terça-feira, 13 de janeiro de 2015

As fotos perdidas de uma grande aventura

Em 2005, publiquei pela editora Globo o romance Campo de Estrelas, em que narro de forma ficcionada uma viagem que fiz com meu pai Alipio a Machu Picchu, por terra, percorrendo o legendário caminho que incluía o Trem da Morte e outras aventuras. Eu tinha dezesseis anos de idade e as memórias dessa viagem substituíram outra viagem que, no livro, planejávamos fazer - o caminho de Santiago de Compostela.

Para os leitores desse romance, que tem muitos aficcionados, uma revelação, surpresa também para mim. No romance, como aconteceu de fato, as mochilas dos personagem são roubadas no caminho de volta, no quarto do hotel em Santa Cruz de la Sierra. Com elas, vão-se também os rolos de filme que, além dos registros de viagem, confirmariam a existência do incrível personagem, misto de mendigo e messias, trajado com trapos e um capacete de desbravador espanhol, apelidado de Homem de Lata. (O Homem de Lata existiu. Nós o vimos uma única vez, num bar em La Paz, onde entrou com um rei).

Remexendo nos meus arquivos de imagem, copiadas de algum antigo CD, junto com outro material, surgiram quatro fotos dessa viagem. Creio que estavam no rolo da câmera fotográfica (naquele tempo um acetato), que meu pai levava consigo, enquanto o ladrão surrupiava nossas coisas no hotel. Isso deve ser sido copiado com outras fotos e ficou perdido no meu arquivo virtual.



Todas as imagens são de um trecho da viagem, justamente aquele em que o taxista nos abandonou em meio ao deserto do altiplano, com outras duas brasileiras que diviam conosco o carro e o custo do trajeto. O homem receava ser interceptado por grevistas que segundo se dizia tinham fechado a estrada, e decidiu voltar a La Paz, rompendo o combinado, e levando o dinheiro, pago adiantado.

Caminhamos todo o dia no deserto, no clima incômodo do frio andino, porém sob o sol implacável, ainda mais forte por conta do ar rarefeito. Salvos por um caminhão do exército em algum ponto entre La Paz e a fronteira com o Peru, atravessamos o lago Titicaca e alcançamos, à noite, a pequena, salvadora e fanstasmagórica cidade de Copacabana.

Numa das fotos, feita por meu pai, estou eu com as brasileiras, depois de descer do táxi, com as bagagens ao chão. Eu e meu pai preferimos encarar o deserto a, como elas, voltar a La Paz, onde não havia condução, por causa da greve. Na Bolívia, ainda mais naquele tempo, se avançava como possível, porque não havia o que chamamos de normalidade.



Nas outras fotos, o belo, árido e implacável cenário do altiplano, com detalhes por vezes bizarros. O pequeno pueblo é aquele em que uma chola nos salvou da fome, oferecendo um pedaço de queijo de cabra impregnado de terra que permaneceu na memória gastronômica como a melhor coisa que já comi, por pior, mais suja e nauseante que de fato fosse.



Para quem não leu o romance, ele pode ser encontrado em formato digital, no link abaixo. A versão impressa pode ser encontrada nos sites das livrarias, mas, ah, vai ficando tão rara quanto as fotos.

http://www.amazon.com.br/Campo-de-Estrelas-ebook/dp/B00EDXV2S4/ref=sr_1_2?s=digital-text&ie=UTF8&qid=1376421275&sr=1-2&keywords=thales+guaracy

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

O Santo Sátiro e os homens de seis dedos

Vasculhando arquivos de imagem achei por acaso fotos de uma viagem que estava tão esquecida quanto as pessoas que retratava. Quando eu tinha 16 anos, meu pai, Alipio, me convidou para uma aventura: soubera que na barra do Rio Una, além de Peruíbe, havia um povoado de espíritas isolados do mundo por 50 anos. E resolvemos encontrá-los e contar sua história.

Como todas as aventuras em que eu e meu pai nos metemos, a viagem foi precedida de muitas elocubrações e pouca preparação. Saímos de São Paulo no meio da noite e chegamos a Peruíbe ainda de madrugada. Ali, numa pequena vila de pescadores, instalada no triângulo entre o rio e o mar, ficamos sabendo que o rio Una era conhecido pelos locais como Rio dos Espíritos, em função da gente que vivia rio acima. E que eles não gostavam muito de ir lá.

Com a ajuda do então secretário municipal de Peruíbe, um coronel do exército chamado Rodolfo Petená, imponente e folclórica figura local, encontramos dois barqueiros dispostos a nos levar. Por Petená, ficamos sabendo um pouco mais sobre os discípulos de Kardec que resolveram se instalar no meio do mato, naquela imensa área pertencente à Nuclebras, onde se pretendia instalar a terceira usina nuclear brasileira, detida por ação do então governador de São Paulo, Franco Montoro. Com o fechamento de toda aquela área para a construção da futura usina, ela acabara preservada, assim como seus rarefeitos habitantes.

E quem eram eles? O líder espiritual do grupo, segundo Petená, era o Santo Sátiro; com ele moravam a mulher, os filhos, a nora e netos. E havia uma comunidade de negros mutantes, com seis dedos nas mãos e nos pés, conhecidos como os irmãos Maria.



Tomamos o barco pelo Rio dos Espíritos, oficialmente Rio Una, ou Rio Negro, chamado assim pela cor, apesar da água puríssima. Era preciso conhecer bem a foz, cheia de ilhas, muito fácil de se perder. Seis horas na lancha metálica, coleando rio adento, naquela imensa selva isolada de um lado pelo mar e de outro por uma serra semicircular. Conosco, os dois barqueiros e o próprio Petená (de branco, na foto).

Chegamos, enfim, ao lugar. O Santo Sátiro, cujo verdadeiro nome era Sathyro, assim, com Y, tinha em sua casa uma grande mesa coberta por imagens de santos, flores e velas, onde realizava suas sessões espirituais. Contou sua história, originada no preconceito que levara seu pai a empurrar toda a família para aquele lugar. Conhecemos seu filho, que tocava uma viola provençal, fabricada rusticamente. Seus hábitos eram o de gente que não via o resto do mundo há muito. Falavam um português arcaico e sobreviviam numa economia de subsistência, em que tudo, absolutamente tudo, era feito ali. 

Meu pai fez o Santo Sátiro sentar na beira de um igarapé com uma bíblia na mão e fez uma série de fotos das quais infelizmente a maior parte se perdeu. O que resta está aqui.





Mais além, no rio, encontramos os irmãos Maria. Tinham, de fato, o sinal de um sexto dedo nas mãos e no pés, resultado dos casamentos endogâmicos, única saída para um grupo negro isolado no meio da mata, em que irmãos se casavam com irmãos. Havia uma escola, uma pequena casa de tábua na qual se chegava de barco, e se mostraram alegres e receptivos. Ainda assim, havia ali, e em todo aquele rio, algo que me dava calafrios.



Voltamos com aquele material e fortes impressões. A reportagem nunca foi publicada. Creio que interessava mais a experiência, mais uma das nossas estranhas jornadas, do que realmente escrever ou vender a reportagem. Ficou na minha cabeça, porém, a ideia de ainda escrever sobre o Santo Sátiro, os homens de seis dedos e alguns calafrios, num romance chamado O Rio dos Espíritos.

Tantos livros, tão pouco tempo. Mas eu vi.



quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Contra o tempo

Aceitar o tempo, viver o presente, buscar a sabedoria: há maneiras de reverter o relógio

Lembro de uma festa de criança, quando tinha seis anos de idade, em que resolvi nunca mais comemorar meu aniversário. Tinha medo de que ninguém aparecesse na festa, ou algo assim; é tão importante o carinho das pessoas que gente como que passa a ter medo delas, ou da falta delas.

Nunca me dei muito bem com o tempo. Nunca penso nele, o que é também uma maneira de pensar nele o tempo todo. Isto perpassa minha própria atividade: a literatura, assim como a reportagem, para mim sempre sempre foi uma maneira de tentar congelar as horas. Escrever é lutar contra o tempo. Destinada à derrota, como tudo o que se volta contra esse dragão imortal.

O tempo leva a vida e nada do que se possa escrever é grande, belo e palpitante como ela. Nada do que se escreve pode reproduzir ou substituir o ser humano. Ideias, memórias, sentimentos lançados no papel são apenas uma mensagem distante, resto do que somos, como pinturas rupestres, vasos desencavados na terra e outros vestígios arqueológicos.

Sorte de quem tem a oportunidade de dar e criar a vida, por meio de filhos: a nossa única forma verdadeira de continuidade. Mesmo com filhos, a missão mais difícil de todas é aceitar o tempo. É difícil envelhecer sem angústia, com dignidade.

Não se pode viver pensando no tempo, porque isto traz ao dia a dia a lembrança da morte. Para viver uma vida plena, não podemos sofrer antecipadamente com sua perda. A vida se gasta e não podemos ter dó de gastá-la, assim como quem planta bons frutos não pode ter pena de comê-los.

É preciso aproveitar o tempo, nosso único bem, aquele com que podemos fazer o bem aos outros, e deixar assim no mundo algum patrimônio. Muitos vêem a linha da vida como ascensão na juventude, apogeu na meia idade e a velhice como o declínio. Mas o homem só envelhece quando deixa de fazer o que gosta e de fazer o bem ao outro. Quem faz o que gosta e beneficia o próximo não tem razão para sentir a idade, nem o tempo: desfruta da vida sempre. Um homem com mais idade sempre poderá pensar que há muitos jovens que morrerão mais cedo de que ele.

A vida se torna uma linha ascendente quando o que buscamos da existência é a sabedoria e a felicidade, pois elas estão sempre mais adiante. Quem se compraz com suas realizações, cultiva a vida com outras pessoas e busca a paz espiritual se aproxima da sabedoria; para isso, o tempo nos favorece, pois esse é um trabalho progressivo e permanente.

Um homem pode ser jovem e já parecer um ancião, pois a velhice é o estado de espírito de quem se deixa abater pela finitude da vida. Da mesma forma, um homem em idade avançada pode rejuvenescer se encontrar motivação e o frescor da antiga juventude em suas realizações, descobertas e nos laços afetivos.

Ele também rejuvenesce de corpo e alma se mantém acesos seus sonhos e ideais e busca atingir sempre um grau maior de sabedoria. Já quem tem medo da morte não é jovem nem é velho, pois não vive.

A sabedoria é um bem adquirido, mas jamais alcançado na sua plenitude. Ela é um desafio permanente para o homem e um estímulo para que ele olhe sempre à frente. Conquistá-la não depende de vigor físico, de forma que o homem, quando envelhece, está ainda mais preparado para dedicar-se a ela e encontrar nova função no mundo, que é iluminar aqueles que o seguem logo atrás.

Tantas reflexões sobre o tempo, e o tempo não existe. O que vale é apenas o presente: ele iguala os seres humanos na mesma idade. Um jovem pode morrer mais cedo que um ancião e para ele a juventude terá sido sua velhice, enquanto para muitos anciãos a velhice pode ser sua juventude.

Sim, o tempo não existe; é tudo, e simultaneamente nada. O gênio cabeludo que disse que o tempo é relativo estava enganado. O tempo é natureza e a natureza é absoluta; a relatividade é só do homem e seus conceitos.