sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Um livro curtido no tempo


A história de um romance que levou dois séculos para poder existir e sete anos para ser escrito

Não sei bem ao certo quando comecei a escrever meu primeiro romance, Filhos da Terra. Talvez tivesse começado ainda criança, quando ouvia as histórias de meu avô José.O mais certo, no entanto, é que tenha começado naquelas férias de verão, em 1983.

Eu tinha 19 anos de idade. Ainda estava fazendo duas faculdades, jornalismo e ciências sociais, e pude aproveitar uma semana inteira de férias para visitar vovô, a bordo de um Fiat 147 preto, com rodas de liga leve e volante de couro costurado, com a lataria meio carcomida pela ferrugem. Era o meu primeiro carro, comprado com o dinheiro apurado de maneira esparsa, trabalhando como modelo em comerciais de televisão.

Vovô se mudara para uma pequena chácara em Suzano, junto com minha tia Malfisa, com quem passara a viver sozinho desde a morte de minha avó, seis anos antes. Ficava a pouco mais de meia hora de carro de São Paulo, pela rodovia dos Bandeirantes. Mais dez minutos por uma estradinha vicinal, que se infiltrava sinuosamente pelo que se tornara com o tempo um vasto campo verdejante. Ali, desenhava-se o mosaico de propriedades dos pequenos agricultores, que formava o cinturão verde da metrópole, abastecedor do mercado central de frutas e verduras.

Aquela chácara era historicamente um refúgio. No final da década de 1960, minha tia a cedera a amigos que eram militantes de esquerda, para esconder-se da polícia política, durante o regime militar. Meio aposentada, foi dar aulas na escola de Suzano e mudou-se para lá, numa espécie de exílio involuntário para vovô. Como titia não se casara, ou melhor, se casara tardiamente e se separara do marido de forma meteórica, encarregara-se ela, entre os cinco filhos de vovô, de cuidar dele - já passado dos noventa anos de idade. Tia Malfisa desbastou o matagal ao redor da asa, a estrada de terra que ligava a chácara à estradinha de asfalto foi alargada e clareada, e o lugar se tornou mais aberto, embora ainda bastante retirado.

O terreno já limpo era um aclive onde tia Malfisa e vovô lutavam com suas parcas forças para que brotasse um pouco de grama e um rarefeito pomar. A casa, com o chão de cimento queimado vermelho, típico das casas de interior, uma cozinha pequena, uma sala ampla e um puxado de alvenaria recém-construído, onde ficava o novo banheiro e os dois quartos, era mobiliada com os móveis de madeira negra que outrora ocupavam a casa de vovô quando minha avó Dileta ainda vivia: a cristaleira da sala, a pesada mesa de pernas em X, as cadeiras de espaldar trabalhado e uma estante de livros, alguns dos quais eu mesmo havia dado a minha tia de presente.

O lugar preferido de encontro, contudo, era a cozinha. Fresca, refrigerada pelo vento que entrava calmamente pela janela, com o filtro de barro de onde vinha uma água cristalina, aquele era o lugar para fugir ao calor tropical, sentar, ouvir meu avô cantar, o que ele mais gostava fazer. E ouvir as histórias com que ele entremeava suas cantorias, atividade em que podia passar horas intermináveis, indiferente ao possível aborrecimento da audiência e ao desgaste do corpo e da garganta, que ele combatia a partir de certa altura com pequenas doses de pinga com limão. Escarradas desobstruidoras se seguiam, para permitir que prosseguisse no seu impávido monólogo.

Digo monólogo porque a essa altura vovô José já era quase completamente surdo, o que dificultava de saída qualquer comunicação de mão dupla. Tentara utilizar diversos aparelhos para surdez, mas nunca se ajustara a nenhum. Tia Malfisa dizia que, diferente de surdo, ele na realidade não queria escutar mais ninguém. Apenas sabia que gostávamos de ouvir suas histórias, eu, minha irmã Lara e meus primos, e começava a falar de enfiada.

Possuía memória extraordinária. Podia cantar dezenas de canções sertanejas, ou “modas”, como dizem os caipiras, sem repetir uma sequer. Além disso, dispunha de um vasto repertório de canções italianas, algumas das quais raridades que ouvira cantar ainda em criança e das quais se lembrava quase à perfeição. Era um verso engatado no outro, em porfias que podiam durar até uma hora sem parar dentro de um mesmo poema. Assim foi que aprendi histórias como as dos briganti Passanante e Il Passatore, galantes e sanguinários bandidos da antiguidade, e canções dramáticas como a de Salvador Misdea, que possui talvez o melhor começo de poema que conheço, depois do célebre “As armas e os barões assinalados” dos Lusíadas: “Canto um drama terribile e funesto, da caserna de Pisa Falcone”...)

Continuei a gravar tudo o que meu avô dissesse. Passei a visitá-lo regularmente, não só com o intuito de encontrá-lo, mas de deixar um registro vivo de tudo o que dizia, agora certo de que naquele sertão onde vivera podiam ocorrer coisas realmente extraordinárias. Tomava do meu Fiat 147 e lá ia para Suzano, com meu gravadorzinho, cuja chegada ele recebia com festejos, pois a presença da máquina era sinal de audiência garantida por algumas horas. De vez em quando, eu pedia alguma coisa, ou o dirigia para outro assunto, canção ou história, munido de um caderninho onde anotava minhas observações; esse era nosso meio de comunicação, embora não surtisse muito efeito. Na verdade, ele cantava o que lhe dava na telha, e ignorava meus esforços de pedir alguma coisa em especial. Antes de começar, apenas olhava animado para a maquineta de gravação e proferia a pergunta preparatória:

- Tá ligado?

Meu dia preferido para essas visitas era o sábado. Vovô começava a dissertar por volta das duas horas da tarde, quando terminava o almoço, e podíamos ir naquelas tertúlias sem interrupção até dez ou onze horas da noite, quando, vencidos pelo cansaço e os apelos de minha torturada tia, íamos enfim para a cama.

Daquela maneira, fui juntando um farto material. Mais do que a música, o que aumentara meu entusiasmo era a visão do mundo que se revelava pelo meu avô; suas opiniões simples mas particularíssimas sobre as pessoas e o mundo; e, sobretudo, as histórias e os personagens que ganhavam vida nas suas memórias. Aí começara a nascer o romance do velho José, embora ele mesmo nunca tivesse se interessado pelo assunto. Numa daquelas tardes, por meio do uso do caderninho rabiscado a lápis preto, comuniquei a ele que estava pensando em escrever um romance, inspirado nas histórias que me contava. E pedia seu auxílio. Ao ler o meu bilhete, contudo, vovô apenas riu.

- Está pensando em escrever um romance? – disse. – Isto está em você.

Logo terminaram as férias de verão e voltei à minha rotina de estudante. As fitas com as histórias de vovô ficaram guardadas, mudando de gaveta para gaveta, sem destino certo. Muitas vezes pensei em iniciar o tal romance que havia imaginado. Seria o relato de um homem desconhecido, mas que tinha grandes coisas a contar; um homem simples, elevado à condição de herói pelas suas atitudes e pelo ambiente épico que conseguia enxergar à sua volta durante toda a vida. Eu queria tornar aquele reles José num personagem à altura do homem que meu avô via nele mesmo, e que de certa forma todo ser humano vê em si próprio. Aos poucos, comecei a transcrever as fitas, pensando simplesmente em arrumar as histórias como ele as havia contado. Seria um relato em primeira pessoa, com as expressões e maneirismos da fala de meu avô. No entanto, aquilo não tomava corpo, e eu não sabia por quê. Era jovem demais, destreinado, e teimava que aquela tinha de ser a história de José Fiorini, contada por ele mesmo.

Nos anos que se seguiram, fiz algumas tentativas de arranjar aquele texto, pouco burilado em relação ao original. Mostrei-o a algumas pessoas, que jamais demonstraram grande entusiasmo. Por cerca de dez anos, aquilo permaneceu nas minhas gavetas, como um sonho de juventude, praticamente abandonado. Ainda mais quando meu avô veio a falecer, alguns anos depois, deitado em sua cama, numa noite em que se encontrava sozinho em casa, sem que alguém estivesse por perto para socorrê-lo. Muitas vezes pensei em como teria sido essa noite, o homem sozinho, diante da morte. E mais, diante da perspectiva do esquecimento eterno. Aquilo me deixou profundamente abalado e certo de que precisaria fazer alguma coisa para trazer aquele homem de volta à vida.

Só mais tarde comecei a refletir que o romance só começaria realmente a se transformar em livro quando as histórias reais, contadas por meu avô, começassem a entrar no terreno da imaginação. Seria um passo difícil, porque não seria mais ele a narrar a história, mas eu a conduzi-la por meio dos seus olhos. Poderia aproveitar alguns trechos, idéias, personagens herdados do relato de meu avô, mas teria que inventar a maior parte de tudo, a partir de uma teia complicada, tecida por muitos personagens. A essa altura, eu já trabalhava há dez anos como jornalista; decidi abandonar um bom emprego como editor da revista Veja para que pudesse ter mais tempo de dedicação a escrever. Antes de voltar aos meus alfarrábios e às fitas de meu avô, procurei escrever algumas histórias curtas, como um treino para o trabalho que viria a seguir. Dois anos mais se passaram, até que eu me senti enfim à altura da história que considerava realmente grande.

Então aconteceu um pequeno milagre. Tantas vezes eu já ouvira as histórias de meu avô, que sequer voltei a consultar minhas anotações. Elas haviam se incorporado a mim de tal forma que por vezes eu já nem distinguia mais o que ele havia me contado de minha própria imaginação. A narrativa corria fácil, surgiam personagens, novas tramas começava a tomar forma. Eu sabia aonde queria chegar, mas não imaginava quantos caminhos surgiriam até que todos os personagens pudessem encontrar o desfecho pretendido. O livro foi ganhando corpo. Saído do zero, em seis meses tinha mais de 100 páginas. Depois de um ano, estava quase pronto, com mais de trezentas páginas. Cansado, contudo, encerrei-o abruptamente e deixei-o dormir novamente. Tinha preguiça de encontrar aquela tarefa hercúlea outra vez pela frente; adiava-a, relutava. Retomei o trabalho somente um ano mais tarde, sem rever o início, puxando o fio onde a meada acabara, de maneira a enfrentar com fôlego o trecho final.

Quando terminei, as histórias de meu avô já eram parte diminuta do conjunto do texto. Elas ganharam cores, outras histórias e novos sentimentos nasceram. Foi só então que percebi o que meu avô queria dizer, quando afirmava que aquele livro estava dentro de mim. Filhos da Terra, que então eu chamava apenas de Iusfen, o apelido doméstico de meu avô, não era um livro do desconhecido José Fiorini. Era o meu livro, sobre um homem chamado José Fiorini - um outro contador de histórias. E era um livro sobre todas as personagens que ambos vimos de forma material ou imaginária passando pela vida, como nós próprios. Com o desejo, muito íntimo, de que nossas histórias pudessem se cristalizar, registradas no papel, e ficar na memória de todos para sempre.

sábado, 2 de outubro de 2010

Da Rússia, com amor

Vinte anos atrás, os russos nem existiam. Isto é, existiam no seu mundo circunscrito, indecifrável. Ninguém fora da cortina de ferro - sim, eles eram tão fechados que se definia assim a situação - podia dizer que sabia ao certo como os russos eram.

Para mim, a Rússia era a dos livros. De Miguel Strogoff, no Julio Verne, com ursos nas tempestades sobre os urais, estradas cortadas pelas rodas da quibitca, barqueiros com suas varas a deslizar pelo Volga, os tártaros a escalavrar a terra com a pata dos cavalos.

Depois foi a Rússia romântica, do doutor Jivago e a loura Julie Christie como Lara, rosto perfeito emoldurado pelo chapéu de pele, os olhos azuis cálidos diante da neve, a simplicidade rústica da dacha onde tiveram seu refúgio de fugaz felicidade: a música de um lirismo arrebatador da balalaica. A Rússia dos girassóis e da Sophis Loren, que era italiana, mas estrelou um dos mais belos épicos do cinema. País de romances, de Karênina, de Dostoievski na sua casa de mortos, dos revolucionários bolcheviques, das tropas a descer militarmente as escadas, atropelando o povo no Potenkin. Dos palanques improvisados em os Dez dias que abalaram o Mundo.

Minha infância foi do homem na Lua pela primeira vez, e os russos não eram mais russos, eram soviéticos, a confederação comunista, e tinham chegado primeiro ao espaço: podiam inventar aqueles foguetes, eram uma potência política, econômica e social. Descobri quāo frágil pode ser uma potência, mesmo antes dela desmanchar ou cair como castelo de cartas. Mas ainda havia lá dentro a velha Rússia, aquela força dos cossacos a dançar agachados e de braços cruzados, a beleza poética das bailarinas do Beriozka a deslizar pelo palco sem mover as barras da saia, o mistério siberiano daquela vastidão que eu imaginava terminar em Vladivostok, aquele lugar que se supunha o fim do undo e que eu adorava dominar no jogo de dados e estratégia do War, um sucesso da minha infância (e de muita gente).

A Rússia quem diria hoje é capitalista e vemos russos por toda parte, estive agora em Londres e havia deles por toda parte. Em Nova York são porteiros, encanadores; se vê de longe o russo, tem cara de mafioso, bêbado, ou ambos; as mulheres são de uma beleza rústica; ou não será nada disso, sou apenas eu a fantasiar aquilo que a gente não entende muito bem.

A Rússia dos sovietes e do ideal comunista da igualdade absoluta ruiu, e com ela todas as cortinas, e o que se viu foi um êxodo de gente ignorante. E ávida de conhecer o mundo. Passaram vinte anos desde que o comunismo faliu e deu lugar a uma Rússia não apenas visível como muito mais real, porém para mim encontrar um russo é ainda como presenciar uma espécie de milagre, da mesma forma que eu veria um alien ou outro ser improvável.

sábado, 18 de setembro de 2010

As virtudes superiores

Existem as grandes virtudes e as virtudes superiores. Um estágio mais avançado de sabedoria.

As virtudes superiores não combinam com a juventude, demoram a ser alcançadas. Demandam tempo e experiência para se formar, por isso só vicejam na maturidade. E representam um novo tipo de poder.

Depois de descobrir o poder da palavra, aprende-se o poder do silêncio.

Depois de querer ser alguma coisa, queremos ser nós mesmos.

Depois de aprender a lutar, aprendemos a resignação.

Depois da volúpia, vem a moderação.

Depois de desenvolver nossos potenciais ao limite, temos de aprender a parcimônia e a modéstia.

Depois de desafiar, aprendemos a aceitar e conviver.

No lugar da persistência, vem a temperança.

No lugar das paixões e do amor, aprende-se amizade.

Isso não é envelhecer, é aprender. Quando jovens, somos menos humanos. Pensamos menos nos outros e mais em nós mesmos. Somos egoístas e acreditamos poder muita coisa. Descobrimos que antes de nós muitos já tentaram as mesmas coisas e mesmo as coisas mais impossíveis; que o sucesso em algo é apenas um recomeço para uma nova busca; que viver apenas para nós mesmos não faz sentido e todas as conquistas que servem apenas a nós se tornam vazias.

Envelhecer é se conformar, é desistir? Não. Podemos conseguir mais e melhores objetivos de outra maneira. Inclusive o de viver melhor e sermos mais felizes.

Dessa nova forma, podemos também ajudar mais os outros. A idade mostra que tudo o que fazemos não é para nós, ou pelo menos não deveria ser. Porque vamos embora um dia, e os outros ficam. Então, só há sentido real naquilo que fazemos para os outros. Não para sermos lembrados, mas como um benefício, um bem real, que mostra que a nossa presença fez alguma diferença.

Quando o homem se aproxima do limite da existência humana, vai mudando de valores, pois já não faz sentido disputar, guerrear, acumular riqueza; descobre que antes se debatia contra tudo, e agora quer seguir o leito do rio e entrar em harmonia com a existência para melhor aproveitá-la. Busca bens mais efêmeros, tanto quanto os duradouros, no seu dia a dia; como no sorriso, no abraço, na beleza do gesto. Quando já não temos muito tempo, aprendemos a paciência. Quando já não temos tanto vigor, admiramos e buscamos mais a força da vida.

A virtude superior evita que se perca tempo ou nos distraiamos com embates e buscas inúteis. E nos preocupamos menos em educar do que em estar ao lado dos jovens. Dar o exemplo ou pregar é inútil. Os tempos mudam e cada geração tem sua própria sabedoria. Os utopistas do passado, aqueles que tentam algum tipo de conservação de valores, que buscam raízes num mundo existente somente nos livros de história, a pretexto de ensinar, são os verdadeiros velhos.

A sabedoria está em não deixar de ser quem você é e mesmo assim ser alguém capaz de mudar com o tempo, adaptar-se, sem queixas nem melancolia. Continuar como uma força transformadora, porque se os tempos mudam, é por conta daqueles que um dia já foram jovens e vão envelhecendo. Os homens reclamam muito que os tempos mudaram, sem dar-se conta de que foram eles mesmos que os mudaram.

E são os melhores anos, sempre, aqueles que virão.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

O que significam os desenhos?

O que passa na cabeça ao desenhar e explica os desenhos.

Virgulino: na época eu escrevia o romance Amor e Tempestade, no qual o célebre capitão surge como personagem, senti vontade de criar uma imagem dele por alguma razão.

O porquinho: escrever sobre o sertão me lembrou vias secas, como Graciliano já tem a cachorra Baleia me ocorreu o porquinho sofredor sob o sol inclemente.

A cama com lençol de rosas: na verdade é um auto-retrato escrevendo no frio de 13 graus negativos de Manhattan sob um edredon que minha mulher comprou no Soho; estava na vitrine sob um retrato da Mirilyn Monroe e lembro muito bem não somente por causa da Marilyn como pelo fato de ter custado 500 dólares.
caravela: adoro caravelas, velas enfunadas me dão ideia de liberdade, exploração, conquista do mundo. Vivo desenhando isso.

Passeio ao lado do Hudson: onde caminhávamos quase todos os dias, ficava ao lado de casa, no Battery Park City.

A loirinha brava: ninguém em especial, apenas a fúria feminina em estado puro.

O feto com o coração: minha mulher estava grávida, acho que eu até sonhava com isso, é o primeiro retrato do Guinho (baseado num ultrassom).

A rua que termina no rio: vista da janela do nosso quarto.

O garoto gordinho: começou com apenas um círculo.

A mente livre

Quando eu estava no segundo primário, no extinto Colégio Aclimação, uma agradável casarão na Rua Loureiro da Cruz em cujo vasto terreno há hoje um imenso condomínio vertical, adorava a aula de desenho e especialmente um momento da aula de desenho: explorar o livro Criatividade. Tinha páginas coloridas, cada uma com uma função. Havia as amarelas, laranjas e assim por diante; foi ali que li pela primeira vez os microcontos de Cortázar com seus cronópios, bichinhos imaginários, e outras histórias que povoavam a imaginação. Na página azul, era descansar. As páginas brancas, se não me engano, eram para fazer o que queríamos: um estímulo a correr os lápis livremente sobre o papel.

Ainda hoje gosto desse exercício. Deixar a mente correndo livre sobre o papel. Saem garatujas, desenhos, linhas, palavras: é quase uma necessidade de descarregar o que há dentro da cabeça, e isso me faz um bem enorme. Tenho muitos caderninhos que levo comigo cheio de anotações, ideias para livros, projetos impossíveis, plantas de casas que jamais construirei, frases lembradas ou inventadas, rabiscos sem sentido e muitos desenhos.

Em Nova York, em 2006, ganhei de presente de uma amiga uns pincéis coloridos adoráveis e comecei a fazer cenários da cidade com cor. Ficaram como pequenos retratos daquele período da vida e da família, que reproduzo abaixo.

Espaço livre para criação não é só escrever: assim é que a gente funciona, movidos pela necessidade obsessiva de expressão, sem a qual entupimos ao ponto de explodir, a forma mais certa de loucura.














segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Meu romance preferido



Existem os livros preferidos dos leitores. E os preferidos de um autor, entre seus próprios livros.

A quem pergunta qual de meus livros é meu preferido, uma só resposta: Campo de Estrelas. Talvez não seja meu melhor livro, em técnica, resolução ou mesmo ambição. Certamente é o que foi pior lançado. Todos os romances de um autor falam ao seu coração. Ele é meu preferido por uma só razão: as pessoas que envolve.

A primeira delas: meu pai. Claro que o pai do livro, inspirado nele, é quase ele. Claro que a viagem do livro, entre pai e filho que juntos rumam por terra a Macchu Picchu, foi também uma viagem de verdade. Coisas da literatura, a fantasia que acrescentei ao romance às vezes me parece muito real, tanto quanto a realidade pode parecer às vezes fantástica ou fantasiosa. O mendigo misterioso, travestido de rei em farrapos, foi um personagem que vimos de fato em La Paz. Que eu e ele não esquecemos.

Meu pai diz que não se lembra de detalhes que eu conto no livro. Fatos que eu tenho como reais podem ser mesmo fruto da imaginação. E ele lembra de coisas que já me escapam. Nunca saberemos ao certo. Já lá vão mnuitos anos, há a traição da memória e a diferença de pontos de vista. Mas foi estranho esse encontro de memórias por meio do livro. Foi estranho o simples fato de meu pai ter lido o livro. Ele, que me fazia ler todas as noites, antes de dormir, quando eu era um projeto de gente (ainda sou).

Sim, meu pai lendo um livro que escrevi. E, depois de ler, me deixou uma mensagem. Esta:

"Querido filho, prezado autor Achei lindo e comovente este final. É claro que sou suspeitíssimo não apenas por ser personagem, companheiro de personagem e pai do autor. Mas sobretudo admirador do estilo e sobretudo da coragem de se revelar publicamente. Fica sendo um livro de aventuras, diário de viagem, literatura juvenil, novela romântica, tudo dependendo da página em que o leitor estiver."

*

Outro personagem caro do livro é o do médico, identificado como Roger. Houve um Roger de verdade - Eric Roger Wroclavski, que tratou do pólipo na bexiga de que fui vítima, me salvando a vida.

Eric morreu há cerca de um ano, vítima de câncer na próstata, que descobriu quando já era tarde demais - ironia cruel, caiu pela doença que tratava. Eric era um herói, que lutava diariamente acima de forças humanas para salvar a quantos pacientes podia. Não sabiamos que ele mesmo sofria do mal que combatia diariamente, pois a ninguém contou da doença. Nem à família. Nem aos médicos que com ele trabalhavam.

Fui ao hospital visitá-lo. Li para ele os trechos do livro em que aparece. Achou que eu devia ter posto o nome dele de verdade. Se eu soubesse o que ele sabia, pensei, teria escrito um romance muito melhor. Nem o mais imaginativo ficcionista poderia imaginar que o médico estava mais doente que o pacioente, e as perguntas que me fazia sobre a vida, literatura e como encarar a vida tinham para ele interesse capital. Comungávamos do mesmo medo.

Depois de saber que ele era um homem marcado para morrer desde o início (ficamos doentes na mesma época), todas as nossas conversas ganharam para mim um novo sentido. "Você devia ter me contado", disse eu. Eric riu. Mal se movia na cama, e riu. Eric salvava vidas, mas só temporariamente. Só os livros podem eternizar realmente as pessoas. Essa é a pretensão da literatura - perenizar estrelas tão fugazes com um brilho capaz de ficar no tempo. O sentido desse meu Campo de Estrelas, onde está reservado lugar para todos nós.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A Flip do povo


Durante cinco dias Paraty foi capital, tomada de assalto pela Flip, que invade suas calçadas centenárias, suas casas ancestrais e sua geografia congelada no tempo para um espantoso evento cultural. Saem de seus tugúrios em todo o mundo os autores convidados, desembarcam na cidade com sua bagagem desajeitada, en vans que se aproximam do alvo pulando nas pedras feitas para incomodar estrangeiros e invasores, mais do que favorecer a visitação; e o povo acorre em massa para ver aquela gente estranha, com ideias velhas e novas, importantes e inúteis, agudas ou enfadonhas; uns para aprender, neste país cuja sede de saber é proporcional à nossa imensa ignorância, outros apenas para aparecer, ou estar perto de algum centro de acontecimentos; uma cidade é transformada em vitrine, com todos os cantos vigiados pela imprensa, grande circo armado ao redor das tendas armadas com precisão de primeiro mundo. Filas para comprar livros, gente de mão no queixo, embasbacada diante de tanta inteligencia: é o Brasil andando, o Brasil ao qual só falta educação para decolar rumo ao verdadeiro progresso, o Brasil lindo e trigueiro da música proverbial.

Como a Fórmula 1 do saber, o circo se instala; flanam pela cidade aqueles estrangeiros de todos os matizes, autores desembarcados de outro planeta, jornalistas, editores, assessores para tudo; vagueiam com suas dúvidas, suas ânsias, sua pressa, suas questões metafísicas, sua insônia permanente, suas psicoses, sua vontade de mudar, sua esperança cetica de que num encontro de cabeças brilhantes alguma faísca de progresso se possa produzir como que por milagre; são uns crentes, os intelectuais. Desfilam suas certezas inócuas, sua vaidade anacrônica num anfiteatro onde esquecidos da cultura ganham de novo súbita importância, devolvidos à notoriedade; e quando chega o domingo, tomam suas malas e embarcam de volta para a sombra das vans, para suas noites de insônia solitária, enquanto as centenas de pessoas invisíveis, aquelas que até então estavam no segundo plano, aquelas que chamamos de povo, que nesses dias paracem ocupar anonimamente a praça, invisíveis para a mídia, para aqueles alienigenas céleres e efêmeros, as pessoas que fazem número, a massa informe à qual ninguém até então havia prestado atenção, retoma o controle de seus território, e a cidade é tomada pelo batuque de escola de samba; a alegria se espalha, como se sentisse novamente livre para ficar à vontade.

O povo volta a ser ele mesmo, distante das ideias, distante do que leva aquela gente ensimesmada a tantas perguntas, e portanto a tantas angústias; a alegria pura e simples retoma seu espaço, enquanto os varredores de rua jogam em sacos de plástico preto os restos de festas desesperadas, esforços inúteis, das utopias elitistas, das mais ilustradas ilusões.

sábado, 3 de julho de 2010

O país da alegria


Perdemos outra Copa em 2010; o Brasil tinha um técnico arrogante, um time confiante, que se dizia "um grupo fechado", e que de fato não deixou entrar mais ninguém; que não falava com a imprensa, movido por uma solidariedade interna que, em caso de vitória, teria sido força, mas na derrota fiocu só isolamento, só teimosia, só presunção.

Penso que o Brasil precisa continuar Brasil, humilde, mesmo no futebol. As crianças aqui já não aprendem a jogar em campo de terra, com bola de meia, ou de capotão; jogador de futebol é profissão séria, embora se comece nisso tão cedo; profissional não pode ser jovem, não pode fazer bagunça, nem tem muita liberdade; é uma máquina de ganhar dinheiro, produto de exportação, e sofre muita cobrança, há muita pressão.

Porém, não perdemos nossa alma: temos ainda aquela mistura, aquela reunião de talento, de garra, de força, de criatividade, de flexibilidade, de capacidade de mudança, de espírito de luta. Sabemos que não ganhamos sempre, mas que sempre seremos os que podem ganhar mais vezes. Sabemos que, mesmo após a derrota, a vida vai continuar. E que voltaremos a ganhar.
Não há ninguém no mundo melhor que o brasileiro para fazer a tristeza ir embora, não só em letra de samba, mas na vida real; já perdemos outras vezes e sabemos nos levantar; esse é um povo onde a alegria é inerente, fazemos piada e seguimos adiante.

Há quatro anos, meu filho estava dentro da barriga da minha mulher. Minha mãe estava com câncer e eu voltava para o Brasil por ela e por mim, em busca dos amigos, dos parentes, de amor e de raiz. Quatro anos depois, meu filho nasceu, cresceu, já grita "basil!", chuta forte com o pé direito, corre com a bola nos pés, faz ela parar, ajeita-a para bater, agita a bandeira nacional. Minha mãe faleceu há dois anos, mas teve a oportunidade de ver o primeiro neto nascer, e depois o segundo, meu sobrinho Theo. Pudemos eu e minha irmã lhe dar essa alegria, em meio ao tormento da luta contra a doença. Hoje, ao ver meu filho com uma camisa amarela da seleção que serviria num urso de pelúcia, choro ao pensar em como ela ficaria emocionada ao vê-lo assim; ela que também chorou quando leu o primeiro boletim escolar do neto; ela que tanto amava o Brasil; ela que, mãe e professora primária, me ensinou a escrever. Ela que acreditava que a educação mudaria este país, um desafio que ainda está diante de nós. Ela que torcia apaixonadamente pela seleção, porque para minha mãe, mais que qualquer coisa, fosse torcendo pelas meninas e meninos do volêi, do basquete, de qualquer esporte, a seleção era o Brasil, o Brasil a seleção.

Minha mãe não pode ver esta Copa; essa foi a primeira que vi sem sua força, sua alegria, sua ama brasileira; minha mãe cantava, dançava, era Brasil e carnaval; tinha luz na alma e olhos verde-amarelos como os meus e como a bandeira nacional. Seus netos correram e pularam por ela, mesmo sem ainda entender perfeitamente a fuzarca que vira esse país nos momentos de Copa. Sim, minha mãe teria chorado com a derrota da seleção, como agora eu choro, por ela e por mim; mas a Copa também nos faz olhar para a frente, para as crianças que estão no nosso regaço, que pelo menos por algum tempo ainda jogam bola como antigamente, sem pensar em mais nada, apenas na alegria lúdica do esporte, com seu sorriso de que não conhece tristeza - aquela inocência fundamental que não devíamos perder jamais.

*
Penso que tudo o que fiz foi bem feito; fico feliz por ter dado a minha mãe algumas de suas últimas alegrias; de fazer este país ter futuro, não só por ações, mas com esta criança que não conhece as regras do jogo, mas já intui os mistérios da bola; e penso que todo egoísmo é inútil, vivemos não para nós, mas somente para os outros; a vida se acaba e só viver para os outros hoje para mim faz sentido, porque são sempre os outros que ficam, sucessivamente.


Vivo hoje para os outros e acho que o Brasil devia ser assim também; porque nós ficaremos, mas o Brasil seguirá adiante; que a nossa próxima seleção esteja mais ao lado do povo, porque é para o povo, para o país, que essa alegria devia servir.

Campeões no coração


A Copa de 1982 será para sempre a lembrança de como éramos jovens, de como éramos fortes, e de como lutar contra o destino, as impossibilidades, os golpes da vida fazem da era romântica também a mais sublime.
Em 1982 eu estava na faculdade, fazia Ciências Sociais à tarde, Comunicação pela manhã, ambas na USP. Passava meu dia na universidade, com suas alamedas, sua calma de fazenda, apenas aparente; naquele tempo a escola fervilhava, eram assembléias de estudantes mobilizados contra o final da ditadura, ainda havia greves, manifestações, a vida tinha um sentido político de mobilização em nome de algo melhor: a democracia purificadora de 30 anos de ditadura militar, de porões sangrentos, de censura à imprensa, sem voto nem liberdade.
Diferente da geração de nossos pais, que tinham visto o golpe militar nascer e o enfrentaram como podiam, éramos uma geração que não queria as armas, o confronto, mais sofrimento; queríamos apenas a paz e a liberdade com a certeza das coisas irrecorríveis e inevitáveis, a certeza de que nenhum mal, nenhuma arbitrariedade, nenhuma violência faz sentido, por isso não pode triunfar.
Lembro de deixar as aulas convocado de repente para ocupar o restaurante, uma forma de criar caso muito em uso na época; lembro de ocupar a reitoria, centenas de estudantes sentados no amplo salão de entrada; lembro de estar sentado no chão no extremo daquela massa de gente, separado de um batalhão da Polícia Militar, armado como um exército, apenas por uma porta de vidro; podia olhar nos olhos dos policiais a centímetros de distância, quase sentir seu hálito do outro lado daquela tênue separação dos dois lados.
Infernizámos a reitoria e os dirigentes de toda espécie porque suas medidas atrabiliárias se confundiam com o clima de repressão geral; o Brasil começara desde 1974 a era da distensão dita gradual, mas vivia ainda sob um governo militar, eleito fajutamente num Congresso manipulado. Éramos jovens, queríamos a paz em paz, repito, mas queríamos mudar. E não aceitávamos nada imposto, tínhamos de participar, aquela era a verdadeira abertura, não só política, mas abertura de nós mesmos; descobríamos nossas ideias, nossas vontades, nossos desejos, nossas paixões, nossos ideais, descobríamos o sexo, o corpo e as sensações que davam um sentido literal, ao mesmo tempo amplo e profundo, do que se chama de universidade.
Era o começo do movimento que daria nas multidões que correriam as ruas clamando por eleições diretas, o histórico movimento das Diretas-Já, marco da democracia no Brasil e da história futura do país, fincada na liberdade e numa espírito pacífico, porém determinado, que recolocou o Brasil no seu caminho como Nação e lhe deu um lugar de tolerância, respeito à diversidade, defesa da liberdade e exercício pleno da vida perante todo o planeta.
Hoje pode parecer exagerado dizer isso, mas a grandiloquência fazia parte daqueles dias; éramos jovens, repito, e sonhávamos com dias melhores; víamos os nossos pais sofridos, o país massacrado por uma guerra silenciosa e cotidiana, e queríamos mudanças ao lado deles, com eles e por eles; não esperaríamos outra geração para ver realizados nossos projetos de liberdade, progresso e paz; não queríamos um Brasil melhor para nossos filhos, mas para nós.
Tudo isso estava em jogo naquele congresso de estudantes de comunicação em Florianópolis, uma semana de retiro, numa espécie de república estudatil instalada na universidade federal, cujo campus virou uma cidade-Estado, com leis e vida próprias. Dormíamos no chão, amontodos em salas de aula; namorava-se no meio dos outros, livremente, entre os corpos deitados na penumbra, nos corredores, no gramado; nos debates havia os que se empenhavam em parecer sérios e aqueles que, desdenhando da política, não deixavam de fazê-la; era um tempo de rebeldia, não apenas contra as instituições fraudadas, mas contra tudo, rebeldes contra a própria rebelião.
Ali discutíamos como se tivéssemos o poder de mudar tudo (e hoje vemos que mudamos: no Brasil democrático, que desfruta e crescimento continuado, de uma paz duradoura, de constituição sólida. Mesmo que ainda com graves problemas sociais que somente com muitos anos e educação poderemos ir sanando eu vejo que mudamos.)
Não havia ainda em vista a eleição direta para presidente, nem a Constituição-Cidadão de 1988, que restabeleceu a democracia no Brasil; mas a semente estava lá, no clima acalorado dos debates, mas na maneira da juventude mudar as coisas, com sorrisos no rosto, bandeiras de liberdade, abraços inesquecíveis de amizade e amor, momentos que não se perderam no tempo, porque estão hoje em dia em cada brasileiro que pode ser livre e ter uma vida melhor, ainda que não saiba direito a quem deve tudo isso.
Como um símnbolo de tudo isso, havia a seleção; era uma seleção nova, forte, vibrante, jovem. Era uma reunião de talentos, uma expressão de vitalidade e de arte como não se via desde 1970; era uma seleção de craques, que jogavam um futebol vistoso e que, como nós, tinham por dentro a certeza da invencibilidade. Talvez fosse melhor até que a de 1970; não tinha Pelé, porém tinha mais craques; no meio de campo, reunia-se uma constelação de jogadores que parecia uma seleção de todos os tempos, com Toninho Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico.
Era um time de sonhos que fazia a bola rolar preciosamente, uma equipe de zéfiros, que não conhecia outro resultado senão a goleada, que fazia a torcida vibrar de orgulho e paixão. Era um Brasil novo que surgia, resgatava o que este país tinha de melhor, devolvia o orgulho de ser brasileiro, depois de anos de derrota, que nos havia mantidos distante do sonho então mnuito possível de sermos campeões, de sermos plenos, da mesma forma que o Brasil demorava a se tornar o gigante que surgiria assim que pudesse ser livre outra vez.
E lá fomos nós, a república da juventude, para o salão da universidade, não lembro em que lugar, só do grande salão com um aparelho de TV improvisado em cima de uma mesa, diante dele a multidão de faces cheias de certeza; gente de pé, sentada, de joelhos, abraçada; começou o jogo como todos os outros, aquele time só dava exibições de gala, aquele time goleava, aquele time jogava bonito, aquele time era vencedor.
E a festa prosseguiu, até que, como um raio que cai num dia de azul esplendoroso, a Itália fez dois gols; o jogo terminou e a platéia, assim como o Brasil inteiro, ficou muda; aquilo não podia estar acontecendo, era mentira; como era ilusão o próprio estádio Sarriá, era ilusão toda a Espanha. O destino não podia ceifar a alegria daquela forma, aquela certeza; éramos os melhores, merecíamos a vitória; jogamos melhor, fomos belos, fomos bravos, fomos fortes, e mesmo assim perdemos, em dois lances casuais, numa prova cabal da arbiotrariedade da vida, uma arbitrariedade cruel e acachapante que nos deixou massacrados, como se repente tivesse caído uma laje de concreto sobre nossas cabeças.
Saímos dali atordoados; centenas de estudantes,subitamente abalados em todas as nossas certezas; se naquele momento o entusiasmo da seleção e de todo um país estavam tão juntos, um baque daqueles punha abaixo nosso amor próprio, nosso futuro, a esperança nacional; era um golpe terrível, e não sei o que me fez caminhar para aquele lugar, como caminhamos; aos poucos foram chegando todos, nos reencontramos no lugar menos provável daquele dia: uma campo de futebol.
O campo da universidade de Florianópolis nunca viu um jogo como o daquele dia: vinte e dois jogadores, que corriam chorando, a descarregar a raiva, a tristeza, a angústia; como se pudessem mostrar como se fazia, tornar certo o que dera errado; repor algo, não no campo da batalha perdida de Sarriá para os algozes italianos, mas na nossa própria alma.
Lembro que atirei longe o tênis, queria sentir a terra, queria os pés feridos de bater na bola de couro com todas as forças, queria correr à exaustão, exorcizar aquela tristeza, desabafo convertido em esforço; gastar-me até não ter forças para nada, nem para sentir; vencer a dor da alma pela exaustão.
E me lembro de nunca jogar futebol tão bem na vida, tão bem que poderia ter estado perfeitamente no Sarriá; pegava a bola na defesa para dar início às jogadas, distribuía o jogo no meio de campo, lançava, surgia na área, fiz vários gols. Corria como um guerreiro etíope, flutuando sobre o chão, sem esforço, sem suor, sem cansaço; com cinco graus de miopia, e sem os óculos, via tudo, mesmo sem enxergar nada; despachava lançamentos de longa distância, fazia passes em profundidade, como se dotado de um radar de morcego; fomos assim sem ver o tempo, até que caiu a noite, até que, extenuados, olhamos uns para os outros, não totalmente vingados, não totalmente satisfeitos, não totalmente consolados, herdeiros daquela fúria que ainda posso sentir hoje, moídos, doídos como se tivéssemos também participado daquela batalha, dividindo aquele momentos irmanados.
Não, o Brasil tinha perdido um jogo, mas não saíra derrotado; a beleza daquele dia seria lembrada para sempre, a derrota só aumentava aquela chama, porque sabíamos que não podíamos jogar fora aquela força plena, ela ainda triunfaria, ainda nos levaria um dia à realização dos grandes sonhos, só não podíamos desistir, sim, só tínhamos de continuar.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Nunca como antes


Copa o Mundo é também um marco da vida da gente e de uma época. Lembramos das Copas pelas quais passamos e vemos como o tempo muda, como mudamos nós. É como um passeio afetivo pelo baú da memória das épocas e das nossas épocas.

A primeira Copa de que me lembro é a 1970. Eu tinha seis anos de idade, morava no apartamento térreo de um prédio na Liberdade, onde nasci. No final da Rua dos Estudantes, na vizinhança dos inferninhos, já na Baixada do Glicério, como chamava minha mãe, com rancor, que enchia d' água no verão, pelo transbordamento do Tamanduateí. Foi o último ano em que moramos lá, num tempo em que os coreanos começavam a invadir o bairro.

Nunca haverá outra Copa como a de 1970. Uma das razões era o time do Brasil, de futebol bonito, com Pelé no seu auge - nunca haverá outro Pelé. Mas houve mais, foi a primeira Copa que todos (ou muita gente, porque não havia tantos aparelhos como hoje em dia) podiam assistir pela televisão.
A transmissão ao vivo com imagem foi para a época uma revolução. Uma Nação eletrizada como se estivesse no México. Motivada pela maior campanha de propaganda da história. "90 milhões em ação, pra frente Brasil, do meu coração!" dizia a música que ficou na cabeça e quem viveu esse tempo não esquece (meu Deus, hoje já somos quase 200 milhões).
Lembro do Brasil já estar ganhando, a TV preto e branco de encontro a uma parede nua, minha tia Malfisa entrar em casa com um bando de amigos com cornetas, bandeiras e copos de cerveja dançando nas mãos. O jogo nem havia terminado, mas o Brasil ganhava com facilidade, caminhava para fazer os 4 a 1 na Itália em contrataques rápidos e fatais, o jogo parecia já garantido, tanto que eles já comemoravam. Foram embora no mesmo repente com que chegaram, cantando e dançando, como um bloco de carnaval.

Fim do jogo, saímos para a rua, como todo mundo - eu, papai e mamãe. São Paulo estava em festa. Os carros buzinavam num engarrafamento monumental. Lembro de apanharmos meus primos Rogério e Regina de carro; ele tinha seis anos mais que eu e ela era adolescente. Regina queria subir no capô do veículo, quase parado no tráfego que avançava lentamente - e ninguém reclamava. Papai a princípio negou, Regina ficou amuada.

Nunca haverá outra Copa no Brasil como a de 1970. O que a história não registra é aquela alegria delirante, que extravasava tanta coisa. Um momento de liberdade num país de repressão; um amor nacionalista que tinha algo de redenção; um sopro de confiança, esperança e transgressão, ainda que movidas pela ilusão do esporte.

Seguimos com a massa de veículos pela 23 de Maio, em direção ao Ibirapuera; lá foi Regina, vencedora com apoio de mamãe, para o capô do fusquinha cor de café com leite; eu via os brasileiros com o corpo para fora das janelas dos carros, agitando as bandeiras verde-amarelas, e a longa avenida rumo ao parque era como um rio de felicidade fluindo onde antes havia só sofrimento e medo; por um instante o Brasil tinha licença para tudo, o país estava em festa e éramos todos irmãos.
Sim, nunca haverá outra Copa como a de 1970.

*

Da Copa de 1974, lembro de um dia de jogo Brasil e Alemanha Oriental, em que jogamos de azul marinho; eu morava então na casa Verde, num sobrado de vila, perto da escola pública que frequentava, o claudicante Benito Tolosa. Embora a escola fosse ruim, naquele dia de jogo, talvez apenas para mostrar um rigor que não tinha, a aula estava confirmada, bem na hora do jogo, para nosso desencanto. E lá fui eu, forçado e emburrado, para a aula.

Porém, aquilo que poderia ter sido mais um dia de Copa do Mundo do jogo que não vimos (e naquele tempo não havia videotape assim fácil, era só domingo à noite, e jogo ao vivo, passava num canal só) acabou se tornando memorável. Porque choveu; o dia já começara cinzento, ranzinza, choroso; choveu e choveu forte. Quando cheguei à escola, uma caminhada que eu fazia à pé, apenas duas quadras, as goteiras nas salas de aula fluíam como duchas. E a antes irredutível diretora não teve remédio senão mandar todo mundo de volta para casa.

Lembro da minha felicidade, com os livros pendurados às costas, amarrados por elástico largo, dessas faixas que se prendem à cintura; pensava no acaso, no destino benfazejo, na leniência divina, e me perguntava se dali em diante seria sempre assim: os momentos de liberdade e alegria seriam apenas nas férias, ou na ruína dos compromissos; talvez aquilo fosse crescer, fosse a própria a vida, ou o resto da vida.

Mas isso foi só um segundo, porque logo cheguei em casa, para espanto de minha mãe, e pude assistir à vitória magra do Brasil, extraída a ferro e fogo e suor e sangue, 1 a zero com gol de falta de Rivelino, furando a barreira com ajuda de Jairzinho, que cavara um buraco entre os jogadores adversários para a bola passar, atirando-se ao chão na hora H.

Mais do que o jogo, porém, a memória dessa Copa é aquela, da volta para casa, o momento de liberdade inesperada, de encher o pulmão com o ar da vitória rebelde. E de pensar que não sabia como seria o futuro, mas que aquele seria um dos momentos mais felizes da minha vida, para sempre.


(segue...)

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Um vergonhoso festival

O centroavante César Maluco conta que quando entrou no Palmeiras, lá pelos já longínquos anos da década de 1960, o time era tão elegante e aristocrático que, quando marcavam um gol, os jogadores se cumprimentavam com um aperto de mão.

O tempo elegante e aristocrático do futebol ficou longe. O maior evento do esporte no qual as crianças antigamente se espelhavam, onde estavam os nossos heróis de infância, não apenas ganhou expressão mais livre como evolui para um festival de mau comportamento.

Alguns exemplos lamentáveis desta Copa vieram, como era de se esperar, do nosso comandante. Dunga xingou todo mundo ao final da partida Brasil e Costa do Marfim. Que o Brasil tinha ganho - imaginem se perdesse. Xingou depois um jornalista como um cão raivoso na sala de imprensa. O time do Brasil tem muito pouca graça com um líder resmunga tanto e se comporta como um buldogue maleducado, sob a justificativa de que as críticas o impedem de trabalhar à vontade.

O espírito guerreiro de Dunga se traduz mal em campo. Vide o zagueiro brasileiro Lúcio, um ardoroso defensor da Pátria, desferindo um soco no cotovelo sabidamente machucado do atacante marfinense Drogba.

O consolo dos brasileiros é que ninguém se saiu pior nessa Copa que os franceses. Xingaram uns aos outros, fizeram motim, trocaram acusações de tibieza e, para completar, perderam em campo vergonhosamente. Foram eliminados por times tecnicamente mais fracos, porém de melhor têmpera.

Os bleus cobriram de lama todo um país que se orgulha de sua cultura e da sua educação, a ponto da ministra do esporte tomar um avião para a África do Sul, na esperança não de controlar a situação, já perdida, mas de salvar um pouco as aparências. O papelão francês foi mais que grosseria: foi um festival coletivo de mau-caratismo.
Nem o treinador se salvou do naufrágio moral. Ao se recusar a cumprimentar o técnico adversário ao fim do jogo, deixando no ar a mão estendida do nosso Parreira, que na vitória como na derrota é sempre o mesmo gentleman, o francês Domenech deixou claro que o vexame futebolístico e ético da França não se deveu apenas aos jogadores.

Dunga falou em entrevista, emocionado, da educação que lhe deu o pai, hoje doente, e da mãe, que é professora de história. Sabemos por ele mesmo que ser filho de professora o ajudou a amar a pátria e a ter aquela disciplina espartana, com a qual conduz sua vida e a seleção. Porém, essa criação não o ajudou muito com a língua portuguesa, que ele atropela com a mesma volúpia com que gostaria de destruir adversários e opositores, principalmente na imprensa. E também não colaborou para conservar a noção básica da educação de que ficar xingando e destratando todo mundo é feio. Os pais tentam, sabemos, mas não conseguem tudo.

Por seu comportamento inadequado, Dunga ensaiou em seguida um pedido de desculpas, dizendo que o povo brasileiro não tinha que saber de seus problemas pessoais. Não se trata disso. Ele poderia ter problemas e trazê-las a público de maneira mais digna. No entanto, não deixa de ser verdade que o público vê futebol pela beleza do jogo, pelos momentos heróicos e emocionantes do esporte, pelo amor à pátria. E gostaria de ver aqueles que representam um povo se comportando de acordo.

Se esta Copa serve de exemplo, é daquilo que não se deve fazer. O futebol não perdeu apenas muito da paixão, convertida numa vontade de ganhar a qualquer preço, por trás da qual está a verdadeira motivação que hoje move o esporte: a ganância por dinheiro. E, quando isso acontece, desaparece a noção indispensável de honradez.
*
O Brasil ganhou de pouco dos coreanos, venceu a Costa do Marfim na base da ferocidade e empatou melancolicamente com Portugal. No jogo em que precisou fazer substituições de um time já cheio de reservas, Dunga entrou com Grafite, Josué e Ramirez. Ficou clara a falta de imaginação d eum time comandado por um técnico que se deu ao luxo de deixar de convocar Neymar, Ganso e Ronaldinho Gaúcho. O erros em algum momento aparecem.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Um panteão de mármore frio


A morte do Nobel a quem faltava um pouco de amor

Sequer na morte o "L'Osservatore Romano", jornal oficial do Vaticano, perdoou José Saramago, falecido aos 87 anos em sua ilha espanhola. Expatriado voluntário, que não contava muita popularidade em seu país de origem, do qual se distanciou, ou foi por ele distanciado, ao despedir-se da vida o primeiro Nobel em língua portuguesa foi subtraído da benevolência devida às almas pela igreja católica. Em vez disso, a santa imprensa preferiu descontar sua ira contra o cadáver indefeso.

Com o irônico título "O grande (suposto) poder do narrador", o órgão de imprensa do Vaticano definiu Saramago como "um ideólogo antirreligioso, um homem e um intelectual que não admitia metafísica alguma, aprisionado até o fim em sua confiança profunda no materialismo histórico, o marxismo." E acrescentou, em outra passagem do texto obituário: "colocou-se com lucidez ao lado das ervas daninhas no trigal do Evangelho".

Sim, Saramago era ateu, e marxista. Como comunista convicto, defendeu o joio que vinha com o trigo: as atrocidades cometidas em nome dos bons ideais do comunismo. Para Saramago, como para todos os comunistas da velha cepa, os fins justificam os meios. Embora também condenasse muita coisa no mundo. "Ele dizia que perdia o sono só de pensar nas Cruzadas ou na Inquisição, esquecendo-se dos gulags, das perseguições, dos genocídios e dos samizdat (relatos de dissidentes da época soviética) culturais e religiosos", salienta o editorial.

O Vaticano usou com Saramago uma ironia que não se devia ter com os mortos e uma impiedade que não deveria combinar com a igreja. Também o Vaticano cometeu aí uma atrocidade, que é a de esquecer a função precípua delegada por Jesus: perdoar e compreender mesmo quem rejeita a doutrina ou o próximo. Porém, o editorial acerta quando detecta o que faltava, se não ao ser humano Saramago, ao menos ao romancista: um pouco de amor.

Como revela sua obra, Saramago era um intelectual brilhante. Seus romances são, como diria o velho bardo português, repletas de engenho e arte. Sua obra-prima, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, que desgostou a Igreja muito compreensivelmente, nos introduz à ideia ao mesmo tempo marota e intelectualmente provocadora de que Jesus deve seu papel não a sua santidade, mas ao diabo. E nos coloca diante da importância e utiidade do Mal para o Bem – e a própria História.

O intelectual, porém, é o esgrimista da razão. Se aos romances de Saramago sobra inteligência, falta um pouco da sensibilidade, assim como ao homem Saramago faltava um pouco de vivacidade. A maioria de seus romances tem a mesma rica engenharia de linguagem, ideias e conceitos, mas são intelectuais demais. Um bom exemplo é o Ano da Morte de Ricardo Reis, que parte de um princípio instigante: o heterônimo de Fernando Pessoa volta a Lisboa para encontrar o poeta que é seu criador, como um personagem real. O resultado dessa bela ideia, porém, resulta numa filosofia arrastada, às vezes de uma chatice terrível.

Saramago escrevia como quem comprovava belas teses, mas não emocionava. Morava numa ilha não por acaso. No trato, era um senhor doce e educadíssimo, mas parecia manter uma certa distância olímpica do mundo. Como Jorge Luis Borges, que morreu amargurado, certo de que era “admirado, sem ser amado”, carecia daquele elemento fundamental que os escritores devem possuir: a necessidade não de demonstrar sabedoria, mas de se aproximar do outro.

Saramago teve seu Nobel, merecido pela qualidade de sua refinada obra. Porém, não teve seguidores apaixonados, como um Garcia Marquez, outro comunista de carteirinha, nem jamais os terá. O tempo tornará ainda mais frias as letras de quem as urdiu para falar ao cérebro, e não ao coração. Pois os tempos mudam, as ideias e convicções também - somente a essência humana permanece. Saramago morreu para entrar na glória, mas, como supõe a igreja, passará a um panteão de mármore frio, em lugar do Reino dos Céus.

sábado, 29 de maio de 2010

Literatura para pisotear


“Aqui nesta casa não há livros nem quadros, o diabo mesmo os levou.”


Frase extraída de D. Quixote, diante da casa onde viveu e morreu Miguel de Cervantes Saavedra, em Madri. Número 2 da calle Cervantes, que no tempo do artista tinha entrada pela Calle de Leon.

Tanto lugar para ir em uma cidade inteira e parei parei descansar e fumar um café crème justo aqui. Só depois percebi onde me encontrava. Mera coincidência?

Cervantes estava certo, este é o destino do escritor. O próprio diabo leva tudo o que prezamos, mas pelo menos nos países que dão algum valor a seus escritores, sobra alguma coisa.

*
Madri imprime em letras de bronze versos e frases de seus escritores no calçamento do centro histórico. Dá valor à sua cultura. Ali seus herois culturais são pisoteados, mas ao menos não são esquecidos, o que lhes dá ao menos um pouco de honra e glória, a única coisa que se pode roubar ao diabo. Diferente do Brasil, onde os escritores nacionais parecem não merecer sequer lamber a sola dos sapatos.

Os gênios do Prado


Passo pelo museu do Prado. Os retratos inacabados de Goya. Que só reforçam como a grande arte sai do nada, é puramente a mão do artistas: a mágica contrasta com a tela nua.

Goya era um gênio e é um dos meus artistas preferidos. Por seus quadros que fogem dos cânones. Pintava os ricos, fazia retratos de encomenda nos moldes clássicos, como Rembrandt, mas se deixava levar pela emoção, que lhe deformava o traço. Foi o primeiro modernista, quando riscava a tela, em pinceladas de fúria; o coração ultrapassava a técnica, era a síntese da expressão, como no seu quadro das execuções durante a guerra civil espanhola.

Parei muito tempo diantes das majas, que estão lado a lado. Nunca havia reparado nisso: a maja vestida está de rosto rosado e risonho, já a desnuda parece posar contrariada. Intenção do artista, ou a disposição da modelo?

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Fortuny: não conhecia, é brilhante. O tipo que eu gosto: pouco conhecido, mas com o brilho dos grandes. Uma surpresa.

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O Prado é um museu coerente, focado na pintura clássica, desde a renascença italiana, que influiu na espanhola. Um museu com personalidade, que não atira para todos os lados, uma enciclopédia, de uma variedade demasiado ambiciosa e cansativa, como o Louvre. Sim, o Louvre é grande, mas para mim mostra apenas a inutilidade de tentar saber tudo; a vida é feita de escolhas. E o Prado tem grandes obras e nomes, como Rafael, Ticiano, Tintoretto, Goya e o apocalíptico Bosch, sem ser confuso, nem disperso.

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Bosch. Como a alma humana pode gerar imagens terríveis de si mesma. Mas não acho Bosch doentio. Acho... realista.

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Ainda no Museu do Prado, vejo o retrato de Veronica Franco, pintada por Domenico Tintoretto (1560-1630): Mulher com o Seio Descoberto. Franco que, viveu em Veneza, cuja ousadia foi perenizada pelos artistas de sua época, foi talvez a mulher mais pintada de seu tempo. Ninguém, no entanto, a pintou como Tintoretto. O gênio da Renascença transferiu a mesma magia com que pintava suas virgens marias para essa outra mulher, não uma virtuosa moral, nem de aura beatificante, mas de qualidades bastante seculares: a beleza e a inteligência. Com a silhueta bem definida, de quem, como Leonardo e outros renascentistas, valorizava o esboço antes de pintar, Tintoretto deu-lhe ao gesto de descobrir o seio não apenas o tempero da ousadia, mas algo de doçura virginal. Uma combinação misteriosa, provocadora e, para quem aprecia as contradições, irresistível.

“Cortesã cuja beleza só se comparava ao talento literário”, diz o texto descritivo do quadro; nunca li nada de Franco, quero ler, para saber jus se a escritora fazia mesmo jus ao que provoca de imaginação.

Arte sob a luz



Em exposição temporária, no Museu do Prado, uma obra prima emprestada pelo museu de Boston: As Filhas de Edward Darley Boit, de John Singer Sargent, junto às Meninas de Velázquez, sua fonte direta de inspiração. Obra prima que retrata de maneira sutil mas eficaz as meninas de acordo com sua idade: das menores, na fase distante, absorta, despreocupada e brincalhona da inocência, às maiores, imersas na penumbra, tímidas, recolhidas, como que cientes de que alguém as observa, indicativos da mudança de espírito para a adolescência.



Muito contribui para esse efeito não apenas a atitude das meninas, como o efeito de luz. Nas meninas menores, ela explode num branco luminoso. Já as duas maiores apenas saem da penumbra.

A luz é essencial. É graças a ela que se pode ver o trabalho do gênio, por exemplo, num dos quadros mais extraordinários que já vi na vida, e que só pode ser apreciado no local onde se encontra: a basílica de Santa Maria Gloriosa dei Frari, em Veneza, uma nave grande e escura, onde por obras do próprio artista a luz proveniente das janelas parece incidir justamente na Nossa Senhora no momento de sua assunção – transformando-a numa aparição, um ser deslumbrante e cheio de vida, que emerge carregada pelos anjos numa prancha de nuvens às portas do paraíso.

Obra de Tiziano, um mestre.

*

Em Madri encontrei meus cadernos de anotação favoritos. Da Miquelrius. Do tamanho dos moleskines, mas de papel mais fino, suave. São cadernos flexíveis, fáceis de manusear, com folhas que não soltam. Uma delícia de carregar e usar. Achei só os de folha quadriculada; folhas brancas, estranho, não há mais. Mas estes servem.

domingo, 16 de maio de 2010

Diferenças entre yin - yang


Yin carrega poesia para a prosa, algo sempre muito difícil: exige o trabalho do ourives, o talento e paciência. Mas que, bem feito, produz resultados maravilhosos. É como escrever ao modo dos chinês, nanquin sobre papel de arroz, com cuidado, arte milenar. Busca a essência, até mesmo nas palavras; por isso, é profundo sem ser rebuscado; é elegante sem exageros; é apenas pleno de significado. Yin é intimista, no tema, no tratamento, no resultado.


Yang dá mais ênfase à trama, ao enredo, que à linguagem. Conduz o leitor menos pela profundidade das idéias que pela sequência da ação. Não aplica poesia à prosa, não busca seu poder nas imagens; ele apenas sugere a emoção como consequência da ação; mais do que diz, importa o que deixa de dizer, e que apenas se sente, como resultado do ato, como acontece na própria vida.


Yin quer só escrever, não importa onde, nem que seja numa masmorra, como Dostoiévski e Graciliano; alimenta-se de si mesmo. Yang quer somente escrever, mas onde tenha liberdade; precisa viver para alimentar sua criação, seja como um plongeur em Paris como Orwell ou estivador como Hammett en Nova York.


Yin gosta do mar, do sal e da brisa marinha; seu mundo é povoado de imágens aquáticas. Adora navegar, sentir o vento bater no rosto, a imensidão perigosa das águas, mas tem de voltar para a praia, a casa, o fogo, como o pescador; não suporta muito tempo a solidão do universo ao redor, precisa de companhia, de gente, de carinho; busca a comunhão com todas as criaturas, em harmonia com a natureza, faz parte dela.


Yang adora o mar, mas não depende de um porto aonde voltar; os vagalhões não são apenas movimento da vida, pelos quais nos deixamos levar; ao contrário, são um desafio a enfrentar. Prefere todo lugar mais isolado, que desperte seu instinto para a aventura, como o alto das montanhas, os extremos gelados da terra ou o céu estrelado e o silêncio dos desertos. Está em desarmonia com o mundo; rebela-se contra ele; embora seja livre, é o verdadeiro amigo da solidão.

Yin e Yang, dois caminhos, ou um só?

terça-feira, 4 de maio de 2010

Uma mulher em sua ilha

Falo por e-mail com a escritora e poetisa Wendy Guerra, em Havana. Guerra diz que vive “longe de tudo e de todos”. Que pouco fala com editores. Lê mal em inglês, criada como foi no regime comunista, que ensinava russo às suas crianças. Vive em uma cobertura em Miramar, “rodeada de mar e luz”, onde come “entre cristais”.

Em seu mais recente romance, Nunca Fui Primeira Dama, que acaba de ser lançado pelo selo Benvirá, sua personagem habita um casarão “cheio de sal” no Malecón, a célebre fachada da cidade diante do mar, semi-abandonada. Sempre me perguntei se havia gente morando ali, naquela galeria fantasma. Na obra de Wendy, há. Um pouco dela está lá. Como acredito que a ficção diz mais sobre o escritor do que a vida real, vejo Wendy em seu palácio abandonado, como se ali vivesse de verdade.

Decidiu usar sua presença em Cuba como manifesto. Seu romance, belo e pungente, conta a história de uma mãe foragida do país por escrever um livro sobre a falecida secretária de Fidel, Celia Sánchez. Por isso, a mãe teria abandonado a filha em Cuba, aos dez anos de idade. Ao contar a história da mãe, a narradora de Wendy conta também a de Celia. Resgata a figura da mãe, em todos os sentidos. E completa o trabalho materno, publicando a história proibida da mulher que mais perto esteve de Fidel. Como autora, coloca-se no papel de sua própria personagem.

Wendy fica em Cuba, como estandarte de uma cruzada pessoal. Não quer sair, como tantos que saíram, esgotados com o regime. Ao fim dos termos, sua história pessoal é também de defesa da liberdade, da literatura e da expressão, em uma Cuba que não precisa abandonar suas utopias para voltar a ter tudo isso, e mais o progresso. Como ela diz, pertence a uma geração que não é nem da de seus avós revolucionários, nem mesmo a de seus pais, os operários a quem se atribuiu a tarefa de construir na vida real os velhos sonhos.

Ela é uma geração que quer igualdade social, mas também quer liberdade. Que faz da vida comum e das necessidades mais simples, como a de reconstruir a família destroçada pelas antigas gerações, a sua verdadeira bandeira política e o seu manifesto.

Em seu castelo feito de memórias, Wendy não está sozinha. Com ela, estão os injustiçados do passado, os banidos, os inconformados. Os que vão embora, mas sobretudo os que não vão. Os inconformados que ficam, marcam posição. Os que tentam reconstruir algo sobre um passado incompleto e desolador.

Hoje já não existem ilhas completamente isoladas. Como sua personagem, Wendy rasgou as capas que cobriam os livros proibidos da biblioteca de sua casa, também como um gesto simbólico. Cuba aos poucos muda. Ela não tem seus romances publicados em Cuba (por lá saíram apenas os de poesia), mas também não precisa fugir de sua ilha para escrever.

Cuba nunca foi uma ilha e hoje menos que nunca. Ernest Hemingway viveu lá. Precisava apenas da brisa do mar, da linha de pesca, do sol cubano, do mar cerúleo, do rum para os daiquiris na Floridita. Era um homem ilhado e ao mesmo tempo estava mais presente no mundo que muita gente plantada em Paris e Nova York. Wendy também é assim.

Wendy Guerra está em Cuba. Escritores são ilhas, vivendo dentro de si mesmos, cercados de suas obsessões por todos os lados. Não importa se vivem numa cabana nas montanhas, numa praia deserta ou num apartamento da megalópole. Ao mesmo tempo, se correspondem com todos. Onde quer que estejam.

Wendy Guerra vive entre velhos cristais, mas ao mesmo tempo está em todo mundo, onde se pode compartilhar dos sentimentos que ela generosa e corajosamente abre como a flor do coração.

Sim, o Malecón à noite é semiabandonado, escuro, feio e sombrio. Dá medo. Mas lá há vida que se espalha sobre o mar.

Por trás do artista


O cabide é uma bruxa, nas paredes passam imagens fantasmagóricas, o silêncio dá pesadelos. “Eu só tinha três anos de idade”, diz Maria Fernanda Cândido. “E me lembro muito bem.” Mais que lembrar, ela sente: “Medo.” Os pais deixavam a porta do quarto fechada. “E eu não podia fazer nada.” Desse tempo é que vem a necessidade profunda de compreensão e de expressão, comum ao escritor, o artista plástico, o ator?


Maria Fernanda não sabe. Nem todos são assim. “Meu filho Tomás, por exemplo, pede para deixar a porta fechada.” Mãe de dois filhos pequenos (Tomás tem quatro anos, Nicolas 1 e meio), ela só sabe da importância de pensar nos sentimentos, não apenas das crianças, como de todos. E que, do medo, vem a coragem e a força – e que força.


Depois de dois meses de filmagens, Maria Fernanda Cândido terminou sua participação em Aparecida, filme de Tizuka Yamasaki que deve chegar aos cinemas em novembro. O tema que a atraiu para fazer o papel de uma executiva enfiada numa história de fé foi o da independência.


Como toda mãe com filhos pequenos, e que aos poucos volta mais e mais ao trabalho, Maria Fernanda parece buscar um caminho para também poder ser novamente, apenas, Maria Fernanda Cândido. Usa, para isso, a profissão: ao entender os outros, pela representação de um papel, entende mais a si mesma. Interessa-se, acima de tudo, pela “humanidade” - assim mesmo, com H minúsculo, no sentido da natureza humana. “Aceitar o diferente, sem preconceito, ir por trás (da aparência).”


Existe algo em comum entre os artistas: não o meio de expressão, mas a compulsão invisível, que vem de um passado distante, raiz de toda predestinação.

domingo, 18 de abril de 2010

A pobreza, a riqueza e a arte


O escritor Francis Scott Key Fitzgerald, um dos membros da tríade dos grandes romancistas da literatura americana, ao lado de Henry James e Herman Melville, costumava dizer que, sem a sua obsessão pela riqueza e a vida dos ricos, teria escrito uma obra completamente diferente.

Com seus três principais romances (O Grande Gastby, Suave é a Noite e O Amor do Último Magnata), Fitzgerald foi o autor que melhor captou a aura da riqueza e o seu efeito sobre a alma humana. Sua obra mais famosa, O Grande Gatsby, é considerada pelos críticos o romance central da literatura dos Estados Unidos, pela maneira como retrata o Sonho Americano, seu endeusamento e suas vicissitudes.

Em Suave é a Noite, obra marcante da Geração Perdida, mostra a vida perfeita dos ricos na era próspera dos anos 1920, crônica de uma época em que a América decolava num binômio de prosperidade e hipocrisia que se tornou novamente muito atual.

“Scott Fitzgerald foi ao mesmo tempo o grande celebrante e o satirista do sonho que virou pesadelo”, define o crítico literário Harold Bloom, no ensaio “Gênio”, sobre os maiores mestres do mundo das idéias em todos o os tempos.

O cenário de O Grande Gatsby é a América da Lei Seca, na qual um garoto pobre das ruas de Nova York chegava ao Sonho Americano pela via do crime organizado. A apresentação da máfia como um negócio qualquer, confundindo um bandido a um grande homem de negócios, é típica do estilo de Fitzgerald, no qual o brilho e a euforia da riqueza contém também os genes do seu trágico fim.

No romance, ele se dá com a morte do protagonista, Jay Gatsby, assim como na História a derrocada veio com o crack de 1929, que levou à bancarrota não somente os milionários da época como seu estilo de vida e a ilusão um tanto hipócrita de toda uma era.

Tudo isso parece familiar? Por trás da fuga do volátil capital globalizado e dos homens-bomba enviados vingativamente pelo mundo marginalizado dessa riqueza, há um cheiro permanente de que o paraíso dos ricos americanos está ameaçado. “Hoje em dia, no início do Século XXI, não está claro o que opera o sonho americano como mito estruturante”, escreve Harold Blom. “Na Era de Ouro de George W. Bush e seus Barões do Roubo, haveremos de dizer: expandir ou explodir?”

Em vida, Fitzgerald vendeu apenas 25 000 cópias de O Grande Gastby e, a despeito de ter se casado com uma mulher de família rica, conheceu tanto o lado looser (“perdedor”) quanto o winner (“vencedor”) no qual o Sonho Americano dividiu seus cidadãos - e, por extensão, a Humanidade. A linha demarcatória do dinheiro, que para o padrão americano estabelece se uma existência pode valer ou não a pena, é o denso e ao mesmo tempo sutil material de trabalho do escritor, que constrói seu ponto de vista pelos detalhes aparentemente mais prosaicos.

Como na cena em que Gastby mostra ao narrador, Nick Carraway, sua coleção de ternos, trajes a rigor, gravatas e camisas acondicionadas meticulosamente em pilhas de 12 unidades. Eram compradas para ele na Inglaterra, depois de uma rigorosa seleção entre as novidades da estação:
“Tomou uma pilha de camisas e se pôs a exibi-las, uam a uma, puro linho, seda ou flanela, que, ao caírem sobre a mesa, em uma desarrumação colorida, perdiam os vincos das dobras... De súbito, emitindo um ruído de dor, Daisy curvou-se sobre as camisas e pôs-se a chorar, convulsivamente. “Que camisas lindas!, ela soluçava, a voz abafada pelos tecidos. “Fico triste porque jamais vi tantas... tantas camisas tão lindas assim.”

Essa fina construção é também o esteio de Suave é a Noite, publicado por Fitzgerald em 1935. Nele, a frivolidade de uma vida perfeita apenas na aparência é desvelada de maneira tão mais chocante quanto sutil.

A história de Dick Diver, um jovem e brilhante psiquiatra que interrompe sua carreira para casar-se com Nicole Warren, uma herdeira bela, rica e mentalmente perturbada, é vista pelos olhos de uma aspirante a estrela de Hollywood. Esta conhece Dick e Nicole em uma temporada na Riviera Francesa, onde se apaixona não só pelo protagonista como pela imagem de perfeição produzida pelo casal. Para sua surpresa, ela os reencontrará anos mais tarde. Nicole, recuperada, continua a levar a sua vida de distanciamento da realidade, como se o tempo não tivesse passado.


Descartado depois de cumprida a sua finalidade, Dick torna-se um médico obscuro no interior do Estados Unidos, fadado a lutar no fim da vida contra dificuldades materiais e o vazio de, depois de ter entrado naquele círculo de sonhos, ser enviado de volta ao que socialmente determinou-se ser o seu lugar.

Em sua própria biografia, Fitzgerald lutou para firmar-se nesse mundo mais aristocrático que ele acreditava sempre rejeitar corpos estranhos. Nascido em 1896 em Saint Paul, Minnesota, ele descendia de uma família católica irlandesa, o que significa estar no centro da mentalidade que se tornou a base do comportamento e da sociedade americana. Estudou na Universidade de Princeton e se alistou na primeira guerra mundial, sem no entanto chegar a combater. Numa época em que os escritores podiam ganhar tanto dinheiro quanto hoje o fazem autores de novelas na TV, arriscou-se na atividade literária.

Em 1920, publicou Este Lado do Paraíso, romance que lhe deu grande popularidade e lhe abriu espaço em publicações de prestígio, como a Scribner's e o The Saturday Evening Post. Seu segundo romance, Os Belos e Malditos, foi publicado em 1922.

O sucesso financeiro foi suficiente para aproximá-lo de Zelda Sayre, sua futura mulher, que já o havia rejeitado em tempos de vacas magras. Filha de família rica, Zelda seria um componente importante e trágico na vida de Fitzgerald. Dividia com ele o gosto pelas coisas boas e as viagens que os levaram a temporadas na Europa e à companhia de milionários como Gerald e Sarah Murphy, americanos que recebiam os amigos artistas em sua casa de veraneio na Riviera Francesa.

Emocional e psicologicamente instável, Zelda deixava fundadas suspeitas de trair o marido e causava escândalo com suas bebedeiras e um comportamento inconsequente. A partir de 1930, seria internada sucessivas vezes em sanatórios para tratamento psiquiátrico, rendendo a Fitzgerald farto material para Suave É a Noite.

Mais tarde, Zelda escreveria um livro de memórias acusando o marido de tê-la plagiado, entre outras declarações que somente podem ser explicadas como produto dos sanatórios onde ela fazia terapia ocupacional.

Com a saúde já abalada pelo alcoolismo, Fitzgerald mudou-se para Hollywood, onde trabalhou como roteirista cinematográfico, último refúgio para ganhar algum dinheiro. Em 1939 começou a escrever seu último romance, The Last Tycoon (O Último Magnata), publicado postumamente em 1941. A obra era sua última tentativa de retratar a personalidade de um grande artífice do "sonho americano", inspirada em um grande produtor hollywoodiano.

Nesse livro incompleto, o escritor americano John Dos Passos veria a libertação de Fitzgerald de sua obesssão pelos ricos. “pela primeira vez, ele escreveu sobre eles como se fala de um outro ser humano, numa relação entre iguais”, disse Dos Passos, num artigo sobre a morte do amigo. Sim, Fitzgerald estava enfim livre, mas, como nos mais trágicos romances, não de maneira que pudesse aproveitar, pois deixaria o livro incompleto. Morreu aos 44 anos, fulminado por um ataque cardíaco que terminou de liquidar seus corpo já devastado pelo alcoolismo.

Por suas idéias e estilo, Fitzgerald ajudou a criar a aura da Geração Perdida, um grupo de romancistas que precedeu o existencialismo na sua técnica e propósitos. Outro expoente desse grupo, Ernest Hemingway, seguiu na esteira da obra de Fitzgerald em romances como O Sol Também se Levanta, no qual a sensação de inutilidade e crueza da vida passa pela narrativa da viagem de um homem impotente pela Espanha das touradas e de uma amante inalcançável.

O homem castigado pela sua própria natureza, ou o que o destino lhe reservou, são o traço comum no estilo do Hemingway de seus primeiros anos e Fitzgerald, a quem o amigo descreveu no memorialístico Uma Festa Móvel como um ser já decadente e apodrecido pela bebida – tudo verdade, mas resultado de uma ponta de inveja por uma literatura superior. Impotente como seu alter ego de O Sol Também se Levanta, o livro no qual procurou mais aproximar seu estilo ao de Fitzgerald, Hemingway não terminaria a vida melhor que o antigo colega. Alcoólatra e deprimido, matou-se com um tiro de sua espingarda de caça.

O valor da obra literária de Fitzgerald perdura, mesmo que tenha passado por altos e baixos tão grandes quanto os de sua vida. Adaptado para o cinema e a Broadway, O Grande Gatsby mergulhou no esquecimento no longo período da depressão e só ganhou fama ao ser republicado depois da Segunda Guerra mundial, quando foi aclamado como a obra prima da literatura americana.

Está de volta às prateleiras nos Estados Unidos como um alerta muito presente dos perigos da prosperidade, agora que ela não parece ter freios senão ela mesma. Assim como o personagem-título de O Grande Gatsby, há nos Estados Unidos de hoje aquele mesmo materialismo que ameaça corroer a alma humana. 

É essa condenação ética que faz se voltar contra o país o olhar indignado do mundo, cansado da resposta aos problemas sociais dos marginalizados com a política do “big stick” – a expressão cunhada por Franklin Roosevelt para esclarecer que aos americanos estão sempre dispostos a usar a diplomacia da paulada. 

Na obra de Fitzgerald, como na vida, a abundância carrega em si mesma uma certa arrogância visível para todos – exceto, evidentemente, para quem a encarna.

sábado, 27 de março de 2010

Poeta selvagem

Poeta selvagem
Da ilha interior
Criado na margem
Do riso e da dor

Poeta da liberdade
Nunca cercada
De mar nem cidade
O tudo do nada

Poeta selvagem
Na ilha do sol
Infinita viagem
De ser como sou

sábado, 20 de março de 2010

Mentira, indignação


O jeito mais certo de se perder a razão

“Ninguém mente tanto quanto o indignado”, escreveu o filósofo Friedrich Nietzche em uma de suas mais importantes e menos lidas obras: Além de Bem e do Mal. Como se sabe, Nietzche era um retórico, um polemista, um filósofo dedicado a negar o conhecimento, a destruir a própria filosofia. Era um provocador. Com sua provocação, procurava abrir horizontes, destruir barreiras imaginárias, fazer pensar. E, se pensarmos bem, ele tinha razão. Por isso, estou prestes a abandonar a indignação.


O pressuposto do indignado é que ele está com a razão. A mentira, a injustiça, o atropelamento do óbvio, o desvirtuamento das coisas naturais – estas são as fontes primárias da indignação. Para Nietzche, porém, não existia a verdade absoluta, nem justiça, nem o óbvio, ou o natural. Havia apenas a verdade de cada um, assim como a filosofia não era uma ciência, mas um ponto de vista individual, que expressava o pensamento do autor, e tanto melhor ficava quanto mais se aproximava da literatura, isto é, de uma expressão artística.

Que sentido há na indignação quando não há verdade absoluta, mas a verdade de cada um? Indignar-se, dessa forma, é defender um ponto de vista como verdade absoluta, uma forma de mentir.


Penso nisso, não somente por perceber a inutilidade da busca pela verdade, como também por uma questão de atitude. Há na indignação uma certa superioridade, uma rispidez, um moralismo que faz com que percamos a razão, mesmo quando a temos. A atitude de quem se indigna é a de um falso juiz. Nos revoltamos, mas a causa é semrpe mais emocional que objetiva. Porque, no fundo, tudo se explica, mas não há razão.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Diálogo com as pedras

Eu me lembro de tentar conversar com meus pais quando era adolescente e da sensação de não ser ouvido. Era o início da década de 1980 e, embora um pouco mais avançados que meus avós, eles pareciam não entender nada do que eu dizia. Essa é a essência da adolescência: a gente tenta se expressar, ser compreendido, e as palavras parecem inúteis. O velho não aceita ou compreende o novo. Nós pudemos ajudar a fazer ouvir a voz do povo que fez a democracia no Brasil, mas em casa a voz do jovem não valia grandes coisas.

Hoje eu tenho em casa um rapazinho de 14 anos; por conta dessa minha experiência, pergunto sempre o que acontece, tento estabelecer o diálogo que me parecia tão importante. O que pensa disso e daquilo? E namorada? E sexo? E ele... Não diz nada. Fica mudo, desconversa. Dentro de casa, passa a maior parte do tempo diante do computador. Ou no quarto, com a porta fechada.

Descobri que a barreira entre pais e filhos continua a mesma. Dessa vez, porém, para minha surpresa, não são os pais que não querem ouvir. São os filhos que não querem falar. Troquei de posição, mas continuo no meu diálogo com as pedras.

Consulto os amigos. A coisa não é só comigo. Nunca os adultos tiveram tanto interesse em entender os filhos adolescentes. Nunca foram tão flexíveis. Hoje há poucas proibições. Se quiserem, os adolescentes vêm namorar dentro de casa. O que no meu tempo de adolescência era algo impensável, hoje é até preferido pelos pais. Acham melhor que pensar nos filhos arriscando o pescoço por aí nesse mundo violento. Mas o interesse dos outros pais cai também no vazio. Eles obtém de seus filhos adolescentes tantas respostas para as suas perguntas quanto eu.

Percebo que há toda uma geração de adolescentes que, mesmo tendo pais abertos ao diálogo, não querem saber de falar. Continua aquele buraco negro que surge entre pais e filhos nessa fase da vida de ambos. O antigo conflito de gerações transformou-se em vácuo.

Como fui adolescente que queria falar sem ser ouvido, e hoje sou padrasto que quer falar e não sou escutado, tenho a sensação de que a minha geração é uma vítima rara das mudanças psicossociais. Pois as palavras, que eram inúteis, continuam inúteis. Aqueles que não foram ouvidos pelos áis, continuam a não ser ouvidos pelos filhos. Isso me leva a acreditar, com meu espírito radicalizador, que realmente não existe nem jamais existirá uma conexão verdadeira entre pais e filhos nessa fase tão importante da vida de ambos.

Acho que dá para entender os adolescentes hoje. Eles nunca foram tão controlados. Têm de andar de celular e assim sabemos onde estão, o tempo todo. Por medo de assalto ou coisa pior, eles não têm independência alguma. São levados de carro para o judô, o balé, o piano, a natação. Tudo o que fazem é pago. Nunca são simplesmente esquecidos ou deixados a andar pela rua.

Resultado, eles passaram a defender sua privacidade. Construíram um mundo no qual não podemos penetrar. Não gostam de contar com quem andam, o que conversam com os amigos, nem mesmo o que pensam. A internet e especialmente os bate-papos eletrônicos viraram uma área particular à qual o pai e a mãe não podem ter acesso. É a maneira que encontraram na vida contemporânea de ganhar identidade, liberdade e independência. Ao se esconder, eles tentam se afirmar.

Para qualquer pai, claro, é preocupante. Como um meio fácil de alienação, a internet tende a ocupar o tempo todo dos filhos. Eles caminham cada vez mais para a reclusão e o individualismo. Proibi-los de ter seu espaço, porém, é também tolher seu último refúgio. Trata-se de um dilema novo, assim como eram novos para nossos pais os dilemas que lhes impusemos.

A adolescência é uma idade que implica certos riscos, isso não mudou. Eles acabaram de ser crianças, acham-se adultos e não têm experiência. Os adolescentes de hoje tem muita informação e, por não ter liberdade, tem também pouca vivência e responsabilidade. Conversar seria importante. Se não há conversa, o que fazer?A resposta, creio, é nada. É preciso deixar que eles encontrem seu próprio espaço e voltem a sentir necessidade de se aproximar dos pais. É preciso vigiá-los e ajudá-los, mas respeitar a distância que impõem. Cada geração adquire afirmação para a vida adulta de uma forma. Essa é a deles, muito influenciada pela evolução tecnológica, que estimula a reculsão e o individualismo.

Que fazer? Parei de desperdiçar as palavras inúteis. Recolhi as pontes que vivi lançando para os outros a vida inteira. E espero o dia em que as palavras, e mais que as palavras, a busca pelo entendimento, a compreensão e o amor, voltem a ter valia. E me saíram estes versinhos, se é que chegam a ser versinhos:

Dialogar com as pedras
É tarefa de uma vida inteira
E do sussurro ao grito
Ouço de volta somente o eco