domingo, 4 de setembro de 2011

Ao Ruy não se diz adeus


Ruy Mendes Gonçalves, um dos homens mais importantes do mundo do livro, não gostava de ler. Era formado em administração de empresas, e deu uma contribuição importante para fazer da Saraiva uma das maiores editoras do país, e a maior rede de livrarias do Brasil, com uma centena de lojas, a maior parte delas megastores, conceito que introduziu no país. Acionista da empresa, membro do conselho de administração, ex-principal executivo, sua vida era fazer esse negócio dar certo - o que muita gente que gosta de livro, mesmo gostando, e muito, não conseguiu.

Dizia fazer uma parceria como poucas com o sr. Jorge Saraiva. Admirava o sócio e amigo por sua sabedoria, inteligência, equilíbrio e honradez. E acreditava que ambos se completavam, pois via em si mesmo mais ênfase em outras qualidades: humildade, persistência, capacidade de trabalho e decisão. Com isto, mais do que qualquer outra coisa, ambos ergueram ainda mais um negócio sólido, que mesmo quase centenário se revela hoje ainda o mais capaz de enfrentar as rápidas mudanças requeridas por um mercado em franca mutação.

Porém, o que Ruy deixou ao morrer sábado, em decorrência de câncer, não foi só uma parceria e uma companhia bem sucedidas - ao menos para aqueles que tiveram a sorte de conviver mais perto dele.

Ruy foi um garoto enjeitado. Conheceu seu pai quando tinha 9 anos - e teve com ele uma convivência curta, porque o pai partiu cinco anos depois, vítima de leucemia, a doença que foi uma sombra para Ruy a vida inteira, e que no final também enfrentaria. Para crescer, em todos os sentidos, Ruy dependeu sempre de ajuda. Por isso, o Ruy essencial era um homem grato - a todos os que o ajudaram, e à vida, que não o abandonou.

Como decorrência, ao longo de sua vida inteira, sua principal característica foi a fidelidade, o reconhecimento, o senso de justiça, e a generosidade com que procurava ajudar os outros, ou devolver, na pessoa de quem encontrava pela frente, tudo o que havia recebido.

Ruy adorava o time do São Paulo. Não era apenas uma paixão futebolística. Lembrava de quando o pai, na sua tão curta convivência, o levava ainda garoto aos campos do Paulistano, que viria a ser o São Paulo de hoje. Para ele, o São Paulo era mais que futebol: era a lembrança do pai, era a ligação afetiva com as pessoas, era a família que ele nunca teve.

Teve que construir uma família para si. E construiu uma enorme. Ao morrer, contava não só com seis filhos, genros, netos e agregados, mas os milhares de colaboradores da Saraiva e os amigos que encontrou pela vida, em quem sempre deixava uma lembrança, um sinal, uma história.

Conquistou tudo o que queria - e mais do que imaginava - pela tenacidade. Como os estudos quem lhe pagava era o tio, um presente da sorte, ele sempre foi aquele que tinha de se esforçar mais do que os outros, porque nada lhe vinha de graça; tinha de corresponder, como uma forma de agradecer. Passou a vida se esforçando, correspondendo, agradecendo e construindo coisas melhores do que as que lhe entregavam.

Criava metas importantes, e não desistia. Encontrava gente desanimada, e a levantava com seu ânimo admirável. Diante das dúvidas, ele decidia. Chamava para si a responsabilidade. Gostava de encontrar pessoas que fizessem bem o seu trabalho. E procurava nelas as qualidades que cultivava em si mesmo: perseverança, trabalho, humildade, honestidade e qualificação.

Aos 70 anos, diante da doença, e da vontade de escrever um livro de memórias (O Serelepe, Editora Saraiva), conquistou a última coisa que lhe faltava: tendo passado a vida envolvido com números e pessoas, passou a encontrar prazer no hábito da leitura.

Um homem como Ruy sempre fará falta. Mas ele deixa como herança seu exemplo de sabedoria, a sua capacidade de decisão, a sua fortaleza moral, a sua habilidade em incentivar e liderar pessoas, o seu interesse pela vida, que o fazia sempre enxergar à frente, e tomar as decisões mais corretas - ou corrigir os erros antes dos outros.

Há muita gente que viveu com Ruy e partilhou da sua escola. É essa gente, que o admirou e lamenta sua falta, que herdou dele mais que uma saudade: guarda a capacidade presente de ajudar a levar adiante o seu trabalho.

domingo, 15 de maio de 2011

Perguntas na China

Uma tarde com o pequeno André e João na Liberdade. A rua dos Estudantes, onde eu nasci, as lanternas na rua, a feira, comer no tatami com o hashi de elástico para crianças, André adorou tudo. Rolou pelo tatami, comeu yakisoba como se fosse macarronada italiana. No final, apertado de tanta laranjada, perguntou à mãe.
- Tem banheiro aqui na China?
Andamos pela rua, entramos para comprar coisinhas gostosas e exóticas no supermercado japonês. Curioso, André sai fuçando pela loja e acha uma portinha que dá para uma despensa meio escura. Vai abrindo primeiro, pergunta depois:
- Mãe, aqui é que ficam os bandidos?
Fomos de metrô, para André andar de trem (segunda vez na vida) e matar saudade de Nova York, quando o menino hoje com quatro anos ainda estava na barriga da mãe e caminhávamos pela cidade aos domingos. Para ir embora, pegamos um táxi.
- Moço - disse ele ao motorista. - Vamos voltar agora para o Brasil?

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Saudades de escrever. Vou voltando, aos poucos.

domingo, 3 de abril de 2011

Quixote

O escritor é muitas vezes um Quixote, pois não é fácil ser contra tudo e contra todos o tempo todo. Porém, assim é seu espírito, pois se há algo de comum entre todos os que escrevem é a sensação de que mais vale passar a vida de lança em riste contra moinhos imaginários que levar a vida ruminante dos conformados.

sábado, 12 de março de 2011

A presença do passado

O México é um sítio arqueológico: por toda parte, se sente a presença do passado. As pirâmides, próximas da cidade do México, uma cidade grande como São Paulo, com menos prédios, por temor dos tremores - estruturas reforçadas, com colunas cruzadas, para suportar abalos símicos como os que já resultaram em tragédias coletivas. O vasto parque, cercado por montanhas vulcânicas, cortado por canais, onde no passado havia um grande lago, e no lago uma grande ilha, na qual vivia o grande povo azteca - os mexicas, de onde os mexicanos tomaram seu nome. Os espanhóis varreram a cidade azteca do mapa, demoliram seus templos de pedra, passaram a fio de espada seu orgulhoso imperador, que vestia um cocar de penachos azuis e liderava um povo guerreiro que subordinara seus vizinhos ferozmente: mas de alguma forma pode-se sentir seus fantasmas ali.



Do alto do hotel Nikko, pela parede envidraçada de onde eu avistava esse cenário em minha passagem relâmpago pela cidade, não sabia que encontraria ali meus próprios fantasmas. Numa manhã livre, apenas algumas horas, decidi visitar o museu antropológico, a quinze minutos de caminhada; queria ver as esculturas toltecas, maias e de todos aqueles povos bárbaros que habitaram a América Central; e a grande sala mexica, com suas paredes de pedra negra, onde atrás de um vidro está o cocar de Moctezuma, que teria sido dado de presente a Cortez, seu algoz, antes da traição dos visitantes conquistadores e cobiçosos; e, no fundo do salão, sob o jato de luz que jorrava de um spot no teto de pé direito altíssimo, a Pedra do Sol, peça mais importante da coleção, pela concentração de significado, materialização da teoria circular da vida para os aztecas, com os ideogramas das estações, que giram ao redor do deus guerreiro, segurando na mão dois corações sangrando - seu almoço ou seu jantar.

Fui embora, impressionado; passei pela ala central do museu, a céu aberto, com um lago povoado da vegetação nativa que ao tempo mexica abundava no lago de Tenochtitlán; passei pela grande coluna azteca com um chapéu metálico, ao redor da qual jorra uma cascata permanente, como um véu d'água circular, descendo sobre o chão; saí em direção às barracas dos camelôs, que ficam diante do museu à espera dos turistas, vendendo máscaras coloridas de luta livre, flautas andinas, canecas pintadas. De repente, parei: ali estava, miniatura esculpida em pedra verde, imitação da obsidiana, produto mais precioso do lendário passado mexica, uma réplica da Pedra do Sol. E me lembrei de que minha mãe me dera uma peça como aquela - ou melhor, aquela peça, provavelmente comprada naquele mesmo lugar, tantos anos antes, quando voltara de uma viagem ao México; sempre vinha com alguma lembrança, ela que colecionava colheres turísticas e outras quinquilharias, uma maneira não somente de mostrar apreço aos outros, mas de contar de si mesma; logo ela, que falava muito, mas pouco dizia realmente de si.

Caí em mim: eu andava pelos lugares de minha mãe, os mesmos lugares, o mesmo museu, a mesma calçada, a mesma barraca. Olhava para aquilo como ela tinha feito; saí dali a sentir aquela presença, como a sentiria novamente mais tarde ao ver, no aeroporto, às três da manhã, na vitrine da madrugada, o sombrero negro, como o que ela também me trouxera, com certeza comprado ali mesmo - quem compraria um sombrero, aquele trambolho para o transporte, exceto no próprio aeroporto, já perto de embarcar?

Tomei o avião pesado de sono e de alma; ali minha mãe tinha feito descobertas, as mesmas que eu; encarara os despojos místicos mexicas, talvez com o mesmo assombro; as salas onde abundavam os sinais da religiosidade mexicana, pobre, colorida, e ao mesmo tempo sombria, com seus esqueletos e espantalhos e xamãs; um povo que mistura vida e morte, e que nisso talvez tenha sabedoria, eu que hoje percebo, com a memória de minha mãe, como a morte está mesclada à vida, nos acompanha, não sai de nós; a morte dos outros, com quem temos de aprender a viver, e a nossa morte, antes que nossos filhos passem sobre as mesmas calçadas, talvez fazendo as mesmas perguntas.

Minha mãe faleceu há dois anos, mas de certa forma nada passou; ela continua dentro de mim, eu a vejo nas sombras, nos lugares que passo, no prato que como, em palavras que ouço; na reza do meu filho, que ensinei a rezar como ela me ensinou ("proteja papai, mamãe, eu e tooodas as criancinhas do mundo", e tinha que ter aquele "tooodas as criancinhas do mundo").

Tenho vontades de chorar, tenho ganas de revolta, tenho crises de impotência, por não poder voltar atrás; tenho ódio da crueldade divina, que nos coloca no mundo para conhecer a felicidade máxima e nos tirá-la; artífice de um mundo efêmero, onde toda a esperança é sempre provisória. Me pergunto todos os dias, olhando o riso do meu filho, como é possível ser feliz depois de se descobrir o sofrimento da perda sem retorno; a alegria das crianças nos ilumina, nos conforta, é o que nos salva, é um pouco de saúde no meio da loucura, mas lá dentro fica uma sombra, como se fossemos agora somente um resto do que fomos.

Minha vida com minha mãe não foi perfeita, brigávamos como inimigos, ela tinha um amor destrutivo, egoísta, insensível e feroz; era no entanto o maior amor que eu conheci, violento e voraz; era, de todo modo, o único amor de mãe que eu tinha. Eu fui tudo o que ela não queria para mim, por isso conspirava contra minha felicidade, a ponto de me confundir entre o amor e o ódio que eu lhe devotava, talvez em igual medida; descobri, porém, que nem com a morte de minha mãe me separei dela; continuo a conviver com os mesmos conflitos, a dialogar com ela, porque ela não está apenas na minha carne, no verde dos olhos, nos cabelos claros, nuns jeitos e manhas que se apanha às vezes em fotografia; ela está dentro de mim, companhia permanente, que salta diante dos meus olhos a qualquer instante, como no México, no México de seus fantasmas vivos - mais vivos, talvez, do que nós mesmos, porque os fantasmas, esses sim, são para sempre.