brasil.

Daí sai uma história contemporânea do Brasil, no sentido de ser mais realista, menos idealizada e menos presa á necessidade de construção dessa identidade nacional a partir de uma raiz portuguesa. Mostra o lado cruel, perverso, às vezes trágico da história brasileira e personagens de carne e osso, no lugar das velhas pinturas românticas recheadas de herois e seres idealizados.

Em a Conquista do Brasil está o DNA deste país, com gente ambiciosa, ousada, às vezes sanguinária. Nesse DNA entra lago do índio rebelde, que não conhece a subordinação, e a cobiça predadora do português degredado. O Brasil ainda está fincado na antiga colônia da qual seu "pacificador", o governador-geral Mem de Sá, se queixava. "lembre Sua Alteza de que povoou esta colônia de degredados malfeitores que mais mereciam a pena de morte", dizia ele, ainda no primeiro século depois da viagem de Cabral. E pedia a El-Rei que, se quisesse fazer do Brasil algo realmente próspero, que lhe mandasse "homens de bem".

Você conhece realmente este país?