quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A pérola da sabedoria


Existem coisas que podemos até compreender na juventude, mas que só se transformam em conhecimento com a experiência. Não basta saber; é preciso sentir, passar por aquilo, para que o conhecimento se torne profundo e verdadeiro. Por isso, a sabedoria não é apenas informação. É informação curtida pela maturidade.

Quem passa por experiências fortes adquire mais conhecimento do que aquele que assiste as coisas de fora. Essa é a grande ironia de quem morre jovem. A sabedoria não vem do pensamento, e sim do interesse e exercício da vida. E a quem não se dá tempo, a sabedoria é negada.

Não há como ser sábio sem passar pelo caminho pedregoso da experiência. Esses são como diz Salomão no Livro da Sabedoria: fruto da vaidade. Podem enganar a si mesmos, mas não enganam aos outros. Vivem angustiados.

Para quê a sabedoria? Para ter amor, paz e tranquilidade. A sabedoria não consiste num conhecimento superior, mas em dotar o ser humano daquela atitude repleta de dignidade de compreender o incompreensível, aceitar o inaceitável e enfrentar em paz de espírito as grandes dores e tribulações da vida.

Aprendemos com o tempo que há males irremediáveis e a melhor postura contra o irremediável é aceitá-lo com tranquilidade. Quem não aceita a dor, a morte e os fatos inevitavelmente duros que virão, dificilmente dormirá direito.

A sabedoria traz coragem. Aprendemos com ela que coragem é ignorar o medo, não por realmente ignorá-lo, mas por defendermos uma causa maior. Aquele que tem um motivo superior não se deixa barrar por qualquer dificuldade, real ou imaginária. Quando se defende um amor, ou princípios como o da Justiça, ou a Liberdade, não há como ter medo.

Sabedoria traduz coragem. Quando não receamos a morte, ou a aceitamos melhor, deixa de existir a intranquilidade que nos leva a criar a ilusão de movimento, trocar de vida, de casa, de pensamento. Todas essas são formas de alheiamento. A sabedoria nos ajuda a encontrar nosso lugar e ficar nele.

Se a sabedoria vem da experiência, não do pensamento, para alcançá-la é preciso viver aprendendo, não pensando. O homem sábio pensa menos e faz mais. Já o pensador é um ser humano mergulhado num eterno mar de dúvidas. Não se chega à sabedoria, à coragem ou mesmo à inteligência com o pensamento. Ela não depende de inteligência. Pede muito mais equilíbrio emocional e paz no coração.

À primeira vista, o sábio à primeira vista parece um conformado. Já não reage com o impulso, o vigor e a testosterona da juventude. Mas ele não é covarde ou insensível. Ele não protege a paz, a sua e a dos outros, com a indiferença e a omissão. Isso seria a covardia. O sábio protege a paz com a serenidade. Ele age, mas sem alterar-se. Por isso, age sem precipitação.

O caminho da sabedoria é longo e tem várias vias. Gosto muito da sabedoria oriental, especialmente a fundada na cultura chinesa, a mais antiga do mundo a sobreviver na sociedade contemporânea. Dizem que os chineses de hoje não respeitam tanto a sua cultura e sabem pouco sobre suas tradições. A civilização contemporânea, de cujos progressos materiais eles começam a desfrutar em larga escala, corrompe por causa do consumismo, da ganância, da pressa. Ressalta o que o ser humano tem de pior. Até a milenar cultura chinesa vem sucumbindo a isto.

A sabedoria procura trazer o que temos de melhor. Hoje ela pode ser encontrada muito mais no campo, nas montanhas, entre gente simples, porque é onde o ser humano não se deixa envolver por todas as distrações que tiram sua atenção das necessidades básicas da vida, da origem das coisas e de nós mesmos.

A sabedoria tem sempre um sentido de volta à simplicidade, às origens, aos ancestrais. Está fincada no tempo, é construída não pela dedução racional, mas pela experiência humana.

Essa é a diferença entre o homem e o garoto. O garoto pode ter informação sobre tudo, mas o homem já viveu tudo. Por isso é mais firme, mais convicto, mais homem. Aquele que respeita o passado e aprende as lições de seus ancestrais, vivendo pela sabedoria por eles construída, encontra mais cedo seu lugar no mundo e se torna sábio mais rapidamente.

Existe um ditado chinês segundo o qual os filhos nascem para ensinar os pais. Seriam como guias criados por nós mesmos, para nós mesmos. Porém, a verdade é que nós não aprendemos com nossos filhos. Nós os educamos e guiamos. Ocorre que eles são sempre um difícil desafio da vida e para cuidar deles e encaminhá-los temos de nos esforçar para ser melhores.

os filhos também nos lembram das virtudes da pureza e da inocência. Todos têm dentro de si a dua infância. Isso nos devolve humanidade.

Com a sabedoria, o homem rejuvenesce. Não por voltar no tempo, mas por ganhar tempo – quanto mais longe da velhice ficamos, mais jovens nos tornamos. Aquele que sabe do que gosta não desperdiça tempo e energia fazendo outras coisas. Aprecia melhor o que está à sua volta, sobretudo a companhia das outras pessoas. É gentil e entende que a pressa não nos leva mais rápido a lugar algum. Conhece seu próprio valor, mesmo quando colocado em dúvida pelos outros, e não se deixa abalar. Aconselha mais do que é aconselhado.

O homem sábio não se deixa enganar pelas aparências nem pelas diferenças. Agradece ao que passa despercebido diariamente a quem vive perdido em tribulações: o calor do sol, o ar fresco da manhã, as estrelas da noite. Ao agradecer o que lhe dá a vida, dá mais valor à natureza e à própria vida. E a vida o premia com mais vida.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

A política e a máfia


Na reunião dos jurados do 59o. Esso, entre os quais eu me encontrava, não houve a menor divergência sobre qual reportagem levaria o prêmio máximo. O Esso de Jornalismo de 2014 ficou com Leonencio Nossa Jr, de O Estado de S. Paulo, que publicou em 13/10/2013 a matéria Sangue Político, resultado visível de uma longa apuração, da qual surge um retrato macabro da política brasileira.

De acordo com o levantamento feito pelo repórter, um político morre no Brasil a cada 11 dias, se a média for tomada desde 1.979. Foram 1.133 mortes de representantes públicos eleitos pelo menos uma vez nesse período. Nos últimos anos, o número de mortes aumentou. Um mapa das incidências mostra ainda que, ao contrário do que ocorria no passado, quando a lei parecia faltar somente nos rincões do sertão brasileiro, os crimes envolvendo políticos se mostram bastante distribuídos por todo o país, incluindo grandes centros urbanos de Estados como Rio, Minas e São Paulo.

Os assassinatos de políticos se devem, em alguns casos, a rixas locais que poderiam ser classificadas quase como crimes passionais. Porém, fica claro que a maior parte desses crimes é o resultado mais visível e extremo de disputas por poder e sobretudo dinheiro - acertos de contas, conquista de território e consequência de obscuras negociatas. O que a reportagem não diz, mas concluímos a partir de sua leitura, é que a política no Brasil vem sendo tomada pelas variedades da máfia - incluindo no que diz respeito aos métodos que ela utiliza para resolver conflitos de interesse.

O levantamento do Leonencio aponta para a maioria dos partidos, sem distinção. Deixa claro que mortos e mandantes não estão longe dos políticos de Brasília. E, dado mais estarrecedor, revela que cerca de 70% dos crimes políticos nem sequer são investigados pelo Ministério Público. Não parece ser um caso de incapacidade, ou excesso de trabalho. Em geral, os crimes, pela própria notoriedade dos envolvidos, dispararia o processo de investigação. Se isso não ocorre, é certamente porque quem teria o trabalho de investigar se sente inseguro ou impotente o bastante para não querer mexer com o assunto. A máfia na política é tão violenta e influente que obstroi ou intimida o trabalho da Justiça.

O júri do Esso decidiu destacar esta reportagem em especial devido ao entendimento de que, sem soluções para a política brasileira, infestada pelo crime nas suas mais variadas formas, será difícil resolver qualquer outro problema do país de maneira eficaz, seja de segurança, saúde e educação. Enquanto o dinheiro público for objeto de disputa de organizações criminosas, boa parte dele deixará de ser alocada realmente no bem público.

É preciso fazer retornar a lei ao seio do Estado, bem como restaurar o espírito do servidor público, dentro do jogo democrático, de forma pacífica e civilizada. O Brasil não pode se tornar uma terra de bandoleiros que se impõem pela intimidação e a simbiose com o poder constituído. As instituições estão aí para prevalecer sobre o crime - a começar pela própria imprensa, que vai fazendo o seu trabalho.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

A imprensa está de pé



Este ano, fui convidado pela segunda vez a participar do júri do Prêmio Esso de Jornalismo, agora em sua 59a. edição, uma ocasião especial para analisar e discutir o nível do jornalismo que se tem praticado no Brasil.

O Esso, patrocinado pela Exxon Mobil, que já não usa essa marca no mundo inteiro, exceto aqui no Brasil e exclusivamente no tradicional prêmio, ainda é o maior e mais prestigioso galardão do jornalismo do país, que eu já tive a oportunidade de receber, além de colaborar com outros ganhadores nas equipes que liderei. Uma fina elite da imprensa que teve a sorte de ter seu trabalho reconhecido dessa forma, como estímulo para continuar o seu trabalho.

Para mim, esta edição teve um prazer especial: conheci pessoalmente Paulo Sotero, correspondente do Estadão, uma respeitável e carimbada figura da imprensa brasileira. Quando comecei minha carreira no jornalismo, ele já era uma estrela. No jornal onde trabalhei pela primeira vez, a Gazeta Mercantil dos idos de 1.986, que tratava seus principais jornalistas como verdadeiros astros, Sotero era um semideus. Estagiário da seção de nacional, eu tinha como uma das minhas tarefas "pentear", entre outros, os textos de Sotero. Explica-se. Naquele tempo, os textos de sucursais e do correspondente vinham por telex, uma máquina que reproduzia o texto sem acentuação nenhuma - til, ponto final, cedilha. Aquilo tinha de ser colocado à mão. Eu não mexia nos textos de Sotero - nem pensar. Porém, tudo o que ele escrevia passava pela minha mão.

Mais tarde, tornei-me repórter de Nacional e comecei a escrever meus próprios textos. De lá para cá, foram quase 30 anos de jornalismo, em veículos como Veja, Exame, Estadão e, mais recentemente, o livro. Considerando o ponto em que comecei, é uma honra dividir a mesa dos jurados do Esso com Sotero, uma pessoa afável, um bom contador de histórias e um repórter incansável, que nas conversas ao redor do cafezinho fazia questão de dizer o assunto de sua coluna no jornal do dia seguinte. Para um jornalista, o assunto em que se empenha é sempre a coisa mais importante do mundo. Sotero viu a imprensa mudar, mas se conservou essencialmente jornalista, como deveria permanecer o jornalista em geral, independentemente da mídia onde atua, se digital ou em papel, ou do veículo.

Eu mudei nesses 30 anos, como a imprensa mudou, mas uma análise do material coletado para o prêmio mostra que, apesar da proliferação de conteúdo exclusivamente digital, o melhor jornalismo ainda é feito pelos veículos mais tradicionais da imprensa, que vêm da era do papel. São eles que mais investem em reportagem, em séries mais longas ou que demandam um esforço maior de investigação. Veículos como Zero Hora, O Globo e Estadão produziram excelente material, bem como outros veículos que, mesmo sem terem sido premiados, foram capazes de mostrar este ano que a imprensa, embora em busca de novos mecanismos financeiros, ainda é a maior fonte de informação confiável, profunda e independente da era contemporânea.

A internet deu grande liberdade de acesso à informação, mas produziu também muita margem para a deturpação, a difamação e o opinionismo. Tornou-se um vasto campo para difusão de versões e o conflito de interesses. Creio que isso só serve para acentuar a importância de veículos que buscam o bom jornalismo, na forma da reportagem - a informação exclusiva, de primeira mão, apurada e checada, com a máxima isenção possível, a serviço do leitor. Quanto mais se espalha a nuvem de dissimulações produzida pela rede virtual, mais e mais o público leitor percebe que a imprensa não deixou de ter o seu valor e que, não importa se em papel ou no meio virtual, é um bem imprenscidível, pelo qual se pode e se deve pagar.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

O Nordeste já foi o melhor do Brasil


Em fevereiro, quando sai pela editora Planeta meu próximo livro, A Conquista do Brasil, será possível fazer uma interessante comparação entre o Brasil de hoje e o Brasil dos seus primórdios, com o qual guardamos um grande parentesco. A grande diferença, porém, é que o Nordeste era, no começo da colonização, o pedaço mais avançado, vanguardista e rico do país. Graças ao seu solo, um administrador sortudo e eficiente e uma história de amor.

Diferente de outros donatários, Duarte Coelho veio ao Brasil com a família e outros nobres para se estabelecer, em vez de apenas piratear riquezas e voltar a Portugal com o butim. Trouxe especialistas em açúcar da ilha da Madeira e começou os primeiros engenhos como outros capitães: caçando índios para trabalhar como escravos. Na guerra, contudo, seu cunhado foi feito prisioneiro pelos índios locais, casou-se com a filha do cacique Arco Verde e dessa história de amor nasceu uma aliança que impediu a escravização dos índios dali em diante. Esse acidente exigiu uma solução heterodoxa, que se revelaria mais eficiente e lucrativa. Duarte Coelho pediu dinheiro emprestado a banqueiros judeus e, com esse investimento de risco, passou a importar escravos negros de Angola e da Guiné.

Como resultado, por longo tempo Pernambuco foi o epicentro da região mais próspera do país. Em A Conquista do Brasil, mostra-se como as coisas foram se invertendo com o passar do tempo: a região mais atrasada, a Sudeste, acabaria, por força dos tempos, e dos homens, se transformando no carro-chefe da economia brasileira. O Nordeste açucareiro e escravagista, pelas mesmas qualidades que o fizeram rico, o mantiveram em atraso depois que os fundamentos da economia colonial desapareceram.

Essa é uma herança que ainda não conseguimos superar. O desequilíbrio entre o Sudeste-Sul e o Nordeste se manifestou nas urnas e é ainda explorado politicamente pelos governantes. Embora o Nordeste tenha riquezas importantes e uma gente admirável, a indústria ainda não consegue se radicar lá plenamente e como resultado a região produz indicadores sociais alarmantes.

Como mostrou a eleição em 2014, levantar o Nordeste ainda é um grande desafio para a nação brasileira. Há um inaceitável abismo social nas grandes metrópoles do centro-sul, mas lá está um problema ainda maior. De resolvê-lo depende também o progresso das regiões mais ricas, para que o país possa ter um crescimento mais uniforme e ordenado.

Enquanto for uma concentração de pobreza, o Nordeste sempre será amplo território de exploração por políticos ao estilo coronelista e o populismo em todas as esferas de governo. São séculos de cultura enraizada e de empobrecimento econômico e social, uma tarefa que pede um hercúleo esforço civilizatório. Essa tarefa não é de um partido, e sim de todos os partidos, porque é da sociedade brasileira.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Isto não é o fim da imprensa



A imprensa, um dos pilares essenciais da comunicação e da democracia, é uma indústria como todas as outras – com a única diferença de que seu produto é a notícia. Muito se tem especulado sobre o futuro da imprensa na internet, que tirou das grandes empresas o monopólio dos meios de distribuição. Porém, uma indústria não deixa de existir quando mudam os meios de consumo. Deixa de existir, isso sim, quando deixa de fazer o seu produto.

Um exemplo de como isso está acontecendo. Há duas semanas, um amigo meu veio com a informação de que a prefeitura de São Sebastião tinha aprovado um plano diretor pelo qual seria derrubado um bom pedaço de Mata Atlântica em área de proteção ambiental na praia de Maresias, em São Paulo. Procurei um grande jornal de São Paulo que pudesse se interessar pela notícia. Um editor com quem entrei em contato me forneceu o e-mail de um segundo editor do mesmo jornal. Este me respondeu, dizendo que esse assunto era com uma terceira pessoa. Escrevi para o terceiro profissional. Esse sequer me respondeu.

Esse episódio me lembrou outro, de quando eu era editor de assuntos nacionais na revista Veja e recebemos um telefonema anônimo, dando conta de que um soldado da base militar de Anápolis estava sendo torturado. Por dever de ofício, mesmo sem a identificação do denunciante, fomos apurar. Uma hora depois do telefonema, eu enviava para lá Celson Masson, então repórter da sucursal de Brasília.

Celso voltou de Anápolis sem encontrar nada. Na semana seguinte, ainda com aquela história na cabeça, pedi autorização da direção da revista para fazer nova despesa: mandei o repórter para Anápolis novamente. Dessa vez, num golpe de sorte, perguntando na rua, Celso Masson achou o soldado. Esperou sair do hospital, onde havia sido isolado pela aeronáutica até que se aliviassem as marcas da tortura. Com a publicação da história, os chefes da base aérea passaram por um tribunal militar e foram afastados e punidos. Idem os policiais da delegacia civil que tinha sido utilizada para a tortura. E, com aquela reportagem que mostrava a sobrevivência da tortura mesmo depois do fim da ditadura, Celson Masson ganhou o prêmio Esso de jornalismo daquele ano.

Tudo isso por que atendemos e demos a devida atenção a um simples telefonema.

Faço essa comparação para dizer que o jornalismo tem acabado não por culpa da internet, mas das empresas e seus jornalistas, muitos dos quais esqueceram qual é o seu trabalho. Ouço muito de colegas veteranos que hoje os repórteres não saem do computador. Não vão aos lugares onde as coisas acontecem nem conhecem seus entrevistados pessoalmente. Basicamente, se faz muito pouca reportagem. Em consequência, os jornalistas pouco têm a apresentar além do que qualquer blogueiro diletante.

A indústria da imprensa no Brasil também tem deixado a desejar na solução de problemas em outras áreas do negócio. Reclama-se que a internet não dá dinheiro, especialmente porque as pessoas não estariam dispostas a pagar por conteúdo exclusivo na internet. Vale lembrar outra história do passado. Há cinquenta anos, quando Roberto Civita entendeu que precisava de anunciantes para sustentar suas revistas, e para lhes garantir circulação devia ter um sistema de assinaturas, teve de montar uma rede de distribuição de revistas impressas por todo o país.

Mais: precisou convencer as pessoas a pagar adiantado por um produto que ainda não tinham visto, e só receberiam ao longo do ano. Diante do colossal esforço empreendido pela Editora Abril para criar o sistema de assinatura da revista impressa, que fez da empresa líder absoluta do mercado, não me parece tão difícil convencer hoje leitores a fazer uma assinatura de jornal pela internet, onde se tem o retorno imediato do serviço, acesso ao banco de dados completo e não é preciso esperar pelo caminhão de revistas ou o jornaleiro.

Outro mito que se desenhou sobre o destino da imprensa é que a multiplicação de fontes de informação aumentou a concorrência – onde antes se recorria apenas a dois ou três veículos, hoje se pode utilizar uma multiplicidade de fontes que, entre outras coisas, replicam o conteúdo dos jornais sem pagar por ele. Isso se enfrenta, por um lado, com o combate à pirataria, impondo sanções. Por outro, fazendo um jornalismo sério, que leva um leitor a ser fiel à sua fonte de informações, aquela em que acredita e com a qual pode se identificar. Sim, a internet tem muita coisa - mas tem pouco jornalismo de verdade.

Não se trata de saudosismo, ou de comparar momentos diferentes. Nem é caso de reinventar nada. Os tempos mudam, sim, e a mudança tecnológica destes nossos tempos representa uma enorme reviravolta na comunicação. Porém, os princípios que regem o interesse das pessoas, a necessidade de informação confiável e as bases profissionais do jornalismo não mudaram. É preciso apenas recolocar a imprensa num ambiente que, em última análise, apenas eliminou o papel e facilitou o acesso à informação, nacionalizando e mesmo internacionalizando todos os veículos – o que, em vez de diminuir, só aumentou seu potencial.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

O jornalismo à beira de um ataque de nervos



A demissão do jornalista Chico Sá da Folha de S. Paulo, que o teria proibido de escrever uma coluna apoiando a candidatura da presidente Dilma Rousseff, é um bom exemplo de um certo desvairio em que se encontra o mundo da comunicação na era digital. E não é o único.

Sá, que foi meu contemporâneo na revista Veja, num tempo em que ela era o mais prestigiado veículo nacional de imprensa, junto com o jornalismo da TV Globo, é um amigo, um homem correto e, acima de tudo, um sujeito divertido e agradável. Porém, parece que esqueceu, talvez atordoado pelos novos tempos, de velhas e conhecidas regras, consagradas entre os profissionais de imprensa: a busca da notícia, a isenção e o apartidarismo.

O mesmo tendencismo saiu como uma nota estridente na carreira da jornalista Laura Capriglione, também ex-colega minha em Veja, ex-repórter da Folha de S. Paulo, que em uma coluna anunciou o funeral de Marina Silva, por sua decisão de apoiar Aécio Neves no segundo turno. Como se Marina não tivesse o direito de escolher, bem como seus eleitores. Repórter sempre correta, brilhante apuradora, Laura até pode desvencilhar-se das regras do jornalismo, já que não está abrigada por um veículo de imprensa tradicional, e do princípio elementar de respeito à liberdade alheia. Porém, como profissional, perde o capital mais precioso do jornalista: a credibilidade.

Existem princípios que, mesmo com a mudança do papel impresso para o virtual, continuam válidos como esteio da profissão. Um profissional de imprensa não pode professar uma preferência política, assim como um cronista esportivo não deveria colocar à vista sua preferência por algum clube. Um jornalista se manifesta politicamente por meio do voto, que é secreto, como um cidadão qualquer.

A era da internet tem sufocado o bom jornalismo, e, pior, os bons jornalistas, que vêm confundindo seu dever de bem informar com o mar de opiniões erráticas e tendenciosas sobre tudo, que se dá com a possibilidade da “autopublicação” no mundo virtual. Hoje há na web tantos donos da verdade que se torna mais claro do que nunca o fato de que não há verdade, há somente versões sobre tudo. Especialmente quando até os profissionais de comunicação deixam de respeitar princípios elementares e a ética da profissão, talvez contaminados ou em competição com o comportamento geral.

Os veículos de imprensa se encontram em profunda crise, derivada da falência do antigo sistema de propagação. Antes detentores dos meios de produção, agora os jornais disputam espaço com qualquer um. Hoje, é possível acessar tanto um jornal que antes tinha grande circulação quanto o blog de um desconhecido, já que são ambos apenas uma página na internet, capturáveis na pesquisa randômica dos mecanismos de busca. Porém, não são ou não podem ser coisas iguais. O jornalismo se enfraquece ainda mais ao perder aquele que na realidade é seu bem mais precioso: a credibilidade, construída com a excelência e a postura de seus profissionais.

As redações de jornais e revistas diminuíram e hoje resta ali praticamente apenas o volume morto da imprensa. Boa parte dos bons profissionais saiu, sobretudo pelo fato de que os melhores em geral ganhavam também os maiores salários. A crise da imprensa ainda não terminou. Ela ainda não é capaz de se sustentar apenas com assinaturas pelo meio digital. E, enquanto não se sustentar por meio exclusivamente de seus leitores, a imprensa não é livre. E, se não é livre, igualmente tem dificuldade de se manter isenta. Quem a fortalece é o leitor. E o leitor tem preferido atirar na imprensa, em vez de contribuir.

Nos últimos tempos, multiplicaram-se em corrente aqueles que resolveram transformar os veículos de imprensa em saco de pancada. São os mesmos que agora glorificam o pedido de demissão de Xico, como um herói picaresco, porém sem entender bem o que está acontecendo. Veículos tradicionais, como a própria Veja, são abalroados cotidianamente por campanhas raivosas movidas com ajuda das redes virtuais.

Por mais erros que um veículo de imprensa possa cometer, incluindo dar espaço também para blogueiros tendenciosos, as pessoas parecem ter se esquecido de que foi em grande parte a essa instituição agora desprezada que se pode hoje desfrutar de tamanha liberdade. E que, se os meios de produção foram renovados, os princípios do jornalismo, cujo objetivo é oferecer informação isenta e de qualidade, no limite das possibilidades, ainda não são praticados em outro lugar.

A internet parece ser não o lugar da informação bem apurada, equilibrada e isenta, que ouve sempre o outro lado, e sim um espaço em que quer ganhar aquele que simplesmente grita mais. Para obter esse efeito tornou-se normal ofender e propagar mentiras, falsificações e ameaças. A ideia de que no futuro o ambiente da informação será apenas um cruzamento de opiniões, versões e interesses em disputa, um vale tudo da comunicação, sugere o fim do jornalismo. Mas não será, porque a resultante desse embate de opiniões é zero. Dele, nada sai de construtivo.

A eleição presidencial é um bom exemplo dessa algaravia em que todos são donos da verdade e se julgam no direito de constranger quem tem opiniões politicamente diversas. Ninguém muda realmente de opinião, mas sob a bandeira da liberdade proporcionada pelo meio digital instalou-se um patrulhamento jamais visto, superior ao da própria ditadura militar. Os patrulheiros querem ser os donos das receitas que salvarão o mundo, mas são, eles próprios, o mal maior.

A condenação pública da moça que xingou o goleiro na TV, e teve sua casa queimada, num processo de radicalização jamais visto, que beira a histeria coletiva, lembra que os jornalistas não podem se juntar à massa. Devem continuar cumprindo seu papel de apurar a notícia e informar de forma isenta. Se não existe a verdade, essa é a melhor forma de pelo menos nos aproximarmos dela. Os patrões da imprensa continuam no seu papel, e os conflitos entre jornalistas e os pontos de vista das empresas em que trabalham não são novidade. No final, acabaram sendo sempre salutares para a criação de uma imprensa melhor. O que não se pode é jogar fora o que une ambos: a defesa, acima de tudo, do interesse do leitor, o interesse público, que para o jornalista deve estar acima dos interesses, opiniões e mesmo convicções individuais.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Liberdade e igualdade: o legado para os nossos filhos


A inocência foi perdida, a minha, a do mundo. Não se pode reclamar da extinção daquele tempo que conhecemos, nem dizer que foi o tempo em que honestidade não era qualidade, porque ser desonesto era exceção. Em que ainda se podia brincar na rua, em que as crianças eram mais crianças, porque mal começava a aparecer a televisão e o que tínhamos para viver eram os brinquedos de sempre, a cabra-cega, o pega-pega, a bicicleta, os carrinhos de rolemã, a bola redonda que rolava nas ruas de terra.

Havia cachorros vadios nas ruas, nós os conhecíamos, lhes dávamos nomes e torcíamos contra a carrocinha quando ela aparecia para pegá-los. Dizia-se na época que cachorro apanhado virava sabão e odiávamos os funcionários da prefeitura que os levavam para que se perpetrasse tamanha maldade.

Hoje as crianças amadurecem cedo, a TV lhes dá informação como a adultos, os brinquedos digitais fazem com que pensem rápido, mas o mundo não está melhor. É preciso ainda sair na rua para ver os outros, brincar de cabra-cega, rodar pião, andar de bicicleta, ver o sol, lamber sorvete nas tardes de calor, tomar guaraná escondido, abraçar, beijar.

É preciso viver os tempos inocentes, preservá-los, porque eles não voltarão.

É preciso aprender as coisas do começo, sem pressa, a pressa talvez que eu tive, ao começar a escola antes dos outros, ao conviver com gente mais velha, sempre com pressa, pressa, pressa, para ver que chega a idade em que isso não faz mais sentido, as distâncias entre as pessoas diminuem, o tempo pára e desejamos que parasse de verdade.

É preciso resgatar para os adultos também um pouco dessa antiga inocência, em que não haviam diferenças homofóbicas, regionalistas ou raciais. Na minha infância, nas ruas da Casa Verde de meus avós, o “neguinho” que jogava bola na rua me chamava de “alemão” e brincávamos lado a lado, sem pensar em outras implicações, porque não havia necessidade de brigar pela igualdade.

A igualdade não vem das religiões, não vem do ensinamento dos pais, nem da escola. Antigamente ela vinha da realidade da rua, em que todas as crianças se misturavam, brincavam juntas num mundo onde realmente existia e que eu guardo até hoje como a igualdade fundamental do homem.

O Brasil que espera meu filho aprofundou as diferenças. Elas são sociais, fundadas no abismo criado entre ricos e pobres, são raciais, políticas e também sexuais e religiosas. Dividido vive o mundo entre judeus, católicos, evangélicos, protestantes, muçulmanos. Esqueceram que os homens são iguais, o que torna iguais todas as religiões, pois todas as pessoas precisam de um pouco de fé para viver. Têm de acreditar em algo para lutar contra as dificuldades. Enfim, para serem pessoas melhores.

É preciso não ser ingênuo para acreditar que todos pensam assim. Existem os insensatos, os radicais, os indiferentes, tão perigosos quanto os anteriores, os mal intencionados, os aproveitadores, os difamadores. Porém, quanto mais eles se fazem presentes, mais é necessário insistir, defender os bons princípios.

Não podemos perder nunca a capacidade de nos indignar contra as diferenças, contra a injustiça, contra o roubo, a desonestidade, a preguiça, a maldade, o vício, a intolerância. Sobretudo a intolerância, o maior mal que ameaça o mundo hoje em dia.

É necessário saber que toda violência vem desses pequenos males cotidianos, do pão que falta na mesa do pobre, da raiva originada no preconceito, do abandono da criança pela família, da incompreensão, de tudo aquilo que um homem pode deixar de ser quando deixa de ser criança.

Eu sou de uma geração que pacificou o Brasil, trouxemos a democracia de volta sem violência de qualquer espécie, buscamos a justiça social, criamos meios para alcançar o desenvolvimento econômico sustentado, uma geração voltada para o bem estar do brasileiro, que é dos mais pobres do planeta. Porém o mundo é maior que nós, ou vai sempre mais longe: para cada solução surgiram novos problemas. Temos que enfrentá-los. Para isso é preciso resgatar a coragem, a hombridade, a honradez, a persistência, as qualidades que fazem dos homens verdadeiros homens, perdidas numa era de desespero em que todos se voltam para o individualismo, o egoísmo e a amoralidade.

Nós precisamos ser firmes nas ações e no amor; temos que amar como devem amar os seres humanos, amar os outros acima de nós mesmos, e não negá-lo, porque aquilo que parece fraqueza, como o amor, é em geral a maior força.

Precisamos acreditar no futuro e trabalhar por ele.

Sermos amigos.

Sermos humildes na riqueza e orgulhosos na pobreza.

Sermos fortes na fraqueza e ternos em tempos duros.

Temos de ser parcimoniosos com nós mesmos e generosos com os outros.

Saber dividir e saber agregar.

Precisamos buscar sempre a sabedoria, o que implica em medir as decisões com inteligência e coração. E entender que a sabedoria é algo que nunca se alcança, ela sempre está mais adiante, por mais que caminhemos na sua direção.

Tudo isso digo a meu filho para que leia um dia, como um pequeno legado, e gostaria de estar muito tempo por aqui para guiá-lo nos seus pequenos passos, depois nos maiores, como meus pais fizeram comigo.

Mesmo que eu não tenha sido o melhor possível, esta é a hora em que eu compreendo mais o ciclo da vida e espero que a educação e os valores permitam povoar o mundo com gente melhor, inclusive, do que eu, do que nós.

Penso nisso quando penso em meu filho, e nos outros filhos que estão nascendo, à minha volta e no mundo inteiro, muitos dos quais perecerão em guerras, da fome, vítimas da violência, da intolerância e de tudo aquilo que não é mais possível, fruto de um mundo onde a tecnologia se desenvolveu atrofiando o ser humano.

PS: na foto, tirada na década de 1.960 por meu pai, numa viagem ao Rio Grande do Sul, estou com um grupo de crianças que conheci na roça gaúcha. Se não for possível saber a diferença, eu sou o que segura o gato.

Escrever não é gramática, são as ideias


Quando entregava um livro aos editores, Monteiro Lobato costumava colocar, antes do texto, um recado aos revisores: avisava quais eram os sinais utilizados na língua portuguesa. E os mandava colocar no texto, aonde quisessem.

Escrever não é saber pontuação, nem mesmo saber português. Escrever é imprimir ideias. Elas se propagam de muitas maneiras, mas a mais elegante, eficaz e perene é escrevendo. Seja em papel ou no mundo virtual.

Eu uso isso como desculpa para todos os erros que cometo, num atentado não deliberado, mas não muito arrependido, ao bom português. Troco onde por aonde e vice-versa. Esqueço o "em" antes do "que". E por aí vai. Conheço as regras, mas no fluxo do pensamento muitas vezes elas vão ficando para trás.

Talvez alguns estranhem a comparação, ou a achem de mau gosto, mas escrever é como fazer amor. Se você ficar pensando na parte mecânica do ato, como um engenheiro, e não um amante, a coisa não sai.

Escrever, fazer amor e dançar têm isso em comum. Fred Astaire certamente nunca pronunciou as palavras "dois pra cá, dois pra lá".

Se a ortografia não é minha arte, prezo ainda menos pela datilografia. Escrever não é datilografar. Cato milho com dois dedos de cada mão há mais de trinta anos trabalhando em jornalismo. Por vezes o texto sai tão difícil de ler quanto o manuscrito, onde também como letras, ou sílabas inteiras, numa garatuja muitas vezes próxima da estenografia.

Sei que é irritante para os outros, deselegante, talvez, e uma complicação. O ideal é entregar o serviço perfeito, limpo, profissional. Porém, o cuidado com a língua é mais próprio do revisor, do professor ou do acadêmico. E uma coisa é certa: quando o dançarino é talentoso, o amante é bom e as ideias fazem efeitos, as regras ficam sempre em segundo lugar.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

"Não tenha pressa, mas não perca tempo"

O jornalista José Ruy Gandra, que certa vez entrevistou o escritor português José Saramago, foi quem ouviu primeiro a frase lapidar, seu conselho para jovens escritores: "Não tenha pressa, mas não perca tempo".

Fiquei com a frase, pérola de sabedoria que serve para tudo, porém é especialmente importante para a tarefa de escrever. Há dentro dela mais do que simples filosofia: há um mecanismo de trabalho que define o próprio ato de escrever.

Escrever é pensar no papel. É preciso, para que um texto saia perfeito, haver uma sincronia entre ambas as coisas; certamente Saramago sabia disso como ninguém. Por vezes, se estamos ansiosos com o que vamos escrever, ou pensamos rápido demais, mais rápido do que podemos escrever, pulamos algo importante. Se as ideias não fluem, o texto não sai. Escrever tem, como se diria em inglês, o seu pace - o seu tempo, uma espécie de cadência, em que pensamento e escrita fluem juntos.

Esse fluxo em que se escreve pensando e vice-versa só é adquirido com a prática da escrita. Por isso, não basta o talento. Somente a prática faz com que o texto saia na tela do computador com naturalidade, da mesma forma com que as palavras saem da boca quando falamos. O discurso oral parece ser produzido sem pensar; na realidade, pensamos enquanto falamos. O mesmo ocorre com a linguagem escrita, com a diferença de que falamos desde pequenos, todos os dias, durante anos. Escrever com a mesma naturalidade com que se fala requer treinamento igual.

A pressa faz as palavras seguirem à frente das ideias, o que é contraproducente; escrever devagar faz o processo igualmente parar. Escrever requer paciência e o cumprimento de todas as etapas, frase a frase, parágrafo por parágrafo.

Claro que a sentença de Saramago se refere a mais coisas, ou principalmente a outra coisa. É muito fácil nos distrairmos diante da tarefa de escrever.É um trabalho pessoal, que não pode ser terceirizado. E que sempre requer a volta a uma certa sintonia quando temos que recomeçar depois de uma parada. Tendemos a querer fazer outras coisas, a fugir do trabalho, por receio de não conseguir realizar a mágica novamente, nunca mais. Por isso é importante não ter pressa, para fazer o serviço direito, mas não perder tempo. O tempo é a única coisa que temos.

Depois de escrever um livro de não-ficção, que deve sair pela editora Planeta em fevereiro próximo, estou pelo meio de um ambicioso romance, desafio diário que me dá tanto prazer quanto medo. Os anos de trabalho não eliminaram de todo a incerteza; por vezes, receio que uma coisa ou outra não fique tão boa; por vezes, resisto a recomeçar. Tento aproveitar os momentos de envolvimento com a história, que fazem o trabalho render mais. E sento diariamente diante da máquina, logo ao acordar, para que nada sirva de distração.

Penso em Saramago e João Ubaldo, que recentemente perderam a coisa mais importante para o escritor - o tempo. Eles me ajudam a ir adiante, sem perder tempo, nem o compasso.

Paulo Coelho, Deus e a função do editor



Ao assumir em novembro de 2.009 a direção editorial da Saraiva, para lançar livros de ficção e não-ficção, eu tinha dois desafios. O primeiro, como fazer uma editora que tinha a maior cadeia de livrarias do país vender também em outras redes e livrarias independentes. Segundo, que contribuía com o primeiro: como trazer grandes autores, que em geral estavam bem colocados em empresas concorrentes.

Com apoio da empresa, o primeiro desafio foi resolvido com a criação de uma marca: Benvirá, que seria divulgada por meio de um prêmio literário, entre outras ações. Precisávamos dar prestígio ao selo, colocando autores na Flip, por exemplo, o que viria a acontecer depois. Quanto a conquistar autores vendedores... Bem, esse era o maior desafio. Comecei a pesquisar autores de alta qualidade, que estavam meio abandonados, e eu poderia recuperar; autores novos, ainda despercebidos; e autores de calibre grosso que, com projetos sólidos, e dinheiro, eu tentaria conquistar.

A primeira oportunidade que surgiu foi justamente com o maior best seller brasileiro: Paulo Coelho. Naquela época, ele acabava de deixar sua antiga editora; seu primeiro livro em uma nova casa estaria em leilão. Enviei um e-mail para sua agente em Barcelona, Monica Antunes; marcamos para a feira de Londres, em abril seguinte, uma reunião.

O destino complica a vida das pessoas, sobretudo as sem experiência no ramo, como era o meu caso; naquele mês de abril, aconteceu na forma de um vulcão. A montanha, localizada na Islândia, resolveu bem naquela hora explodir; lançou uma nuvem de cinza sobre a Europa, que fechou os aeroportos; muita gente, como eu, teve cancelado o avião. Um dia depois da feira, onde, segundo eu acreditava, não tinha acontecido nada, li no jornal uma nota sobre a compra de Aleph, o novo livro de Paulo, pela editora Sextante.

Eu, que tinha com Monica aquela reunião, na expectativa de poder pelo menos fazer um lance, não podia estar mais frustrado. Tinha perdido o negócio, mas não a disposição. Mandei para ela nova comunicação. Disse que iria a Barcelona visitar alguns agentes, que gostaria de ter conhecido já em Londres, e pedia para falar com ela pessoalmente.

No dia marcado, hora marcada, eu estava lá: um prédio envidraçado na avenida diante do porto, onde ficava a Saint-Jordí. Cabelos curtos, olhos puxados, que deixam seu sorriso com um pouco da alegria chinesa, Mônica me recebeu na sala de reunião. "É um prazer te receber, mas não sei o que você está fazendo aqui", ela disse. "Como você sabe, eu já vendi o livro."

De fato. Eu, que às vezes compenso minha ignorância com certa ousadia, o que em geral se confunde com insolência, primeiro reclamei que ela tinha vendido o livro sem falar nada comigo. "É verdade", ela respondeu. "Mas o olhei o site da Editora Saraiva. É tão ruim que não sei como vocês fazem livro."

Não pude discordar. Desde que entrara, eu dizia que precisávamos de um site melhor, mais voltado para o varejo, necessidade do novo negócio. Me pediram para esperar, tudo seria reformulado. E, como costuma acontecer com medidas importantes mas consideradas pequenas nas grandes organizações, fiquei a esperar e esperar.

Disse então que estava ali porque tinha uma ideia para lhe dar. Ela tomou um choque, quase ofendida, beirando a indignação. "O Paulo não faz livro de encomenda!", avisou. Realmente, se há alguém que não precisa fazer um livro de encomenda, a cavaleiro dos seus milhões de livros vendidos em mais de 150 países, é Paulo Coelho. Isso, porém, não me abalou. "Mas você ainda nem ouviu a minha ideia!" Monica, mais uma vez surpresa, depois de olhar para mim, por desencargo, concordou.

Expliquei então o que eu imaginara. "Para mim, o Paulo é o grande fabulista do nosso tempo", eu disse. "Minha ideia é fazer ele reescrever as fábulas do Esopo, como fez la Fontaine. Na linguagem dele, voltada para o público contemporâneo. Seria um livro para crianças, mas que pode ser lido por qualquer um."

Mônica parou um instante: num estalo, em vez de me mandar embora com um piparote, comprou a ideia de imediato.

"Vou falar com ele", disse. Levantou-se inopinadamente, foi até uma prateleira na parede, e voltou dali com três livros. "Já que vocês têm na Saraiva a área educacional, poderiam fazer também isso aqui", ela disse, e me entregou os exemplares, num formato quase de livro de bolso. Eram O Alquimista, O Demônio e a srta Pryn e Verônika Decide Morrer, com um suplemento didático, uma coleção para ser vendida em escolas. Explicou que aqueles três livros eram usados por professores em países como Espanha, Estados Unidos e Portugal. "Talvez pudéssemos fazer isso também no Brasil."

Saí de lá desconfiado: estava bom demais. Já tomara uma surpresa antes, tomar outra não custaria nada. Ao chegar em São Paulo, porém, ao abrir o computador, estava lá: um e-mail do próprio Paulo, com um texto em anexo, em que ele, ainda antes de assinar qualquer contrato, e já trabalhando, perguntava: "é isso que você tinha em mente?". Era. Nascia aí o "Fábulas" de Paulo Coelho, que seria uma das maiores vendas durante a minha gestão.

Em um mês, criei uma página na internet só para o selo Benvirá - cartão de visitas que não dependia mais da grande reformulação prometida pela corporação. Negociei o contrato de Fábulas, e disse que faríamos os livros paradidáticos, com duas condições. A primeira: pelos livros didáticos, eu não pagaria nada de adiantamento autoral. Todo o dinheiro seria investido no trabalho com o professor. (Mais tarde, ela diria que eu fui o "editor mais duro" com quem negociou. Espantado, perguntei a razão. "Nunca tinha vendido um livro por zero", ela afirmou).

A segunda condição, no entanto, era a mais importante. Paulo Coelho sofria, sempre sofreu, uma grande rejeição do mundo intelectual no Brasil, incluindo o professor. Era um best seller, um autor popular, mas lhe faltava o prestígio qualitativo que faz entrar na escola um autor. A meu ver, isso acontecia porque os livros de Paulo, em português, onde sempre foram lançados inicialmente, tinham muitos erros: de ortografia, de lógica, de informação. Esses erros não afetavam outros países, onde Paulo tinha vendas e prestígio também, porque desapareciam na tradução.

Para vencer a resistência do professor, e convencê-lo a adotar os livros de Paulo, precisávamos de um produto impecável. Isso significava fazer os livros passarem por um implacável trabalho de edição.

Eu havia escutado que Paulo se recusava a ter seus textos editados e até mesmo revisados, o que deixava passar erros muitas vezes primários. Corria no mercado a lenda de que ele dizia receber aquelas palavras diretamente de Deus - portanto, seu texto tinha de sair como Ele mandava. Contei isso a Mônica. Ela respondeu que era tudo bobagem. E que eu podia fazer o trabalho que tinha de fazer.

Durante dois meses, além de fazer o material paradidático, com a ajuda de um professor, editamos e revisamos os três principais livros de Paulo, que se tornaram significativamente melhores na versão paradidática da Saraiva, comparada com a versão de varejo. A Saraiva começou a vender os livros para as escolas, um esforço árduo de convencimento do professor. E, paralelamente, o Fábulas saiu.

Todas as mudanças feitas no texto dos romances foram submetidos ao Paulo. Ele as aceitou, sem pestanejar. Deus também não fez nenhuma objeção. Na convivência do trabalho, meu conceito sobre ele subiu. Passei a respeitar Mônica, que o escritor Fernando Morais, meu amigo, chamava de A Bruxa, pela sua capacidade de catapultar um escritor brasileiro á condição de best seller mundial. Acho que foi recíproco. Eu e Monica nos tornamos amigos e nos encontramos muitas vezes, não apenas para falar de negócios. Ela é firme, dura e árdua defensora do seu autor, como tem de ser. Mas descobri que também é uma pessoa doce, sensível e de bom humor. E que aceita argumentos, quando são em benefício do negócio, bons para a editora, e o escritor. É, ainda, de uma simplicidade e modéstia exemplares. Quando lhe perguntei como tinha vendido Paulo no mundo inteiro, ela me respondeu, simplesmente: "batendo de porta em porta". Como eu, por sinal, também estava fazendo.

Muitas vezes penso que, se tivesse feito esse trabalho no início, Paulo não teria sofrido a rejeição que teve aqui, no Brasil. Nunca entendi por que os editores se furtaram a fazer seu trabalho, como tentei fazer. Nem mesmo Paulo Coelho, recebendo ou não suas palavras de Deus, acerta tudo. Ele é um gênio, que descobriu um filão literário a partir de sua experiência de vida, de sua intuição, de sua sintonia com o mundo e com os interesses do leitor. Esse é um talento que poucos têm. Mas é preciso ser rigoroso com o texto. Não basta ser criativo, nem mesmo genial. Qualquer um, até mesmo Deus, precisa de um bom editor.

Lições para escrever, n. 1


Naquele tempo eu trabalhava como editor assistente de Economia da revista Veja; para chefiar a seção, pouco tempo antes viera, deslocado de Internacional, o jornalista Fernando Pacheco Jordão. Profissional experiente, talentoso e simpático, um desses raros homens com quem trabalhar se pode dizer que também é um prazer.

Em Veja, especialmente nas quintas e sextas-feiras, trabalhávamos até muito tarde; o dia era gasto na apuração das notícias, o que significava ir além do que informavam os jornais; nossa função era explicar melhor, revelar os bastidores, fazer o leitor entender de maneira mais ampla ou profunda o que acontecia na sua própria vida e no mundo ao redor. Escrever era uma atividade que nos aproximava dos bombeiros, guardas noturnos e outros profissionais da noite. E não podiámos errar: ter que reescrever uma matéria significava um desastre, porque frequentemente nos levava a sair do trabalho somente de madrugada ou mesmo no dia seguinte pela manhã.

Fernando tinha uma particularidade; quando não sabia direito por onde começar uma matéria, começava por qualquer lugar; em algum momento, chegava à conclusão sobre o que era mais importante; nesse instante, voltava para o começo de tudo, depois punha o texto em ordem. Na maior parte das vezes, porém, ele me deixava escrever a reportagem, depois de dar alguma orientação.

Talvez pela tranquilidade com que confiava nesse método, certa vez eu e ele nos demos mal – mais eu do que ele, é claro. O governo acabara de anunciar um aumento do salário mínimo. A seu pedido, escrevi uma longa peroração sobre os efeitos que isso teria na economia, onerando contas públicas e a previdência social. Isso, dizíamos, apesar do benefício inicial para a população, geraria uma reação em cadeia que causaria prejuízos na frente, com o aumento da já elevada inflação.

No final, para não dizer que tínhamos deixado de mencionar o assunto, escrevi um pequeno box, quase um rodapé, sobre o problema da classe média, que teria de se virar para pagar a empregada doméstica. E lá fomos levar a matéria para José Roberto Guzzo, diretor de redação, que fazia a leitura final das reportagens mais importantes da nossa seção.

Com sua aparente bonomia, seu ceticismo permanente, e sua ironia fatal, Guzzo leu nossa obra, coçando a cabeça. Ao final, decretou:

- Muito bom – disse. – Vocês fizeram mesmo uma bela matéria sobre economia. Agora façam ela virar o box. E o box virar a matéria. O leitor não está interessado nas contas do governo. O problema dele é a empregada doméstica.

Saímos de lá; olhando para Fernando, com aquela cara, comecei a escrever tudo de novo. Mas Guzzo tinha razão. O leitor de Veja, que é de classe média, olhava primeiro para o próprio umbigo, ou melhor, o bolso: antes das grandes decisões da política e economia, a revista tratava do interesse pessoal e direto do leitor. A economia tinha um efeito retardado, ou secundário; aquela medida primeiro afetava o público da revista já no salário do fim do mês. O resto, ainda que relevante, ficava em segundo lugar. Cometeramos ali um erro de avaliação, tomando como base nossa própria cabeça de jornalistas e o que achávamos importante, mas para nós.

Conto essa história como exemplo de como é essencial pensar sobre o que vamos escrever, antes de escrever, e avaliar essas questões, antes de tomar uma decisão. Lição número 1 do livro Escreva Bem, Pense Melhor, e do curso com o mesmo nome, que tenho ministrado: escrever é, antes de mais nada, pensar. É preciso primeiro definir o que é importante, para balizar tudo o mais.

Essa decisão é fundamental, e nela pesam dois fatores. Um é o que achamos importante, a notícia, ou o que faz a diferença. Nem sempre é fácil entender o que é o mais importante, novo, ou fazer a síntese do que precisamos dizer já de saída. O outro fator, não menos importante, é pensar em quem o texto se destina; para isso, é preciso conhecer o público leitor, seus interesses e prioridades.

O sucesso de Veja, no seu auge, sempre se baseou nesses dois pilares: os temas que achávamos importantes, e que marcavam a posição da revista, mesclados aos que interessavam diretamente o leitor. Essa combinação é que criou um público leitor fiel, que fez Veja se tornar a maior publicação do Brasil e a quarta revista semanal do mundo em circulação.

A imprensa foi para mim um exercício permanente da escrita; além de escrever todos os dias, exige pensar o tempo todo no que é mais importante. O texto jornalístico pede cotidianamente a organização das ideias, de modo que o texto comece pelo mais importante e vá se desenvolvendo de forma lógica, encadeada e interessante até o final. Mesmo quando comecei a escrever ficção, esse exercício ajudou; não importante o assunto, ou o gênero, o que nos faz escrever melhor é sempre o pensamento organizado. Com o tempo, não importa o assunto, passamos a escrever cada vez mais rápido e melhor.

Toda vez que nos deparamos com algum tema, há sempre formas diferentes de tratá-lo ao escrever. A decisão é nossa. O leitor, porém, é que vai julgar. Ninguém escreve somente para si mesmo; nenhum homem é uma ilha, especialmente quando se trata de comunicação.

domingo, 14 de setembro de 2014

A era da intolerância



Jornalistas americanos são decapitados por mascarados do "Estado Islâmico". Outros mascarados, em Cascavel, Paraná, decapitam colegas presos em rebelião carcerária.

Uma mulher é vista na TV chamando o goleiro Aranha, do Santos, de macaco. O goleiro registra queixa na delegacia. A mulher vai à delegacia e se obriga a dar desculpas públicas perante a imprensa. Por fim, sua casa é incendiada.

As torcidas são clássico exemplo de intolerância e violência. Todos vão a campo para xingar e extravasar sua frustração pessoal. Se queimarmos a casa de todos que já o fizeram, o Brasil seria terra arrasada. Por sorte nem todos foram ainda filmados num gesto "anti-social". Ainda. Breve certamente será possível monitorar o que pensa, diz e faz cada torcedor.

A imolação pública de seres humanos, da mesma forma que se queimavam ou garroteavam hereges sem julgamento pela inquisição medieval, passou a fazer parte do dia a dia. Casos aparentemente sem conexão, mas que deixam a sensação de que a Humanidade na era da tecnologia paradoxalmente retorna em comportamento para a Idade Média.

A intolerância se expressa no dia a dia. No patrulhamento pela internet. Na vigilância pelas câmeras espalhadas por todo lado. No comportamento no trânsito. Nas crianças, que não se suportam, sem conseguir dividir os espaços. Até na relação entre irmãos e no casamento de pais separados, onde o compromisso nunca parece acima dos interesses dos filhos de cada parceiro ou de seus interesses individuais.

O Século XXI vai se delineando como uma combinação de Orwell e Kafka.

Como deter o barbarismo, último estágio da intolerância, esse veneno que contamina a sociedade e toma as relações sociais e de poder na sua microfísica, até chegar à violência coletiva e extremada?

Primeiro é preciso entender as causas e que as respostas não são as tradicionais. É tarde demais, ou urgente demais, para se esperar uma transformação em larga escala pela educação.

A potencialização da intolerância está diretamente ligada à era digital. Na mesma medida em que a tecnologia se desenvolveu, expondo a privacidade e o indivíduo ao seu grau máximo, o reacionarismo e a discriminação cresceram, uma reação exacerbada que se manifesta na violência cotidiana e na multiplicação de movimentos religiosos e reacionários.

O resultado é um mundo que avançou incrivelmente na tecnologia e na capacidade de comunicação, mas involuiu socialmente, na mesma e oposta dimensão. O meio virtual expõe também o que há de pior na sociedade. E faz isso estar presente num confronto diário e presente na vida de todos.

A igualdade, a liberdade de viver e de expressão, que deveriam crescer com a tecnologia da informação, são também a maior ameaça à igualdade e à liberdade como direitos humanos essenciais.

Na Internet, todos são livres; mas na realidade não há liberdade alguma, muito pelo contrário.
As forças que se reúnem no ambiente virtual, e podem vir à tona na vida real, da sua forma mais negra, mostram o novo conflito social: como controlar os agentes da sociedade que partem do ambiente virtual para se associar e criar poderes paralelos e ao mesmo tempo preservar a liberdade.

A intolerância e a violência formam um círculo vicioso, que se auto-alimenta. Criamos o mal com a mesma competência com que criamos o bem. Na era virtual, já se criaram as inquisições e as trevas. É preciso criar também um novo iluminismo. E fazê-lo prevalecer.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Rolim (o livro) está de volta


Há algum tempo, fui ver o Museu Asas de um Sonho, onde estão os aviões antigos colecionados por Rolim e João Amaro, e comprei lá os três últimos exemplares que havia da biografia que escrevi de Rolim, O Sonho Brasileiro. Há muito tempo o livro já se encontrava esgotado e a única versão disponível era uma contrafação pirata da obra, que causava algumas situações bizarras. Recentemente, por exemplo, um piloto do Paraná me enviou um email com um pedido; estava envergonhado de ter baixado o livro pirata e dizia ter gostado tanto dele que fazia questão de me pagar. E queria saber como.

Para todos aqueles que procuram pelo livro e não acham, ou que leram mas gostariam de tê-lo também na sua biblioteca digital, O Sonho Brasileiro está sendo relançado em e-book, disponível em todas as redes importantes, a começar pela Amazon, ao preço de 9,90 reais.

Revendo a obra, mais de dez anos após seu lançamento, e da morte de Rolim, a impressão que tenho é de que sua história já não funciona mais como um case de negócios ou de marketing - a maioria das coisas que Rolim fazia já não cabe na realidade de hoje, mesmo para a TAM, a companhia que fundou. Tudo parece pitoresco, arriscado, ousado demais para os dias de hoje. No entanto, a obra conserva um grande interesse, por dois motivos.

Primeiro, pela história aventuresca de Rolim, um tanto romãntica, ou picaresca, desde os tempos em que se aventurava em voos como piloto privado no desbravamento da Amazônia, um tempo pioneiro como não haverá outro mais.

O segundo motivo pelo qual o livro continua importante é o retrato de uma época em que os empresários ainda lutavam pela liberdade de fazer, de empreender, de buscar o melhor para as empresas, os clientes e a economia. Um tempo fechado pela ditadura militar, que criava reservas de mercado e entraves que faziam a economia brasileira ser comparável em atraso à da soviética. Rolim estava na linha de frente desse combate, e entender sua história é também entender a trajetória recente da economia brasileira.

Pra quem quiser conferir, o link na Amazon:

http://www.amazon.com/Sonho-Brasileiro-Portuguese-Thales-Guaracy-ebook/dp/B00NBXKY36/ref=sr_1_1?ie=UTF8&qid=1410194168&sr=8-1&keywords=thales+guaracy+sonho+brasileiro

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Lucy e o sentido da inteligência



Assisti Lucy, o filme de Luc Besson com Scarlett Johansson e Morgan Freeman, que acaba de entrar em cartaz no cinemas, e deve também sair em breve, como hoje em dia costuma acontecer. Um filme estranho, sob muitos aspectos; aquela velha e boa sensação de estranheza de que algo ali merece ser explorado, como acontece com grandes filmes de ficção cientifícia, como 2001, Uma Odisséia no Espaço, de Kubrick, ou Solaris, de Andrei Tarkovski.

A primeira estranheza, na verdade, vem da combinação que deu origem à produção: um cineasta francês, a quem se entregou a tecnologia dos grandes estúdios americanos. O resultado é um Frankeinstein cinematográfico: ao mesmo tempo em que procura fazer um filme de ideias, ao estilo francês, Besson cede aos efeitos especiais e a velhos chavões do consumo de massa: o vilão implacável e sua gangue, a perseguição de carros e o policial honesto que se mete na história por acaso. Por trás disso, porém, há uma ideia melhor, mais profunda e interessante.

Sob o impacto de uma overdose involuntária de drogas que carrega em um saco costurado no ventre, Lucy vai atingindo progressivamente 100% do uso do seu cérebro; resultado de uma reação em cadeia da inteligência, equivalente a de uma bomba nuclear. Com ela, podemos nos fazer muitas perguntas; sobretudo, nos aproximamos do conceito de que não existe a morte. E que o verdadeiro sentido da inteligência é o da busca pela imortalidade.

Nos acostumamos a pensar que somos o nosso corpo; o filme de Besson nos lembra que o corpo não importa. Vivemos querendo ser a árvore, regá-la, apará-la, conservá-la por mais tempo que pudermos, mas ela nunca deixará de ser perecível. Lucy entende que a única forma de sobreviver é não ser árvore, é entrar para a natureza, que nunca morre. A evolução do ser humano é abandonar o corpo perecível para ser somente uma forma de inteligência.

Estranho? Pode ser, mas aí está um intrigante caminho, e quem sabe uma visão do futuro, baseada nas possibilidades humanas. Muitas vezes a ficção científica mostra soluções; a própria física começa como uma investigação filosófica, para depois ser demonstrada em fórmulas matemáticas. O filme escorrega nos americanismos, e às vezes alguma cenas parecem patéticas, como o encontro de Lucy com sua versão antropóide, primeiro espécime da desenvolver a inteligência que consideramos humana, ou sua subida pelas paredes, que mais lembra carrie, a Estranha. Porém, não há pasteurização capaz de derrubar o fato de que, ali, há algo interessante no ar, e cada um pode tirar disso suas próprias conclusões.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O curso Escreva Bem, Pense Melhor volta à Livraria da Vila


Na segunda semana de outubro, o curso escreva Bem, Pense melhor voltará a ser ministrado no auditório da Livraria da Vila, na Vila Madalena, em São Paulo.

Duração: 6 encontros de 2 horas

Objetivo

O exercício de escrever traz benefícios que vão além da própria escrita. O aperfeiçoamento da escrita desenvolve o raciocínio organizado. Ele nos ajuda a pensar melhor. E pensar melhor também nos faz escrever melhor, com textos capazes tanto de exprimir o seu autor quanto de atrair o interesse dos leitores.

Encontros

1. O desafio do papel em branco. Como escrever bem. A força das ideias. Escrita e pensamento. Texto e linguagem falada.
2. O pensamento estruturado. Clareza, interesse, relevância. Abertura, desenvolvimento e fecho. A primeira frase. Encadeamento e lógica.
3. A forma e o raciocínio: redação e estilo. Texto jornalístico e informativo. Conteúdo, informação e notícia. Síntese, concisão e outras normas estilísticas.
4. Os elementos da criação. Escrita, emoção, autoanálise e desenvolvimento pessoal. “Inspiração”: os elementos da criação. O texto como expressão individual: diário, blog, autobiografia, memórias. As formas literárias: o conto, a crônica, a novela, o romance. Primeira pessoa, o texto opinativo, a crônica e o texto memorialístico. A ironia e o humor. Estilo e individualidade.
5. Estudo de caso. Workshop
6. Adequação ao público. Comunicação corporativa. Impacto. Público segmentado ou dirigido. Mensagem e linguagem.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

O resgate da literatura brasileira



Na mais recente edição da revista Observatório Cultural, do Banco Itaú, a agente literária Luciana Villas-Boas deixa um artigo importante para todos aqueles que vivem de livro no Brasil, especialmente ficção. E mais, faz um alerta especialmente para aqueles que atribuem a dificuldade dos autores brasileiros de emplacar em listas de mais vendidos à globalização do mercado, às deficiências de marketing das editoras e outras razões que não dizem respeito, essencialmente, ao produto.

O que diz Luciana é: o problema, sim, é o produto. Deixamos no Brasil de fazer literatura brasileira. Na esperança de ganhar o mundo, tentamos ser como os outros. Mas os outros ganharam o mundo sendo eles mesmos. O que os americanos vendem é literatura americana. Os franceses, idem. Gabriel Garcia Marques fez sua literatura se tornar global a partir dos recônditos da Colômbia. Eis a questão, desnudada por Luciana com clarividência: por que não literatura brasileira?

Ela pode falar da cátedra. Como editora da Record, Luciana se caracterizou pelo esforço de publicar autores brasileiros, inclusive novos. Sempre foi uma defensora da publicação de autores brasileiros no exterior. Seu empenho pessoal nisso a levou, quando deixou a empresa, em 2.012, a tornar-se agente literária. Inteligente, refinada e ativa, Luciana antes de mais nada é uma idealista, não no sentido do sujeito sonhador, mas de quem sabe que o ideal é o certo, e o certo é o ponto que se coloca adiante para alcançar o sucesso. Hoje, existem muitos agentes literários que vivem somente de vender autores estrangeiros no Brasil. O que ela viu foi a oportunidade, pela raridade de quem o fizesse, de vender autores brasileiros no exterior.

E há demanda. Recentemente, me contou ela ter vendido um jovem autor brasileiro a uma editora europeia por um dinheiro surpreendente. Segundo Luciana, o que os editores estrangeiros querem do Brasil são autores brasileiros, que falem da nossa realidade, presente ou passada; que tenham a cor, o cheiro, o gosto do Brasil. Não por acaso Jorge Amado se tornou o romancista brasileiro mais vendido do passado. Gabriela e Tieta não moravam em Nova York. O Brasil é rico em cultura, em história, e o charme brasileiro está na moda em todo o mundo. Os autores brasileiros, porém, não perceberam isso.

Pode ser que o leitor brasileiro também tenha perdido isso de vista. Sucessos como Guerra dos Tronos, Harry Potter e 50 Tons tiraram o foco ou o interesse dos leitores, sobretudo os mais jovens, da literatura nacional. Nosso maior autor no exterior hoje, Paulo Coelho, criou a onda mística que lhe permitiu ser um sucesso mundial sem falar uma única palavra sobre o país onde nasceu. Porém, trata-se de uma exceção, e um fenômeno que hoje já vai ficando datado.

Não adianta reclamar da vida ou levantar barreiras protecionistas. A saída, mostra Luciana, é fazer uma literatura brasileira de qualidade; vendedora, sim, mas genuinamente nacional. Precisamos fazer do Brasil a potência que todos esperamos na economia, mas essa presença não existe sem estar também no cinema, na literatura e nas artes de forma geral. É possível. É importante. Vamos trabalhar.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Vai Antonio Ermírio, ficam seus valores



Em meados da década de 1.990, quando eu trabalhava no grupo Exame, publiquei uma entrevista do ex-governador Orestes Quércia, na qual este acusava a família Mesquita, dona do jornal O Estado de São Paulo, de corrupção - teria usado sua influência na imprensa para obter empréstimos favorecidos do BNDES. A família Mesquita processou Quércia pela acusação, e este processou os Mesquita de volta. O caso, em si, obviamente não deu em nada. Porém, ficou disso uma estranha amizade. Uma vez por ano, eu era chamado ao Fórum da Lapa, em São Paulo, assim como o empresário Antonio Ermírio de Moraes e o banqueiro Olavo Setúbal, os três arrolados como testemunhas. A família Mesquita e Quércia, os principais interessados no processo, nunca compareceram ao fórum. Eu, porém, Ermírio e Setúbal, estávamos sempre lá. Uma vez por ano, durante cerca de cinco anos, nos encontrávamos pontualmente no Fórum. E ficávamos batendo papo, até que o juiz, ao ver que as partes efetivamente não compareciam, acabava por nos dispensar.

Era um prazer conversar com ambos. Nesses encontros, discutia-se sempre a ética. Tanto Setúbal quanto Ermírio eram pessoas ocupadíssimas. Porém, davam valor e respeitavam a justiça em primeiro lugar. Ermírio, sobretudo, fazia questão de não se portar como costumam fazer os poderosos, que se acham pairando sobre a lei ou, esquecidos dos princípio básicos da igualdade humana, do respeito e da humildade, deixam de fazer aquilo que é obrigação de cada um. Mais do que um dos líderes da Votorantim, ao lado de seu irmão José, Ermírio se tornou conhecido pela ética do trabalho, da qual era o grande pregador. E fazia questão de ir muito além de suas obrigações. Mesmo tendo a maior companhia privada do Brasil para tocar, desdobrava-se para fazer seu trabalho administrativo - e benemerente - no hospital Beneficência Portuguesa.

Quando inaugurou o hospital São José, que pretendia transformar num centro de excelência, tive o prazer e a honra de comunicar a ele que receberia o título de Paulistano do Ano, concedido pela revista Veja S. Paulo, que me pediu para escrever um perfil dele. Hoje, esse perfil se encontra publicado em livro ("Eles Me Disseram, Editora Saraiva/Versar). Nessa ocasião, em que me recebeu sem muito apreço pelo prêmio, como por qualquer prêmio, mas atencioso com o jornalista e feliz com a realização do hospital, "doutor Antônio" se deixou conhecer um pouco mais.

A morte de Antônio Ermírio, aos 86 anos, assim como a de Setúbal, deixa a marca de um brasileiro incansável, patriota e exemplar. Rico como era, mas levando uma vida relativamente espartana, totalmente voltada para os 9 filhos e o trabalho, ele se tornou líder pelo comportamento. Uma breve experiência na política mostrou-lhe que esse mundo não lhe servia, e que fazia mais pelo país como simples cidadão e empresário. Avesso à demagogia, criticava políticas assistencialistas, como a do Bolsa Família. Seu foco era a geração de emprego e a valorização do cidadão pela educação e o trabalho.

Sem Ermírio, fica-se com a impressão de que o Brasil perdeu um de seus pilares. Porém, se os homens vão, seus valores ficam. O Brasil precisa de muitos Ermírio, que lutem pela saúde, educação e trabalho de forma honesta e incansável. Pessoas que se orgulhem de pagar impostos e capazes de doar parte de seu tempo e capacidade às causas coletivas. Pessoas que prefiram às vezes trilhar o caminho mais difícil, pelos frutos mais duradouros que renderão no futuro, do que ceder às facilidades momentâneas ou à tentação do golpe empresarial ou eleitoreiro.

Não vou ao seu velório, nem ao seu enterro. Vou trabalhar, a melhor homenagem que neste momento poderia lhe prestar. Ermírio para mim está vivo, pois sua missão nunca se acaba, mais importante do que nunca.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

A redescoberta do Brasil

Meu novo livro, que sai pela Editora Planeta: a revisão da descoberta do Brasil, uma história épica, irônica, às vezes fantástica, com prefácio de Laurentino Gomes



Por muito tempo, sem entender bem os motivos secretos que por vezes nos fazem agir, colecionei livros e material sobre a descoberta e a colonização do Brasil. Obras dos primeiros cronistas, ensaios, teses, livros de História. Mapas, desenhos, gravuras. Por alguma razão, sempre tive vontade de rever o começo do Brasil, que sempre me pareceu uma história épica, irônica, às vezes meio fantástica. E que também sempre me pareceu muito abreviada nos livros de História, às vezes mal interpretada, ou ainda despida das cores da realidade.

Temos grandes obras teóricas, ou ensaísticas, como de Sérgio Buarque de Hollanda e Darcy Ribeiro. Temos muitos livros didáticos. E temos livros de história escritos no passado mais distante, sem os mesmos recursos de hoje, com o acesso que há à informação e uma visão mais contemporânea dos fatos. E eu queria reconstituir a história do Brasil como numa grande reportagem, que fosse algo mais vivo, mais próximo da verdade, em que se pudesse não apenas entender como ver o que aconteceu.

Neste ano, em que tive oportunidade de voltar a escrever, meu livro sobre as origens do Brasil começou a surgir. Há duas semanas, coloquei ponto final, entre orgulhoso e desancado por meses pregado à minha cadeira Aeron. O trabalho de reconstrução, ou de restauração, foi muito enriquecido por uma sorte conjuntural. Graças à internet, muitas obras raras e antigas se tornaram disponíveis para consulta, dos historiadores clássicos aos textos originais de jesuítas e exploradores. Aos poucos, fui refazendo o percurso de nossa história. E, pela primeira vez na vida, creio ter entendido, de fato, o Brasil. Da maneira como precisa ser feito: desde as raízes.

Aos poucos amigos com quem conversei nesses meses de trabalho, expliquei por que coloquei isso na frente de escrever ficção. A ficção preenche com ajuda da imaginação os espaços vazios entre os acontecimentos, coloca vida, emoção e gesto nos personagens. E temos, na descoberta do Brasil, personagens monumentais. Mas ela não pode fazer isso à custa de erros ou interpretações equivocadas da história. Talvez eu ainda venha a escrever um romance sobre a colonização do Brasil, mas para isso precisava primeiro estudar a fundo e entender o que aconteceu. Com isso, espero dar também uma contribuição do jornalismo contemporâneo ao entendimento da nossa história.

Hoje em dia, devido ao trabalho de jornalistas como Laurentino Gomes, estamos modernizando a história do Brasil, revendo nosso passado, para tirar dele a poeira e as deturpações, em busca de uma visão mais realista e profunda do país. A revisão da História é uma prova de que o passado pode mudar. Com uma visão mais moderna, informação e novos achados, revemos o que aconteceu, tanto os fatos como a interpretação dos fatos. Laurentino, que faz isso muito bem, e entende a importância desse trabalho, que é coletivo, gentilmente aceitou a tarefa de escrever uma apresentação deste novo livro.

O livro sairá apenas no começo do ano que vem, pela Editora Planeta. O lançamento coincidirá com as comemorações do aniversário de 450 anos da cidade do Rio de Janeiro, que foi um marco fundamental na colonização portuguesa do Brasil. A partir da fundação do Rio, por paulistas e portugueses, é que a costa brasileira efetivamente se tornou uma colônia portuguesa. Por isso, essa reconstrução do Brasil é também uma homenagem à cidade que, além de maravilhosa, tem uma importância capital em nossa história e na cultura brasileira.

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Redford e Fonda: o bom finalmente é marginal



Nos últimos tempos, assisti a três grandes filmes, estrelados por astros do cinema que tiveram seu auge nos anos 1.960-1970: Robert Redford e Jane Fonda. Ambos têm muita coisa em comum. Representaram no passado uma geração de artistas ligados nos Estados Unidos aos movimentos de protesto, à contracultura, e mesmo assim sempre foram estrelas do cinema mainstream. Ambos foram sempre celebrados por sua beleza na juventude. Ambos protagonizaram alguns grandes clássicos do cinema. Ambos, especialmente Jane, filha de outro astro, Henry Fonda, são tão parte da indústria do cinema quanto a Paramount ou a 20th Century Fox.

Agora, eles têm mais coisas em comum. Uma delas é que continuam em grande forma. Ambos envelheceram bem. E têm feito bons filmes.

Redford, que criou e promoveu o Sundance, maior festival de cinema alternativo, e foi celebrizado por clássicos como Butch cassidy & Sundance Kid, ou Todos os Homens do Presidente, fez recentemente dois filmes excelentes. Um deles, Sem Proteção (cuja romance, de Neil Gordon, lancei no Brasil, como editor da Saraiva), conta a história de um ex-guerrilheiro foragido que é obrigado a revelar sua identidade por conta de um problema com o filho. Seu filme mais recente, Até o Fim, é uma poderosa história sobre um náufrago que praticamente não precisa de palavras para ser contada.

Fonda está em Paz, Amor e Muito Mais, uma comédia sentimental primorosa, em que faz um papel bastante ligado a ela mesma. A estrela de Amargo Regresso, Julia e outros papéis que lhe deram 7 Oscars, agora já uma senhora, vive a mãe de uma advogada que se ressente de sua opção pela vida hippie, a vida sexual livre e a plantação de maconha debaixo da casa, mesmo que tudo isso já pareça fora de moda. A pergunta que a personagem faz à filha (“o que fiz de tão grave que não posso ter o seu perdão?”) ressoa alto para gente como eu, que se coloca a mesma questão diante de familiares que nunca deixam de alimentar a raiva ou rancor.

Redford e Fonda têm ainda uma terceira coisa em comum. Nenhum de seus mais recentes filmes entrou em grande circuito. Mesmo sendo ótimos, passaram direto para a TV a cabo ou o DVD, onde podem ser vistos hoje. Finalmente conseguiram, de fato, ser alternativos, ou marginais. Seus filmes nem sequer chegaram aos cinemas.

Claro que isso se explica. A disputa hoje por espaço nos cinemas é muito grande. E os executivos do cinema talvez tenham outras prioridades. Talvez achem que os grandes astros do passado não tenham mais o mesmo apelo. Talvez os filmes que eles fazem hoje sejam finos demais para a maior parte do público atual. Talvez hoje as pessoas prefiram menos arte, e mais entretenimento. Talvez as pessoas se interessem cada vez menos pelo relacionamento humano, e procurem no cinema somente qualquer coisa cheia de efeitos especiais. Talvez a Humanidade tenha caído um degrau na escala evolutiva em certos aspectos.

De todo modo, Redford e Fonda continuam aí, para quem quer diversão e arte. Se a mídia digital trouxe um grande bem, é a possibilidade de se ter acesso a tudo, de alguma forma. Inclusive ao que é vintage e o que é bom.


Os tigres e nós, os imprudentes



Uma vez fui ao Circo Garcia, em São Paulo. Estava passeando do lado de fora, na hora do intervalo, e vi o dono do circo sentado num tablado, ao lado de um tigre branco, apoiado nos quatro cotovelos.

- Quer dar um abraço nele? - ele me perguntou, com sotaque castelhano.

Meio ressabiado, fui lá. Dei um abraço no tigre. Foi gostoso, um gatão peludo, mais aquela sensação do perigo. Perguntei se o tigre tomava algum remédio pra ficar calminho. O homem ficou bravo. Balançou a varinha e fez o bichão ficar de pé, para mostrar que estava bem esperto. O tigre levantou nas patas traseiras, ficou maior que um armário, um armário siberiano, e colocou as mãos nos ombros dele.

O menino do zoológico de Cascavel foi imprudente. Assim como o pai dele. Todos não somos, alguma vez na vida? Talvez ele tenha tido sorte. Saiu com vida.

Pensamentos de quem já abraçou um tigre.

PS: E o zoológico, não foi imprudente, de fazer uma jaula assim acessível e sem fiscalização? Estão jogando a culpa no pai, mas e eles?

Edir Macedo e o Templo de Salomão



Eu sou um dos pouquíssimos jornalistas que já tiveram a oportunidade de entrevistar e conhecer pessoalmente o bispo Edir Macedo. Fui recebido por ele quando trabalhava no grupo Exame, anos atrás. Ele havia acabado de comprar a TV Record e, depois de muita insistência, concordou que eu escrevesse um perfil falando dele, de sua igreja e da maneira como a organizava.

Edir chamava a atenção já no aperto de mão. Vítima de uma má-formação, ele possui em ambas as mãos o polegar diminuto e a pele escamosa; a sensação foi de que eu apertava uma rã. Parece apenas um detalhe bizarro, mas a deformidade de Edir tem um papel fundamental em sua história pessoal. Ele se culpava, ou a genes ruins, por ter tido uma filha com lábio leporino. Buscara ajuda na igreja católica, mas não encontrava consolo. Nas reuniões às quais ia, percebeu que mais ajudava as outras pessoas do que era ajudado. E resolver fundar sua própria igreja, primeiro subindo nas favelas do Rio de Janeiro, depois pregando no seu primeiro centro de culto, uma loja aonde antes funcionava uma funerária.

A igreja criada por Edir é um reflexo dele mesmo, uma panaceia que junta retalhos de outras fés. Embora sua base seja o Evangelho e a figura de Jesus, como a maioria das seitas pentecostais, Edir misturou outros elementos, da encenação do candomblé, com o exorcismo de pessoas supostamente tomadas pelo demônio, às raízes judaicas do Velho Testamento. Lá está o templo de Salomão, conhecido como o “rei da sabedoria”, na verdade uma figura controvertida na própria visão bíblica. No Livro de Salomão, a sabedoria terrena na verdade é vista criticamente, como a “vaidade das vaidades”, em oposição à simplicidade da fé.

Sem importar-se em ser um teólogo capaz de fazer sentido, Edir é na realidade um motivador de pessoas – aí reside seu talento. Essa virtude lhe permitiu não só conquistar acólitos como também ser um extraordinário formador de quadros capazes de ampliar seu raio de ação. É impressionante sua capacidade de produzir “bispos” e pastores fiéis ao seu discurso, gestual e ideias. Graças ao seu trabalho de RH, Edir fez a Universal prosperar rapidamente no Brasil e mundo afora.

É também um pastor com tino de empresário. Para mim, reclamou que a igreja era vista pela imprensa ingenuamente como uma exploradora do povo mais pobre. Para começar, dizia que não era o miserável que sustentava a Universal. Na verdade ele enxergara um mercado: o trabalhador que tinha emprego e renda, mas nenhuma perspectiva de subir na vida, por falta de oportunidade. Seu discurso sempre foi de que esse trabalhador pode conseguir mais, se tiver fé; ele tem dinheiro para pagar o dízimo, e a fé que o inspira é uma “fé de resultados” capaz de levá-lo a uma vida melhor.

A ideia de que ganhamos um lugar no Paraíso além da vida, pregada pela Igreja Católica, nunca foi suficiente para Edir. Ele sempre acreditou que a igreja tem de dar respostas para o ser humano ainda em vida. Sua igreja é pragmática e não há dúvida de que ajuda muita gente. Edir é polêmico porque é impossível medir a relação entre o benefício que sua igreja traz aos seus acólitos e o quanto do dinheiro arrecadado vai em benefício pessoal de seus bispos e pastores. Edir não vê nisso conflito de interesses, porque nunca pregou o discurso da vida ascética nem defendeu qualquer espécie de voto de pobreza.

Edir já foi preso por falsa ideologia, mas não apenas foi solto como o juiz que mandou prendê-lo (por sinal com um nome bíblico, Abrão), acabou sendo afastado para um forum na periferia de São Paulo - foi para a geladeira. O que era uma suposta defesa do público empreendida pelo justiceiro togado acabou virando, aos olhos do Judiciário, uma inútil perseguição. Não se pode subestimar as pessoas que seguem a Universal, que têm o direito de escolher, apoiar, pagar e professar a fé que quiserem, por mais descabida que possa parecer. E assim Edir vai conseguindo edificar o seu império, do qual o Tempo de Salomão, construção de proporções bíblicas numa das zonas mais abandonadas do centro de São Paulo, é apenas o mais novo, extravagante e significativo símbolo.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

O que mudou no futebol - e a seleção não entendeu



O que mais impressionou na última Copa do Mundo foi a compleição física dos jogadores de todas as seleções, destacada pelas camisas colantes, que fizeram a alegria da torcida feminina. Com a ajuda dos computadores, ficamos sabendo que os atletas corriam entre 8 e 13 quilômetros por partida. É mais ou menos o que corre um maratonista, dentro do tempo de uma partida de futebol.

O desenvolvimento físico dos atletas fez o jogo se tornar mais dinâmico. É preciso passar a bola rápido, porque com a capacidade física aumentada, o adversário chega mais depressa para tomar a bola ou se antecipar. A bola tem de sair mais forte - no time da Alemanha, cada passe parecia parecia mais um chute a gol.

Com a transformação dos jogadores em atletas olímpicos, diminuíram os espaços em campo. Com isso, além da velocidade da bola para o passe, uma jogada que havia algum tempo andava desaparecida do futebol começou a retornar: a tabelinha. É preciso tocar a bola rápido e tramar em jogadas curtas para se livrar da floresta de adversários que rapidamente recompõem a defesa. O futebol de campo se aproximou do futebol de salão, onde os espaços são exíguos.

Esses são os elementos principais que faltaram ao futebol brasileiro, que caiu diante da Alemanha não apenas por falência psicológica. Caiu, e feio, porque os alemães jogaram um futebol adequado às condições do esporte hoje. A maioria dos gols alemães veio de trocas rápidas de passe. Os gols alemães e o próprio resultado do jogo foram de futebol de salão, um esporte que os brasileiros inventaram. Mas não percebemos sua importância no futebol de campo de hoje.

O Brasil jogou um futebol mecânico e antigo, pesado na defesa e lento na retomada do ataque. Com tempo para se fechar, os adversários dificultaram a ação dos nossos atacantes. O Brasil não precisa apenas se reerguer moralmente. Temos de entender que nós inventamos as qualidades que são necessárias no futebol moderno e voltar a praticá-las. A troca de bola em espaço curto, o drible, a troca rápida de passes sempre foram características do futebol brasileiro. E hoje vemos isso mais nos times europeus que no Brasil.

Gareca, o técnico argentino do Palmeiras, disse aos jogadores argentinos que está trazendo para o clube que se darão bem no futebol brasileiro, porque aqui os adversários dão muito mais espaço para jogar. O técnico da Fiorentina, Vincenzo Montella, que veio disputar um amistoso com o próprio Palmeiras no Brasil, disse o mesmo. Não é coincidência. Eles observam. E têm razão. Graças a técnicos incapazes de enxergar o que está acontecendo, esquecemos de jogar o nosso próprio futebol. Assistir aos jogos do Brasileirão, depois da Copa, virou uma chatice. Parece que as partidas são em câmera lenta.

Dar espaço na defesa e subir sonolentamente para o ataque são a antítese do futebol moderno, nestes tempos em que qualquer jogador poderia estar disputando a prova de 100 metros rasos ou a meia maratona. Ou o Brasil enxerga isso, ou continuaremos a ter dificuldades diante de seleções que sempre foram menores, como Chile e México, e apanharemos feio daqueles que, além dessa dinâmica, possuem também algum talento.

A Copa não foi apenas uma lição moral. Temos de aceitar que foi também uma aula de futebol.

A bestialidade humana



Há um fogo cruzado na imprensa e nas redes sociais,pró-israelenses dizendo que a culpa é do movimento palestino terrorista Hamas, pró-palestinos dizendo que a culpa é dos israelenses. Enquanto isso, ontem morreram dezenove crianças num bombardeio na faixa de Gaza, enquanto dormiam num abrigo da ONU.

A morte de crianças revela a única verdade, que abrange um e outro lado da disputa: todos são culpados. Uma vez que a intolerância e obscurantismo se armam, e se passa à guerra, sob qualquer pretexto, todos os lados perdem a razão. A guerra mostra apenas a bestialidade humana, nossa natureza mais feroz, aquela que deveríamos ter controlado quando decidimos levantar a cabeça, ser diferentes dos animais e construir uma civilização.

São criminosos os que colocam civis como escudo para terroristas, como são criminosos os que não se importam com qualquer tipo de barreira para eliminar o inimigo. São criminosos os indivíduos que instalam o terrorismo, e é criminoso o terrorismo de Estado.

Em pleno Século XXI, em que tantos avanços foram feitos graças ao pensamento iluminista e à tecnologia, a maior ameaça mundial continua a ser o barbarismo oriundo da intolerância e do radicalismo religioso, que remontam à era tribal. Eu, que estudei a Bíblia para escrever um romance sobre a formação do povo judeu (O Homem que Falava com Deus), pesquisei na Jerusalém de hoje costumes e ideias preservados há milênios para produzir um romance histórico, porque os componentes mais primitivos da beligerância religiosa estão todos lá.

Os judeus cultuam o mito de uma raça pura, advinda de um único ancestral, escolhida por Deus, e fundaram ao redor desse mito uma Estado militarizado voltado para a guerra e disposto a tudo para prevalecer. Um grande livro, que tive a oportunidade de lançar como editor (A Invenção do Povo Judeu, do professor judeu Shlomo Sand, um heroi de guerra, professor de História na Universidade de Tel Aviv) mostra como na verdade os judeus são um povo miscigenado, formado ao longo dos séculos, que bem poderia entender suas raízes históricas para construir ao seu redor um mundo mais pacífico.

Por sua vez, os palestinos, que sempre estiveram por ali mesmo, também foram incapazes de conciliar suas crenças com a tolerância na vida terrena. Ainda mais agora, em que o radicalismo islâmico produziu uma força tão cega e feroz quanto a de seus adversários.

Este planeta é pequeno para a ambição humana. A incapacidade de dividir, de conviver, de tolerar, de respeitar as ideias, crenças e costumes do próximo sempre foram nossa perdição. Estamos de volta às cruzadas, quando os guerreiros usavam lanças e travavam batalhas a cavalo, pois o problema continua o mesmo.

A pobreza crescente faz com que a população carente se apegue às ideias mais retrógradas, patrocinadoras do único culto universal, que é o culto da raiva. E o pobre é, no fim das contas, a maior vítima desse tipo de disputa. Sim, porque os ricos não estão lá, morrendo em abrigos, ou levando tiros nas trincheiras.

Como desarmar os espíritos, quando chegamos a este ponto? Como levantar bandeiras de paz? Como restituir a civilidade a uma sociedade retornando à bestialização completa, desta vez não com pedras e espetos de pau, mas com mísseis de longo alcance?

Olhemos para os corpos das crianças, amontoadas como lixo entre os escombros. Ali está a resposta.