terça-feira, 29 de abril de 2014

Mem de Sá e os malfeitores do Guarujá



Nos últimos meses, venho trabalhando na redação de um livro de história do Brasil, dos primeiros viajantes até a fundação do Rio de Janeiro. Confesso que fiquei surpreso com minha própria ignorância da história brasileira e me sinto como se estivesse entendendo nosso país pela primeira vez: sua natureza, suas raízes e os problemas que vêm de longe.

No final da década de 1.550, o então governador-geral da colônia do Brasil, o português Mêm de Sá, insistia com a Corte portuguesa para que lhe enviasse duas coisas: bons administradores, porque as capitanias eram um desastre gerencial, e, sobretudo, homens de bem. "Não esqueça Vossa Alteza que esta terra foi povoada com degradados e malfeitores, que mais mereciam morrer", escreveu ele.

Quatrocentos anos depois, o Brasil ainda padece dos mesmos problemas: precisa de administradores e, acima de tudo, homens de bem. Herdeiro direto dos tupinambás com os degredados portugueses, o mameluco brasileiro continua achando que pode resolver as coisas de qualquer jeito, desconhecendo a lei e as normas da civilidade só por estar em terra tropical. Reclama da corrupção e da incompetência dos políticos, mas esquece que eles saíram do meio do povo que os elegeu. E continuamos nos comportando como bárbaros selvagens e seminus, sem lei nem rei.

Vejam o caso que circulou fartamente estes dias no Facebook: o casal de turistas que, depois de pichar uma pedra com as letras ABC, foi atacado por circunstantes que os picharam em represália.

Foi extraordinário ver como, em vez de chamar a polícia, para que pudesse ser aplicada a lei contra pichação, foi praticada contra o casal uma violência muito maior. Pior ainda, o Facebook agora propaga o episódio por gente que o viu como uma boa "lição" nos malfeitores, ganhando apoio entre todos aqueles que não pensaram bem no assunto.

A violência não se justifica em hipótese alguma. É preciso que fique bem claro: o cidadão que banca o justiceiro se torna também um malfeitor. Pode ser que a polícia seja falha, como o executivo falha, o legislativo falha, e tudo de vez em quando falha, mas o que é preciso é fazer o sistema funcionar, e não transformar o país em barbárie, entregando-o aos pequenos justiceiros do dia a dia. Quando o cidadão acha que pode passar por cima da lei, manifestação política pacífica e legítima descamba para a baderna, a denúncia vira difamação e a opinião vira intolerância.

Existe um conjunto de atributos inerentes à civilidade: a educação, o respeito ao próximo, a tolerância, a observância da lei e o uso dos canais apropriados para sua aplicação. Aqueles que estão a elogiar o comportamento dos "vingadores" do Guarujá não percebem que estão apenas alimentando a violência que se espraia na sociedade, quando deviam estar fazendo o contrário.

O que se espera de gente ilustrada é outra coisa: qualquer barbarismo devia causar horror. O comportamento serve para dar um bom exemplo. A humilhação dos transgressores é moral. E, quando for o caso de outra pena, que a lei seja aplicada na forma prevista pela própria lei. Diria Mem de Sá que a conduta de cada um é que constrói um país civilizado. E que ainda estamos precisando, no Brasil, dos homens de bem.

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